Anfield Road é pasto de mitos únicos e memorias que ultrapassam qualquer dimensão clubística. É também um estádio que vive esfomeado de títulos depois de um banquete que durou sensivelmente mais de duas décadas. De reis do Mundo a eternos perdedores, a saga triste da Kop encontrou em Luis Suarez o antídoto perfeito à indigestão. Há muito mais neste Liverpool - no seu treinador, na sua gestão directiva, no plantel - do que o uruguaio. Mas Suarez é a alma dos Reds e o único jogador que lhes permite sonhar com regressar ao passado onde foram felizes.
Um estádio que viu jogar, entre tantos, a Keegan, Dalglish, Rush, Barnes, Beardsley, Souness, Owen, Fowler, McManaman, Torres, Gerrard, Alonso ou Toshack deveria contemplar as maravilhas de Suarez como algo habitual. Algo parte do seu histórico ADN. Mas a seca de glórias, títulos e euforias é tal que hoje o que vemos o dianteiro uruguaio conseguir parece saído de um conto de fadas. Como se Anfield fosse St. Mary´s, Craven Cottage, Hillsborough ou qualquer outro estádio que não aquele que povoou a ilusão de miúdos e graúdos durante mais de quarenta anos.
Hoje, seguramente, impulsionados pela euforia, ouviríamos muitos adeptos dos encarnados de Liverpool dizer que Suarez não é menos que qualquer um desses jogadores. Os números poderiam dar-lhes a razão. O seu arranque de temporada não tem igual em toda a Europa. Nem os brutais números de Cristiano Ronaldo se podem comparar ao que Suarez tem feito desde que acabou a sua suspensão. É o máximo candidato a vencer o prémio de Melhor Jogador e Goleador da Premier League...e a ainda vamos pelo Boxing Day. Os seus números podem permitir-lhe sonhar com a Bota de Ouro - mesmo que Ronaldo e Messi, se recuperado a tempo, continuem a ser de outro planeta - e ao Liverpool de pensar em algo diferente. A equipa histórica de Anfield não se qualificou para a Europa, o palco onde a lenda se fez real. Para muitos era mais uma oportunidade para fazer reboot e começar do zero. Para a inteligente direcção do clube foi o ponto de partida para um modelo de gestão racional a médio prazo. Brendan Rodgers, um dos melhores treinadores britânicos, já tinha demonstrado com o Swansea daquilo que era capaz. Em Liverpool apenas precisava de duas coisas: tempo e jogadores capazes de entender a sua filosofia. Conjugados os elementos o resultado está à vista.
Não, o Liverpool não é - malgrais tout - candidato a vencer a Premier League.
A qualidade dos planteis de Manchester City e Chelsea - os favoritos reais - e o grande momento do Arsenal estão por cima da gesta de Suarez e companhia. Mas voltar à Champions League - com um Tottenham em hara-kiri e um Manchester United a passar a sua própria fase de transição - é algo perfeitamente possível. Rodgers tem o plantel, a carga de jogos adequada e tem Suarez, um diferenciador fundamental.
Actualmente o papel do uruguaio é único em todo o futebol inglês. Nem o génio de Ozil com os gunners, nem a grande época de Óscar com os Blues, o talento de Aguero dos Citizens ou o apetite goleador de van Persie, que no ano passado salvou os Red Devils - estão à sua altura. Suarez tem marcado, assistido e gerado ilusão. A sua associação com Sturridge permite lembrar outras duplas históricas do passado. Os Fowler/Heskey-Owen, Beardsley-Rush, Toshack-Keegan podem dar a sua bênção a uma parceria que tem feito estragos por onde quer que passa. Mas os homens do golo são apenas o culminar da ideia de Rodgers, um manager que sabe investir e trabalhar os seus jogadores. A ponto de forjar um quarteto defensivo replecto de jogadores de low profile num dos mais eficazes da prova. De dar a Gerrard um novo sopro de ar na sua decadente carreira. E de encontrar espaço para ir rodando entre Coutinho, Henderson, Allen, Leiva, Sterling e Moses. Todos jogadores de classe média, salvo talvez o potencial tremendo do brasileiro, mas que aprenderam a jogar em conjunto de uma forma espantosa. O tempo que o técnico precisava em 2012/13 começou a dar os seus frutos. Com alguns tostões e investimentos a médio prazo, o Liverpool está progressivamente a voltar a sentir-se grande numa liga onde todos os seus rivais vivem muito por cima das suas possibilidades.
