Enquanto os seniores deprimem, tropeçam e aborrecem, os miúdos voltam a ser os principais pontos de interesse quando a temporada regular para e dá lugar aos encontros internacionais. Há uma clara mudança de rumo com o futebol apresentado por Rui Jorge e os seus discípulos. Uma decisão corajosa levou o seleccionador a defender um salto geracional para preparar o futuro. O tempo tem-lhe dado razão. Mas apesar disso, o mérito do técnico português vem acompanhado do renascimento das equipas B. Um ano e alguns meses depois os frutos estão à vista. E a pergunta de porque acabaram também.
Há nesta selecção de sub21 algo que escapa há vários anos à selecção principal de Portugal: alegria.
Ver as equipas de Rui Jorge nos últimos meses é um passaporte directo para o desfrute. Ao contrário dos herméticos, lentos, pesados e aborrecidos titulares do exército montado pelo sargento Bento, os miúdos jogam como miúdos. Com espontaneidade, com dinamismo e intensidade. Têm algo que provar e estão desejosos para não cair nos erros dos seus antecessores. Quem se lembra de jogadores portugueses desse Mundial sub-20 em que fomos finalistas? Onde estão eles?
Não foi por acaso que Rui Jorge percebeu, quando se falhou o apuramento para o Europeu em Israel, que algo estava errado na estrutura dos seus alunos mais veteranos. Traziam os vícios e os defeitos de uma geração perdida. Perdida desde meados da década. Em 2006 Portugal disputou o Europeu que organizou e desiludiu. Desde então, o país que o mundo aprendeu a admirar como uma escola de formação única, desapareceu do mapa. Ocasionalmente apareciam jogadores, potenciados sobre tudo pelas academias dos clubes. A nível nacional não existia um projecto coerente. A transição para a era Queiroz prometia uma nova atenção aos mais novos mas foi curta, polémica e sem soluções. Os problemas prosseguiam e vinham acompanhados de uma realidade mais preocupante: os putos não jogavam.
O fim do projecto das equipas B, em 2005, veio acompanhado de um imenso hiato que custou largos anos a uma promissora geração. Vieirinha, Paulo Machado, Miguel Veloso, Hélder Barbosa, Bruno Gama, Danny, Beto e companhia entraram tarde nas contas da selecção porque não tiveram a oportunidade de cumprir os prazos habituais do salto de gerações. Nesses anos perdidos, sem uma equipa B onde crescer, sem oportunidades na equipa principal (só o Sporting de Bento encontrava minutos para os mais novos, mais por necessidade que por vontade) os sucessivos empréstimos pela Europa atrasaram o desenvolvimento dos jogadores e a sua relação com o futebol português. Os resultados ressentiram-se mas, sobretudo, foi a falta clara de opções para a equipa A que deixou evidente que algo tinha sido muito mal planeado anos atrás. O fim das equipas B, o crescimento de jogadores estrangeiros a ponto de desfigurar totalmente os planteis dos principais clubes e a despromoção de vários emblemas conhecidos por lançar jovens com potencial estiveram a ponto de dar o golpe de misericórdia à formação do futebol português. Ninguém o diria olhando para uma equipa que marca muitos golos, sofre poucos, joga bem e impressiona.
Na actual geração dos sub21 há muito poucos jogadores que não tenham passado pelo universo das equipas B.
Saltaram dos juniores como os melhores da turma para equipas preparadas para estabelecer a ponte com os A. Jogam na II Liga mas, o mais importante, é que jogam. Ocasionalmente são convocados e treinam com os mais velhos. Empapam-se de futebol de elite cada vez mais cedo, com idade de juniores muitos deles. E parecem ser alunos que aprendem rápido. Rui Jorge entendeu isso, descartou muitos dos jogadores que ainda podia convocar, acima dos 21 anos, consciente que eram os sub20 que traziam essa nova rotina e dinâmica tão necessária aos planos da selecção. Estes jovens estão entre as listas dos futuríveis de muitos clubes europeus. Alguns como Tiago Illori ou Bruma já lá andam. Outros, como William Carvalho, João Mário, Bernardo Silva, José Sá, Paulo Oliveira, Tiago Silva, Ricardo ou Tozé algum dia lá chegarão. Há cinco anos atrás todos eles teriam sido emprestados pelos seus clubes para rodar. Agora fazem a ponte entre dois mundos.
José Sá, impressionante guarda-redes, é a prova viva de que o projecto das equipas B sempre fez sentido. O Maritimo, o clube onde actua, nunca desistiu dele e graças a isso tem sido uma constante fábrica de jogadores interessantes, com capacidade para recrutar jovens promessas noutros clubes. Sá, formado no Benfica, sabia que não iria estar nunca nos planos de um plantel instável e não quis cair no erro de muitos colegas e viver de empréstimos alheios. Formou-se no Funchal e hoje já não é o futuro. É o presente.
