A União Soviética nunca venceu uma Taça dos Campeões Europeus e no seu equivalente mediático, a Champions League, o máximo que um dos seus históricos representantes conseguiu alcançar foi uma meia-final, em 1999. Eram outros dias, o último suspiro do projecto Dynamo Kiev com marca de Lobanovsky. Desde então só o Shaktar Donetsk esteve perto de superar esse feito e abraçar a glória de fazer história. Mas para Willian a glória, no futebol, vem em segundo lugar. O dinheiro está sempre primeiro.
O sorteio dos Oitavos de Final da Champions League foi nefasto para os amantes do futebol europeu.
Não porque colocou frente a frente Real Madrid e Manchester United, um dos duelos mais repetidos das noites europeias desde os anos 50, mas porque obrigou os dois favoritos a surpresa do torneio a defrontarem-se demasiado cedo. O Borussia Dortmund tem sido, talvez, a equipa mais original, atrevida e eficaz do futebol europeu pós-Pep Team. É uma equipa de critério, de criatividade, de domínio do espaço com e sem bola e, sobretudo, uma equipa jovem e sem complexos. Nota-se o dedo de génio de Klopp, forçado a fazer renascer um clube mítico das cinzas da falência financeira, e a classe dos seus protagonistas. Em dois anos, o clube perdeu dois dos seus lemes no meio-campo, Sahin e Kagawa, e mesmo assim foi melhorando. A versão actual, nessa conexão Gundogan-Gotze-Reus no apoio a Lewandowski é talvez a mais completa e fascinante das suas formações. A performance decepcionante numa Bundesliga que nunca foi objectivo prioritário, depois de dois titulos consecutivos, deixou claro que o que o clube de Dortmund queria era recuperar o troféu ganho em 1997 com uma autoridade inesperada frente à Vechia Signora.
Mas frente a frente o conjunto alemão vai ter a outra equipa que mais tem captado a atenção dos seguidores europeus no último ano. O projecto de Mircea Lucescu tem tantos anos quanto os de Klopp mas maneja outros princípios. Sobretudo investe muito mais dinheiro e procura aliar a velha organização táctica da escola soviética com o talento descarado dos jogadores brasileiros de génio que escapam ao radar dos grandes clubes. Quando o Shaktar começou a mergulhar no Brasil encontrou um filão por explorar. Pagava o que clubes de nível médio europeu não podiam pagar e que os grandes não se atreviam. Arriscaram em vários jogadores de enorme potencial e ganharam a esmagadora maioria das apostas. Uma linha defensiva moldada em casa, com o contributo do genial capitão, Dario Srna, e acompanhada dos Krystov, Chygrinsky, Rakytskiy e Rat, e a partir de aí, o génio made in Brasil. Um cocktail explosivo que já deu uma Taça UEFA, no passado, e agora podia almejar a mais, a muito mais, depois das exibições de classe e superioridade táctica contra duas equipas do perfil do Chelsea e Juventus.
Willian era um nome fundamental em todo o esquema de Lucescu.
Com Fernandinho, era o pulmão e alma do meio-campo ucraniano. No relvado, a sua omnipresença desmotivava o mais resoluto dos marcadores directos. Estava em todas as partes, finalizando, assistindo, recuperando e tapando espaços com um radar que poucos jogadores podem presumir de ter incorporado. Era o jogador com mais talento natural do plantel e aquele com maior margem de progressão internacional. Falou-se sempre do interesse de clubes ingleses (Chelsea e Tottenham) e do PSG, falou-se do papel de 10 num Brasil mais ofensivo do que nunca para a próxima Confederações. Falou-se de tudo e de mais alguma coisa, falou-se sobretudo da glória de ser um jogador diferente.
Mas no final Willian não vai estar nesse mano a mano alucinante que nos espera. Vai antes mudar-se mais para leste, para o coração da Rússia, onde os milhões do Anzhi falaram mais alto. O clube do qual Roberto Carlos é director desportivo conseguiu, com base no mesmo livro de cheques que o levou do Brasil à Ucrânia, atrai-lo para uma equipa onde já estão Etoo, Dzudasazk ou Jucilei, por exemplo. Uma equipa com potencial mas que tem desiludido, não só na liga russa como também na Europe League.
Á sua volta, no Shaktar, o médio contava com Fernandinho, Ilsinho, Alex Teixeira, Douglas Costa, Luiz Adriano, Maicon, Eduardo e o genial arménio Mkhtrayian. Um meio-campo que poucas equipas podem presumir ter ao qual se vai juntar agora outro desses talentos imensos que deambulam pelo futebol de leste, longe do radar mediático, o imenso Taison, comprado por 15 milhões ao Metalist. Com Taison e Mkhtrayin ao lado, e com Fernandinho e Hubschmann atrás, dificilmente uma equipa podia olhar para o Shaktar de cima para baixo. E no entanto, agora, sem o seu líder espiritual, Lucescu terá de repensar a sua estratégia e, sobretudo, encontrar um novo génio a quem entregar a batuta individual de um colectivo superlativo.