No meio deste furacão, Suarez é o íman emocional. Marca de todas as formas, assiste com uma frieza que lhe era desconhecida e até a sua natural apetência para as polémicas foi substituída com uma inesperada prova de devoção (bem remunerada) transformada na renovação mais esperada pela Kop desde que Gerrard rejeitou as investidas de Mourinho para juntar-se a Lampard na sua primeira etapa ao serviço do Chelsea. Com o uruguaio num estado de forma absolutamente demolidor, o Liverpool encontrou forma de somar mais de metade dos pontos dos que já tinha a esta altura em toda a época passada. A dois pontos do líder, o Arsenal, os próximos dois meses serão fundamentais para dar forma a um topo de tabela confuso onde a liderança dos gunners se encurtou abrindo a luta real a Chelsea e City e colocando o Pool e Everton como inesperados contenders.
Suarez é provavelmente uma das melhores noticias para o futebol europeu. O jovem que o Ajax descobriu e trabalhou desde a base a ponto de o transformar num dos mais letais avançados do Mundo é um dos protagonistas individuais do ano. Pertence a essa raça de génios, como Ibrahimovic, van Persie, Ribery, Robben, Iniesta ou Falcao que mereciam um reconhecimento suplementar mas que pagam o preço de coincidir no mesmo tempo e espaço que dois extra-terrestres do futebol. Ainda assim, o uruguaio poderá sentir-se recompensado. Esta pode, muito bem, ser a sua temporada de sonho!
Cansa ouvir falar de prémios, de goleadores e artistas a esta altura do campeonato e ter de voltar a repetir a mesma conversa de sempre como se o futebol fosse, exclusivamente, um fenómeno ofensivo. Sabendo que para um jogador defensivo vencer um prémio individual tem de vir acompanhado de um sonante prémio colectivo de selecções (Cannavaro, Sammer) convém ter em presença que vivemos a era de um eixo defensivo perfeito e um dos mais completos da história do futebol internacional. Em Madrid o talento de Casillas, Pepe e Sérgio Ramos vale tanto ou mais do que os golos de Ronaldo, as assistências de Ozil ou a magia de Di Maria.
Imaginem a gala do Ballon D´Or sem Messi, Ronaldo e Iniesta em palco.
Sem Falcao e Drogba, sem Xavi e Ozil, sem Pirlo e Silva, sem Schweinsteiger e Neymar. Parece impossível e no entanto, se os adeptos e os votantes entendessem que no futebol é tão difícil defender como atacar, talvez o pódio pudesse ter três rostos inesperados. Mas igualmente justos. Talvez comece a ser a hora de pensar em valorizar, como se merecem, os outros artistas do beautiful game.
Iker Casillas é, como foi Gianluigi Buffon, vitima de si mesmo, da sua grandeza, omnipresença. Do seu carácter de líder e do seu low profile como estrela mediática. Em 2006 muitos não entenderam o Ballon D´Or de Cannavaro quando em campo tinha estado Buffon. Em 2008, 2010 e 2012 alguém poderá dizer o mesmo porque se houve um guarda-redes na última década que esteve ao nível do italiano, foi Casillas. O "santo" não se limitou a salvar Espanha nos momentos decisivos, consequência da sua especulação com o resultado, como também é o melhor exemplo de integração e amizade que reina no balneário de uma selecção que com Aragonés se aprendeu a unir e que sobreviveu mesmo à "guerra cívil" Barça-Madrid dos últimos anos com a cabeça erguida. Casillas merece mais do que qualquer outro jogador o prémio de este ano e se o futebol fosse realmente um desporto de onze contra onze, o prémio seria seu. Infelizmente, a maioria dos analistas, jornalistas e adeptos, pensa no jogo apenas partindo do principio do 4-4-2, jogo de dez, onde o guarda-redes é um bicho à parte. Uma sina que só Lev Yashin, demasiado grande para estas coisas, conseguiu fintar.