Luis Martins e Sérgio Oliveira são os mais veteranos. Pertencem à geração que sofreu na pele esse desnorte dos grandes. Ambos foram "queimados" pelos seus respectivos clubes e encontram agora em emblemas mais modestos como o Gil Vicente e o Paços de Ferreira os minutos que precisam. São a lembrança do que se perdeu, potenciais Bruno Gamas e Paulo Machados recuperados a tempo.
A falta de dinheiro de muitos dos clubes portugueses foi um dos elementos que propiciou o arranque das equipas B. Aproveitar cada vez mais a prata da casa em época de crise revelou-se uma solução elementar, algo que alguém se tinha esquecido com o passar dos anos. Sporting e Vitória de Guimarães entendem-no melhor que ninguém. Com graves problemas financeiros, os leões voltaram a virar-se para a magnifica academia de Alcochete. Bruma e Ilori já saíram mas Betinho, William, João Mário, Nuno Reis, Cedric, Guedes, Esgaio, Ribeiro, merecem que alguém os tenha em linha de conta para o futuro. Paulo Oliveira, Josué, João Amorim, Ricardo e Tiago Fernandes (ambos contratados pelo FC Porto), representam a mesma solução para o mesmo problema mas a norte.
FC Porto e SL Benfica têm trabalhado com outro ritmo nesta equação, até porque as suas prioridades (e o core do seu negócio) é diferente. Tozé, Rafa, Podtwaski e Tiago Ferreira, no Porto, e Ivan Cavaleiro, João Cancelo, Bernardo Silva, André Gomes e Miguel Rosa, em Lisboa, têm tido poucas ou nenhumas oportunidades na equipa principal mas jogam regularmente com os B à procura do seu melhor momento. O talento está lá, o acumular de minutos e de erros é fundamental. A estes juntam-se os jogadores resgatados da diáspora (um trabalho que também tem sido, progressivamente, feito para contrariar anos de vazio) e os talentos singulares que brotam pontualmente (Tiago Silva, Ricardo Horta, Ronny Lopes). Uma amálgama de qualidade filha dos novos tempos, o de um Portugal renascido e ambicioso.
Olhando para a fraca qualidade do plantel principal escolhido habitualmente por Paulo Bento, é fácil imaginar que muitos destes internacionais sub-21 estão chamados a bater à porta da equipa das Quinas mais cedo ou mais tarde. Dependerá, sobretudo, do seleccionador, dos jogos de interesses que controlam os destinos da selecção e dos planos de futuro. Há qualidade técnica e táctica para que muitos destes futebolistas, alguns já com minutos importantes, ambicionem algo mais. Os 16 anos de Alen Halilovic, recentemente internacional com a Croácia, ou os casos de Adam Januzj permitem entender que no futebol a idade é um critério relativo quando o talento e qualidade existe. Pensar que está aqui a base de uma nova geração de ouro pode ser um exagero, mas até os discípulos de Queiroz necessitaram oito anos para dar o salto de qualidade que se antecipava. Sem haver um fora-de-série da qualidade de Cristiano Ronaldo nesta geração, Portugal tem aqui opções válidas para todas as posições. E uma série de perfis que permitem imaginar que o futuro será mais risonho que este cinzento presente.
Enquanto os veteranos espalham classe e uma mobilidade que alguns pensavam perdida na memória, os mais jovens demonstram que estão preparados para dar o salto. Não existe na história do futebol uma sucessão de gerações com tanta qualidade em todos os processos do jogo. Nas posições nucleares, o aparecimento a cada nova geração de um jogador de nível máximo é o sinal mais evidente que a hegemonia da Espanha, para lá dos títulos que possa ou não ganhar, não tem fim à vista.
É fácil fazer as contas para perceber que a dupla campeã da Europa e actual campeã Mundial é, por direito próprio, a máxima favorita das próximas competições internacionais. Se alguns dos seus protagonistas principais já falam em reformar-se, eventualmente depois do Mundial do Brasil, os adeptos espanhóis sentem-se tranquilo. Basta olhar para baixo, para os mais novos, para os que vêm a seguir. Duplos campeões da Europa de sub-21, campeões da Europa de sub-19 e flamantes candidatos a vencer o próximo Mundial da categoria sub-20, ninguém questiona o presente de Espanha. Nem o seu futuro.
Essa forma de hegemonia eterna não é fruto do acaso. Há duas décadas os clubes despertaram. O impacto dos Jogos Olimpicos de 1992 foi imenso na mentalidade espanhola. Ao crescimento económico seguiu-se um crescimento emocional de um povo marcado por décadas de ditadura e uma transição desenhada para agradar a gregos e troianos. Durante essa etapa, o futebol espanhol era o dos clubes, o da luta Real Madrid e Barcelona, mas também o dos símbolos regionais. A selecção era uma amálgama de identidades sem ideias próprias que procurava imitar o que estivesse na moda, fosse a dureza alemã ou o cinismo argentino. Eram os dias da Fúria, uma equipa com alma mas sem talento, com garra mas sem ideias. A tal que chegava a cada competição com o rótulo de eventual surpresa para acabar, inevitavelmente, por falhar nos momentos decisivos. Nos momentos onde é preciso ter uma ideia de jogo a que ser fiel.