Willian seguramente será um jogador mais rico na Rússia e continuará a marcar as diferenças no projecto do Anzhi. Mas ao abandonar uma nave destinada à glória antes do embate decisivo, também demonstra ter uma reduzida visão de futuro. Não só vira definitivamente as costas ao escrete canarinho, agora nas mãos de Scolari, um homem que aprecia sobretudo esse conceito de grupo, como provavelmente nunca voltará a estar tão perto de emudecer a Europa com o seu génio incombustível. Rico, sem dúvida, mas um pouco mais pobre como futebolista.
Há tão poucos jogadores que podem presumir do curriculo que tem Samuel Eto´o que é dificil descartar o camaronês como um dos grandes jogadores da última década. No entanto o histórico dianteiro preferiu os milhões russos à competitividade da Serie A italiana para a surpresa de muitos. Uma mudança que no entanto se podia antecipar desde que Eto´o chegou à Europa para tornar-se na máxima estrela do futebol africano contemporâneo.
Eto´o é um jogador sem medo. Com a bola e com as palavras.
A sua saída do Barcelona, onde se tinha transformado no mais letal dianteiro da história do clube, deveu-se à falta de feeling de Guardiola, uma forma educada, como sempre, do técnico dizer que não apreciava a brutal sinceridade do camaronês num balneário onde durante os anos prévios teve fortes discussões com os pesos pesados do clube. Essa postura de Eto´o acompanhou-o durante toda a vida. Desde a sua chegada à Madrid até à sua coroação em Milão houve poucos jogadores tão genuinos como ele.
A sua mudança para o milionário Anzhi pode parecer aos mais puristas como uma opção oportunista e mercantilista. Afinal, o camaronês deixa uma das ligas mais respeitadas do Mundo - onde era uma das máximas figuras - para jogar no emergente (financeiramente) mas ainda desportivamente débil campeonato russo. E deixa-o por muitos milhões. Cristiano Ronaldo, Wayne Rooney e Leo Messi, os três mais bem pagos do Mundo ganham à volta de 13 milhões de euros ao ano. Eto´o vai ganhar 14 (inicialmente falou-se em 20) num contracto de quatro anos que o irá transformar no maior bilionário na história do jogo. O dinheiro que Eto´o ganhou com este último contracto vai de encontro à sua filosofia de vida, aquela que enunciou sem papas na lingua quando começou a afirmar-se na Liga espanhola. "Trabalhar como um negro para viver como um branco". Missão cumprida.
O avançado chegou a Barajas, Madrid, com 17 anos e muito frio.
Veio de África sem uma muda de roupa e enquanto esperava os directivos do Real Madrid no aeroporto sentiu pela primeira vez o peso do ar condicionado dos aeroportos espanhóis. E viu durante a sua adolescência na antiga Cidade Desportiva como era tratado de forma diferente por todos. Empenhou-se em triunfar pelo clube merengue e fez até parte da equipa que venceu a Champions League de 2000. Mas com a chegada de Florentino Perez e a sua politica de Galácticos as portas do Bernabeu fecharam-se definitivamente. Mudou-se para a solarenga Mallorca onde se impôs como um dos maiores dianteiros do futebol europeu e quando apareceu o Barcelona de Joan Laporta, Eto´o sentiu que estava na altura de começar a sentir o que era viver como um branco no duro mundo do futebol espanhol.
Aguentou de tudo, insultos, provocações, desqualificações e muitas criticas. Em Zaragoza, numa noite histórica na luta contra o racismo no futebol, teve o nobre acto de sair de campo quando La Romareda começou a entoar os habituais cantos simiescos que ouvia semana sim, semana não. Ganhou o respeito colectivo e no clube respondeu com golos e titulos. Muitos golos, muitos titulos.
Nunca gostou de ser segundo plano mas aguentou estoicamente o sucesso de Ronaldinho e depois o de Messi. Isso sim, foi sempre uma figura critica no balneário da vida nocturna do brasileiro e do argentino, no que o levou a chocar imediatamente com Guardiola, decidido a fazer da jovem estrela das pampas o eixo central do seu projecto. A saída de Barcelona coincidiu com a chegada a um Inter de Milão onde encontrar um técnico tão ambicioso e profissional como ele. Para Mourinho o camaronês tornou-se no joker perfeito, actuando até de defesa se necessidade havia, e com ele venceu a sua quarta Champions League (depois de ter sido o desbloqueador das duas vitórias do Barcelona em Paris e Roma) e mais uma liga, a quinta do seu historial desportivo. Mas os desafios começavam a escassear e o envelhecido plantel do Inter já não era, propriamente, o lugar ideal para ir mais longe na sua corrida contra o tempo. Chegou o Anzhi, os milhões que ele sempre quis desde os seus dias a jogar em Nkon e um desafio radical. Homem habituado a fazer o inesperado, Eto´o embarcou na viagem mais louca da sua carreira.
O curioso de tudo isto é que o Eto´o, como os seus colegas, vai viver e treinar em Moscovo, a 2000 mil kilómetros do Daguestão, onde está sediado o clube e onde só se deslocará no dia dos jogos. Uma aventura pensada até ao mais minimo detalhe e que leva a viagem do pequeno camaronês dos trópicos de África à estepe russa. Um longo cruzeiro de um homem que conseguiu cumprir todos os seus objectivos e que já pode pensar na vida de milionário que o espera quando a bola deixar de rolar...