Em Madrid, Iker continua a ser o melhor, de longe, e o mais excitante dos guarda-redes. Não tem a escola de libero blaugrana que destaca Valdés, outro guarda-redes imenso, mas é o mais completo e fascinante dos números 1 mundiais. Em 2014 será a primeira grande arma de Espanha para atacar o quarto título consecutivo. Em 2013 quererá cumprir o ciclo que começou em Hampden Park, 2002, e vencer a sua segunda Champions. Na época passada fez tudo, até parar dois penaltys, e até nisso se destacou por cima de qualquer colega. De qualquer jogador.
Mas se Iker é um guarda-redes maravilhoso, Pepe e Sérgio Ramos são uma dupla invejável, um seguro de vida para qualquer equipa de estrelas.
Em 1988, o técnico italiano Arrigo Sacchi foi increpado pelo holandês van Basten. Perguntou-lhe o avançado porque é que Sachi elogiava sempre a defesa nas conversas de equipa se ele é que era o goleador da equipa, o homem que fazia a diferença. Sachi ouviu, tranquilamente, e depois desafiou van Basten a escolher outros cinco colegas para jogar contra a sua defesa de quatro intocável num jogo a meio-campo. No final do treino, os avançados não tinham sido capazes de marcar um só golo e van Basten percebeu que se ele era a estrela, o trabalho de Baresi, Maldini, Costacurta e Tassoti era fundamental.
Ramos e Pepe complemetam-se. São os dois melhores centrais do mundo, cada qual na sua especialidade.
Pepe é o mais guerreiro dos dois, aquele que joga mais no limite, mas também o mais importante para o jogo de pressão que procura Mourinho. Sobe as linhas defensivas, exerce de trinco com facilidade e não tem problemas em utilizar o seu poder físico para ganhar a batalha do meio-campo surgindo, várias vezes, a pressionar o médio defensivo rival sem perder olho à sua posição. Apanhar Pepe desprevenido é raro e que lhe ganhem no um contra um inédito. Pepe tem defeitos. É um defesa duro, da escola Nobby Stiles, ao mesmo tempo que impõe liderança, como Baresi. É o verdadeiro líder do Real Madrid, no terreno de jogo e junto dos adeptos. É o único capaz de mandar calar as vedetas, como Ronaldo, e de dar o corpo pela causa, o gladiador perfeito para um Mourinho que sabe que a defesa é a base do sucesso de qualquer técnico.
No FC Porto contou com Ricardo Carvalho e Jorge Costa (a sua ideia original era manter o capitão com Jorge Andrade) e soube rodear-se de um Pedro Emanuel para os jogos mais complicados, também ele um líder no terreno de jogo. Em Inglaterra fez da dupla Terry-Carvalho a melhor do Mundo, muito similar à actual, com Terry como defesa mais de confronto e Carvalho mais táctico. Em Itália foi a vez de Lucio e Samuel darem corpo ao ideário táctico de Mourinho e depois de Ricardo Carvalho desligar do futebol profissional, o português encontrou em Ramos o protótipo do defesa do futuro.
Ramos cresceu como lateral e foi nessa posição que singrou em Sevilla e na selecção espanhola antes de chegar ao Real Madrid, perdido no meio de tantas contratações galácticas. Foi ganhando peso no vestuário e mais do que vice-capitão, é a alma do colectivo. No campo exibe-se de forma imperial. Com a bola nos pés tem o critério dos grandes liberos do passado e sem ela tem um posicionamento táctico invejável. Quando Pepe sobe sabe varrer a linha defensiva e quando é preciso incorporar-se, lembrando-se da sua veia de lateral ofensivo, maneja-se muito bem nos "rondos" de meio-campo. Nas bolas paradas, tanto um como outro, são peritos em surpreender as defesas contrárias e marcar golos oportunos. Sem eles, seguramente, o Real Madrid de Mourinho nunca teria batido o Barcelona de Guardiola.
Se o projecto de Tito Vilanova começa a deixar a nu as deficiências da sua linha defensiva, com um Piqué irreconhecível e um Puyol massacrado pelas lesões, em Madrid é na sua linha defensiva que Mourinho tem de armar a recuperação da sua equipa. Com Marcelo definitivamente instalado como lateral e com Arbeloa como elo mais fraco, no lado direito, o trabalho de Pepe e Ramos, junto à eficácia de Casillas, é fundamental para que os merengues sonhem em repetir os sucessos do ano passado. Para os amantes do futebol, como jogo colectivo, a presença de um destes nomes na gala de um prémio como o Ballon D´Or não seria apenas justo. Na verdade seria mais do que isso, necessário, para acreditar que o futebol é mais do que estrelas de videojogos e anúncios publicitários.