O futebol espanhol aprendeu a lição. Desde a federação começou a trabalhar-se no futebol de base. Os clubes foram incentivados a seguir pelo mesmo caminho. Uns fizeram-no com mais afinco que outros. O Barcelona e o Athletic Bilbao foram excelentes exemplos de aproveitamento da formação enquanto que os clubes de Madrid preferiram outra abordagem. O tempo demonstraria quem tinha razão. Mas não foi só no treino e formação de jovens jogadores que se desenhou o futuro dourado do futebol espanhol. A nível nacional, de forma quase transversal, adaptou-se um modelo de jogo similar, um estilo de posse comum, de cultura pelo respeito do adversário e pelo conhecimento táctico das matrizes do jogo. Mais do que formar jogadores, em Espanha formaram-se jovens adultos, com capacidade mental para superar qualquer adversidade. Uma capacidade que faltou a tantos dos protagonistas da etapa da fúria e que nos momentos de maior pressão fez a diferença. O clique ganhador, a assunção de sentir-se superiores na sua forma de jogar, passos fundamentais para transformar o sucesso da base no triunfo da cúpula pirâmide.
Xavi-Fabregas-Thiago.
Iniesta-Mata-Isco.
Busquets-Martinez-Illarramendi.
A sala de máquinas do futebol espanhol é a melhor do mundo no presente. Mas também já a é no futuro imediato e no futuro mais distante. Não existe, a nível internacional, um tridente de jogadores da mesma geração tão capazes de assumir o controlo de um jogo e de pautar o seu ritmo como sucede com três gerações consecutivas de heróis espanhóis. A titularidade da selecção principal de Del Bosque é intocável. São os jogadores que Guardiola reinventou dentro do modelo desenhado entre Cruyff e Aragonés. Mas quando faltarem, os espanhóis sabem que há dois futebolistas por posição preparados para assumir o seu lugar sem que se note minimamente a diferença. Em qualquer selecção do Mundo actual, Thiago-Illarrramendi-Isco seriam titulares. Fosse o Brasil, Itália, Inglaterra, Holanda, Argentina ou Portugal. E no entanto, são apenas a terceira escolha em Espanha porque o génio de Mata, de Fabregas e de Javi Martinez os antecede, por idade, apenas e só. Não há melhor forma de coroar o sucesso de uma ideia do que sentir que está garantido o seu futuro. No caso da Espanha, a próxima década está entregue a futebolistas desenhados para ganhar, mas ganhar à sua maneira.
A selecção de sub-21 joga ao mesmo jogo que a equipa principal, mas fá-lo melhor. Com mais fome, com mais verticalidade, com mais apetite pelo golo. Eles são o que os principais eram em 2008, quando Aragonés acabou o seu projecto de forma única. Pelo meio, uma série de futebolistas que cresceram com essa fome de afirmarem-se internacionalmente e que se encontram entalados entre duas equipas de sonho. Nove jogadores para três posições que, no fundo, são apenas um curto exemplo da extensão da hegemonia espanhola.
Para cada Sérgio Ramos há um Iñigo Martinez. Para cada Arbeloa há um Carvajal ou Montoya. E um Moreno, um Koke, um Muniain ou Rodrigo. E todos esses trabalhadores talentosos como Nacho, Bartra, Herrera, De Marcos, Camacho, Aguirretxe, Parejo, Michu e os génios precoces de Canales, Jesé, Deulofeu ou Oliver. São tantos os nomes individuais que o problema é eleger. Mas aqui, apesar de tudo, não é a individualidade que faz a diferença. É o facto de todos eles pensarem, agirem e jogarem debaixo de uma ideia comum. O ritmo na equipa principal pode ter baixado, a frieza e o cinismo que foram imagem de marca de Del Bosque quando esteve inicialmente no Real Madrid fez-se sentir na África do Sul e na Polónia e na Ucrânia. Mas a qualidade dos jogadores e o valor desse espírito determinado e ofensivo permite pensar que é praticamente impossível não contar com a Espanha com máximo favorito para os próximos cinco grandes torneios internacionais.
Poucas selecções sub-21 jogaram na história como esta versão da selecção espanhola. Capaz, muito provavelmente, de vencer a maioria dos jogos disputados contra selecção principais do planeta futebol. Uma qualidade tal que permite, por momentos, esquecer que a sua antecessora, também campeã europeia, era quase tão boa. E que as suas rivais são a base habitual de projectos desportivos de larga projecção como acontece com Alemanha, Itália ou Holanda. Enquanto em Portugal se descobre, a duras penas, a consequência de abandonar-se o projecto de formação que esteve por base no sucesso dos anos noventa, Espanha demonstra uma vez mais saber qual é o caminho. O do sucesso. Para o qual tem a chave. Uma chave que parece ser de cópia única.