Quando o sorteio da Champions League colocou o Barcelona no mesmo grupo que o Inter de Milão todos enfocaram a eliminatória num duelo entre Guardiola e Mourinho, entre Etoo e a sua antiga equipa. E esqueceram-se do poderio de leste. Se a Ucrânia há muito se confirmou como uma nova potência, que dizer do futebol russo? Duas Taças UEFA em quatro anos e um nível competitivo cada vez mais evidente, o futebol russo é claramente a mais forte alternativa actual às grandes ligas europeias. E ontem o Rubin Kazan provou, uma vez mais, que é perigoso subestimar a armada russa.
Alvalade, Maio de 2005. O Sporting cai, estrepitosamente, aos pés do CSKA Moskow e perde a primeira final da Taça UEFA que disputa. No seu próprio estádio. Os russos celebram o seu primeiro trofeu europeu. Manchester, Maio de 2008. O atrevido Zenith surpreende tudo e todos e arrebata a Taça UEFA aos escoceses do Glasgow Rangers com uma exibição estelar das suas maiores figuras. Dois triunfos europeus que fazem da Rússia a segunda nação com mais vitórias em provas europeias nos últimos cinco anos, apenas superada pelos 4 trofeus espanhois. E mesmo assim as equipas russas continuam a ser olhadas com desprezo.
A recuperação económica russa pode demorar uns meses mas o elevado nível dos salários praticados na liga russa tem garantido um aumento de competetividade na prova. Os grandes jogadores locais demoram cada vez mais em sair dos seus clubes de origem. E cada vez há mais jogadores estrangeiros de nível a chegar à liga. Do leste da Europa - sérvios em particular - e da América do Sul. Longe vão os dias em que as equipas russas se dedicavam a contratar jogadores sem nível. Hoje são equipas bem preparadas tacticamente, com imensos recursos e planteis equilibrados. Lançam jovens promessas, acariciam os seus melhores cracks e seduzem jogadores de ligas aparentemente mais mediáticas. E na Europa começam a fazer cada vez mais estragos. Perguntem ao Manchester United, que diante do Zenith perdeu a Supertaça Europeia. Perguntem ao Barcelona. Que ontem provou o veneno russo.
No jogo do Camp Nou o Barça foi superior. Mas não foi suficiente.
A armada defensiva do conjunto russo esteve impecável. Impediu a fluída circulação de bola do tridente mágico do ataque catalão e travou os lançamentos letais de Xavi desde a origem. Marcou nas poucas oportunidades que teve e não se limitou a defender o resultado. Sempre que tinham a bola, os russos lançavam contra-ataques venenosos que levavam os adeptos blaugrana ao desespero. Foi uma vitória justíssima de um conjunto que só agora se estreia na alta roda. Que atacou menos e teve menos posse de bola. Mas que foi tremendamente eficaz. E que já logrou roubar pontos aos dois favoritos e que aparece como um claro candidato aos Oitavos de Final. Quem diria?
Nem por isso. O conjunto da longinqua estepe russa de Kazan não é só o campeão russo em titulo, algo pouco habitual fora do circulo de Moscovo e St. Petersburg (desde que nasceu a liga pós URSS só o Alania da ponta mais a leste da Rússia conseguiu vencer a liga fora deste duplo eixo urbano). É o actual lider da prova, a par do Spartak Moscow, e tem tudo para revalidar o trofeu. Algo que nenhum conjunto consegue há largos anos numa prova cada vez mais competitiva e que acenta em quatro conjuntos fortíssimos como são Spartak, CSKA, Zenith...e Rubin.
Uma equipa orientada pelo fervoroso Kurban Berdyev (que passa todos os jogos com um rosário na mão) mas que longe do fanatismo religioso, está montada na mais lógica táctica pura. Um fabuloso lateral esquerdo, o argentino Ansaldi, um meio campo fortissimo com Ryazantsev, Dominguez, Semak e Kaleshin e um ataque eficaz sob os designios de Gokdeniz Karadeniz, um turco adorado nas bancadas de Kazan, foram suficientes para trovar o todo poderoso campeão europeu.
O Rubin já tinha vulgarizado o Inter na Rússia e ameaçado o Dynamo em Kiev. Agora tem 4 pontos e receberá os dois rivais directos ao apuramento na longinqua estepe. Só tem de se deslocar a Milão, um terreno cada vez mais acessível. A disciplina táctica russa e as temiveis condições que Barcelona e Dynamo vão encontrar, deixam antever dois duelos temíveis. No final, hoje, há poucos que possam antever que o campeão russo não estará nos 16 finalistas. Num grupo cada vez mais equilibrado o inesperado pode mesmo suceder. Com o pior rosto do Inter e Barcelona a surgir e a intermitência do Dynamo Kiev, a fase pode mesmo terminar com um vencedor surpresa. Uma equipa que hoje, poucos, se atreveriam a desafiar.