A espantosa e quase invisível mutação táctica do futebol inglês acabou definitivamente com o histórico kick and rush. A natural superioridade britânica diante dos rivais continentais espelha apenas a progressiva evolução de mentalidade de jogo que durante 15 anos transformou a esmagadora maioria das equipas inglesas. Do histórico 4-4-2 já há pouco mais do que lembranças. A Premier League agora joga-se num 4-5-1.
Depois do 2-3-5 veio WM. E anos depois nasceu o 4-4-2.
É o "b-a-b-a" do futebol. Um variação táctica que o resto do Mundo rapidamente adaptou à sua realidade. Daí partiu o 4-3-3 inventado por Zagallo, ainda como jogador. Ou o Futebol Total que se limitou a seguir a receita do futebol centro-europeu de austriacos e hungaros. E também o 3-5-2, tão popular entre sul-americanos e italianos. Por outro lado, em Inglaterra, o conservadorismo táctico pautou o estilo de jogo das equipas britânicas durante largos 50 anos. Até ao novo século não havia nenhum conjunto inglês que abdicasse de utilizar o histórico dispositivo. Com dois alas abertos. Com um falso avançado. Com um losango. Com dois médios box-to-box. Não interessa. O sistema era de tal forma básico que nenhum jogador tinha dificuldade em mudar-se de equipa a equipa. A "biblia" táctica era comum a todos. As ligeiras variações eram rapidamente copiadas e vulgarizadas. Mas ninguém se atrevia a arriscar. Durante os anos 70 o modelo de jogo funcionou. O kick and rush estava então na sua época áurea. O Liverpool de Shankly, Paisley e Fagan apostava em extremos abertos, dois médios de combate e um falso avançado. Brian Clough, mais amante do futebol de toque, preferia uma linha fixa de 4 atrás da dupla ofensiva. Busby e Ramsey foram os primeiros a ensair o que hoje se chama de 4-2-3-1, utilizando para tal o talento de Bobby Charlton. E Don Reevie apostava num modelo de losango. O impacto foi tal que, vinte anos depois, todos os clubes continuavam a utilizar a mesma dinâmica de jogo. Até que chegou a invasão estrangeira e o novo formato da Premier League. O futebol inglês começava a mudar. A ritmo avassalador.
Podem ter sido os técnicos estrangeiros como Wenger, Gullit, Vialli, Mourinho ou Benitez. Ou simplesmente, os jogadores estrangeiros. mais técnicos que possantes, que provocaram as sucessivas mutações tácticas que foram revolucionando a Premier League. A verdade é que no virar do século o futebol inglês foi, progressivamente, deixando para trás o histórico 4-4-2. Um upgrade táctico cujo o exemplo perfeito está em Old Trafford.
Sir Alex Ferguson é habitualmente acusado de um excessivo conservadorismo. Mas o Manchester United há dez anos era uma equipa totalmente diferente da de hoje. Na final de Barcelona, frente ao Bayern Munchen, o técnico escocês viveu o último momento de glória do 4-4-2 britânico. Com o passar dos anos o técnico foi percebendo que, para triunfar na Europa, era preciso encontrar forma de neutralizar o estilo de jogo mais técnico dos rivais continentais. Uma licção duramente aprendida numa derrota, na época seguinte, com o Real Madrid. Progressivamente os Red Devils foram passando a um mais flexível 4-3-3. A chegada de Cristiano Ronaldo, mais vertical e fisico que Beckham, permitiu ao técnico operar a sua mutação táctica. E foi assim que o Man Utd venceu a sua terceira Champions. Mas, mesmo aí, Ferguson percebeu que havia falhas no seu modelo de jogo. A perda de velocidade nas laterais - com os progressivos problemas para ocupar o carril direito - levava a um constante desequilibrio a meio-campo. Progressivamente o técnico foi recuando os extremos, apostando num modelo móvel. Com um veloz Cristiano Ronaldo preferia um 4-2-3-1. Agora, sem o português, a aposta é num claro 4-5-1. Foi assim que, há poucas semanas, trucidou o ingénuo Arsenal, talvez a única equipa imune a esta mutação.
A influência de José Mourinho, adepto inicial do 4-3-3 que rapidamente se transformou num 4-4-2 continental, levou a maioria das equipas inglesas a mudar de registo. O Manchester United acabou por ser uma delas. Mas não foi a única.
Progressivamente os distintos Managers da Premier - onde os ingleses começam a desaparecer progressivamente - foram abdicando do segundo ponta-de-lança. A marcação à zona - e não ao homem - anulava mais facilmente o avançado de apoio e criava perigosos desequilibrios no contra-golpe. Progressivamente esse avançado foi recuando no terreno, tal como os extremos. E do 4-4-2 passou a fazer parte de um 4-5-1.
A diferença é que este sistema táctico, habitualmente acusado de defensivo, é extremamente móvel e dinâmico. O futebol defensivo é algo que, em terras de Sua Majestade, é olhado de soslaio. E a mutação táctica deve-se menos ao desejo de defender a baliza e mais ao de controlar o jogo a meio-campo. Com esta variação táctica equipas que actuam num clássico 4-4-2 tornam-se presa fácil pela teia montada de médios centro no miolo. Assim o Chelsea de Scolari e mais tarde, de Hiddink, foi perdendo pontos em campos proibitivos. Equipas como o Fulham, Blackburn Rovers, Portsmouth ou Stoke City manobram bem a variação táctica e espalham os jogadores pelo terreno de jogo de uma forma eficaz. Hoje o Tottenham de Harry Redknapp e o Aston Villa de Martin O´Neil, são exemplos perfeitos dessa mutação. Habitualmente arrancam o jogo em 4-3-3, com extremos rápidos (Lennon, Young e Aghonbalor) e progressivamente vão recuando até formar um compacto 4-5-1. Garantem solidez defensiva e um ataque em bloco com 4 a 5 elementos, mantendo um pivot de segurança.
Dentro do espectro que é a Premier League há muitas realidades distintas. As mais particulares são as de Liverpool e Arsenal.
O espanhol Rafa Benitez é claramente da escola do 4-5-1 continental. Torres, como ponta de lança solitário, e Steven Gerrard no apoio. Atrás um quarteto de médios, com dois alas capazes de subir nos lances ofensivos e fechar nos momentos de contenção. A ausência de jogadores desta caracteristica (ao contrário do Utd que conta com operários como Fletcher, Park, Valencia ou o próprio Rooney) é uma das justificações para os constantes tropeções dos Reds. Já o francês Arsene Wenger professa outra religião. Pai do futebol de toque, o técnico do Arsenal foi provavelmente o primeiro a romper a hegemonia do 4-4-2, do qual, curiosamente, os gunners eram profetas. Com a sua equipa, apelidade em 2004 de "Invencibles", começou a construir a base do actual 4-3-3 que é, em realidade, um 4-2-3-1 disfarçado. Na época jogavam Vieira-Petit-Ljunberg-Pires-Bergkamp e Henry. Hoje são Song-Diaby-Fabregas-Nasri-Arshavin e van Persie. Os jogadores mudam, mas a filosofia mantém-se. Talvez por isso o conjunto londrino tenha sobrevivido à constante razia de jogadores. A mecanização de processos tapa as falhas de continuidade fulcrais para o sucesso a longo prazo de um projecto desportivo.
Hoje é fácil ligar a televisão e descobrir este 4-5-1 em quase todos os jogos da Premier League. Poderá vir disfarçado de muitas formas. Extremos mais avançados num enganoso 4-3-3. Dois médios mais de contenção que podem acabar por se revelar num 4-2-3-1. Mas no fundo, mudem-se os emblemas, mudem-se os protagonistas, mudem-se os mestres do bloco de notas, é indisfarçável que o 4-5-1 é o espelho tácito da evolução de mentalidade de jogo nas ilhas. O regresso ao dominio do futebol europeu - trinta anos depois - é o mais evidente resultado dessa progressiva adaptação que permite hoje às equipas britânicas estarem sempre, um passo à frente.
É impressionante como há nomes que passaram por toda a história do futebol sem receber um único prémio individual. Nomes no entanto que deixam marca mais profunda que tantos premiados descartáveis que ora vão, ora vem. Entendemos que um meio tão competitivo como é a Premiership, seja complicado distinguir um entre tantos. Mas passarem quinze anos a assobiar para o lado, isso já é mais complicado. Por isso hoje o futebol britanico está, finalmente de parabens. Ajustou contas antigas com um dos seus maiores injustiçados e coroou, já no final do reinado, Sir a um dos seus mais brilhantes cavaleiros.
Ryan Giggs não bateu Cristiano Ronaldo, Steven Gerrard, Nemandja Vidic ou qualquer outros dos potenciais candidatos a Jogador do Ano da Premier League, numa eleição dos próprios jogadores da prova. Giggs bateu a história, o passado, o esquecimento. Aos 35 anos o extremo gales venceu pela primeira vez o prémio. Sim, é verdade, a primeira e muito possivelmente a última. Imaginemos que Cristiano Ronaldo estava a caminho da sua terceira vitória. E aí podem conceber o tamanho da injustiça que se cometia, anos após ano. E se é certo que este é um prémio de carreira, também é verdade que é o reflexo directo do estilo de jogo praticado pelo Manchester United este ano, onde não há verdadeiramente um elemento que sobressaia, como passou, no ano transacto, com Cristiano Ronaldo. Apesar de já não jogar com a mesm assiduidade, foram de Giggs alguns dos golos e passes mais importantes da temporada e se se confirmar o triunfo do United na liga - o terceiro consecutivo - muito o deve ao jovem veterano gales.
Giggs é desses jogadores à moda antiga, provavelmente o maior simbolo do consulado de vinte e cinco anos de Alex Fergusson em Old Trafford. Ryan Giggs é o simbolo desse Manchester pós-Busby Babes. Não tem aquele toque de irreverencia mágica de Best, aquele desiquilibrio quase cavalheiresco de Charlton ou o espirto letal de Law. Esses tres nomes marcaram a história do United para sempre, mas o mais provavel é que daqui a uns anos se escrevem editoriais semana sim, semana não a queixarem-se de que já nã há jogadores como antes, como nos dias de Gigsy. E não haverá, certamente.
Talvez porque Giggs seja o producto máximo da espantosa escola de formação do Man Utd. O único - a par de Gary Neville e Paul Scholes - que fez toda a carreira no "Teatro dos Sonhos". Despontou numa era onde os herois eram Mark Hughes, Andrey Kanchelskis e o intratável e inigualável Eric Cantona. Foi ganhando o lugar na equipa a pulso, com os seus demoniacos sprints pelo corredor esquerdo. Giggs é hoje, provavelmente, o último grande extremo do futebol mundial. Pelo menos como o conheciamos, com esse poder de arranque, esses centros letais e essa capacidade de desiquilibrar qualquer contra-golpe. Hoje os extremos tem cada vez mais a tendencia de fechar ao centro, criando um tridente ofensivo no coração da grande area. Giggs é o oposto. É capaz de abrir o jogo como ninguém, provocando espaços no coração das defesas, fundamentais para a entrada de homens rápidos e letais como são Rooney, Ronaldo ou Tevez. Apesar de nos últimos dois anos ter jogado várias vezes no centro de campo, o gales é um homem de ala. Basta lembrar-nos das miticas arrancadas contra o Arsenal ou o golpe de efeito contra a Juventus naquela meia final histórica em 1999 no Dell Alpi.
Sobreviveu ao "fantasma" de Cantona e perdeu visibilidade com o mediatismo de Beckham. Com os golos de van Nistelrooy foi desterrado para a sombra e a explosão de Cristiano Ronaldo tornou-o quase dispensável para muitos. Mas já passaram quase vinte anos e Ryan Giggs continua a ser o trovão que dinamita qualquer defesa, o jogador que faz a diferença. Esta pode não ter sido a sua maior temporada e provavelmente Giggs vai acabar a carreira sem nunca ter jogado uma grande competição internacional com o seu Pais de Gales. Mas a época está aí a chegar ao fim e a força do Man Utd pode trazer-lhe mais um par de trofeus para juntar à sua colecção. Haverá um dia em que - tal como muitos dos colegas que o foram acompanhando - deixemos de ver o veloz número 11 rasgar aquele flanco esquerdo de Old Trafford. Nesse dia entrar-nos-á uma imensa nostalgia. E só então muitos perceberão a importancia de Giggs na história do futebol actual e chegarão à mesma conclusão: este jogador marcou uma era.