Quarta-feira, 20.03.13

José Mourinho quebrou o seu silêncio selectivo para dar uma entrevista à RTP que é como quem dá a possibilidade aos amigos de lucrarem com palavras que semana atrás semana se recusa a prenunciar onde deve, na sala de conferências de imprensa do clube que lhe paga 12 milhões de euros ao ano. E fê-lo para, entre outras coisas, denunciar a corrupção que está por detrás do Ballon D´Or. O mesmo prémio que em 2010, quando venceu a primeira edição, não pareceu ter nenhum problema. O mesmo prémio que, ano após ano, treinadores, jogadores, jornalistas e público em geral se sentem determinados a dar uma importância que, no fundo, não tem.

Vicente del Bosque venceu o Ballon D´Or ao Melhor Treinador de 2012.

Ganhou-o com mais de 10% dos votos do segundo, José Mourinho, o vencedor inaugural do prémio e 29% mais do que Josep Guardiola, a quem sucedeu no palmarés. Venceu-o com o voto maioritário de seleccionadores e jornalistas, mas não dos capitães que preferiram a figura de Mourinho. A gala foi a 7 de Janeiro de 2013. Mais de dois meses depois aparece Mourinho, qual vencido despeitado, anunciando que foi o seu conhecimento da existência de fraude nas votações que o levou a não marcar presença na gala (ao contrário de Cristiano Ronaldo, também português, também do Real Madrid, também segundo nas votações). Está no seu direito.

Os factos parecem dar-lhe razão. Paulo Duarte, seu velho amigo e antigo jogador nos seus tempos de técnico da União de Leiria, confessou que não teve oportunidade de votar porque o formulário lhe chegou para lá da data limite de voto. Uma situação comum a países como a Guiné-Bissau ou Costa de Marfim, nações que, a julgar pelo lido, votariam em Mourinho para vencer o prémio. O técnico português fala ainda de personalidades que lhe terão ligado falando na existência de boletins de voto alterados. Uma vez mais, os seleccionadores da Zâmbia e Zimbabwe queixaram-se na imprensa local que os nomes que aparecem na lista oficial da FIFA não se correspondem com as suas votações, um deles referindo até que nunca chegou a ver o formulário de foto e que alguém terá votado por ele.

Curiosamente, os amigos de Mourinho permanecem em silêncio e seguramente continuarão calados porque comprar uma guerra contra a FIFA é, habitualmente, meio caminho para ter uma carreira curta e sem grandes oportunidades. A velha raposa chamada Blatter raramente esquece estes insultos à sua honra, se é que lhe sobra alguma para mostrar ao público depois de todos os escândalos dos últimos quinze anos de presidência. Parece ser perfeitamente possível dizer que houve irregularidades e fraude nas votações do Ballon D´Or. E quê?

 

O que mais supreende - ou talvez não - nas declarações de José Mourinho é a sua percepção que os erros acontecem exclusivamente no ano em que perde.

Em 2010, quando venceu o prémio - também contra Del Bosque, então recém-consagrado campeão do Mundo pela selecção espanhola - o técnico português subiu exaltante ao palco, celebrou, dedicou o prémio e nunca se lembrou de rever a lista de votações para confirmar se faltava algum país, não fossem eles ter votado noutro técnico. Como tantas vezes sucede nas acusações aos comités de arbitragem, as palavras surgiram apenas depois de uma derrota. Não lhe retira a razão mas sim a moral de falar quando, nos momentos de glória, tudo fica guardado num baú e escondido debaixo da cama para não chamar à atenção.

Parece-me claro que um prémio com estas caracteristicas tem tudo para ser alvo de fraude. Nada resta já do velho Ballon D´Or, um prémio de glamour mais do que reconhecimento real de talento. Ao abrir as votações, muito democraticamente, a todos os capitães, seleccionadores e correspondentes da France Football do mundo, a FIFA abre também a caixa de pandora. Em países onde a corrupção está oficialmente instalada, seguramente que os votos podiam ser comprados facilmente. Em estados que seguem apenas os máximos eventos desportivos, naturalmente que a votação está condicionada aos nomes mais emblemáticos. Na Etiópia, onde a Premier é seguida com devoção, Roberto Mancini coleccionou vários pontos que não se repetiram em nenhum outro país. Nos países hispânicos e lusófonos o índice de sucesso de Messi e Ronaldo foi proporcional à influência cultural de cada um e o seleccionador espanhol, perdão, chinês, não teve problemas em votar em dois técnicos e três jogadores do seu país referindo-se ao jornal Marca como algo normal porque há sempre que votar nos seus.

O que nos leva a perguntar sobre o valor real que possa ter um prémio que se transformou num concurso de popularidade nos últimos três anos, um concurso fechado nos nomes mais simbólicos do futebol internacional, distante da ideologia inicial de um prémio que não teve problemas em celebrar os êxitos de Sivori, Masopust, Albert, Blokhin, Simonsen, Belanov, Owen e Cannavaro quando havia jogadores muito mais completos em activo, os mesmos que hoje estão destinados a vencer como condição sine qua non. O Ballon D´Or deixou de ter o prestigio e o respeito de quem via algo original e distinto na atribuição do prémio da France Football, consciente que num desporto colectivo a entronização pessoal faz sempre pouco sentido.

 

As queixas de Mourinho deixam-no, uma vez mais, nú e só ante uma das máximas entidades do jogo. Depois de ter desafiado a UEFA com a sua lista de erros arbitrais, agora o técnico português lança um dardo envenenado à FIFA a propósito do seu prémio mediático comprado a peso de ouro à família L´Equipe-France Football. O treinador do Real Madrid pode perfeitamente queixar-se em ambos os casos, até porque os momentos concretos arbitrais que cita, bem com os erros nas votações, são reais. Mas esquecer-se das mesmas particularidades quando saiu vencedor, tanto em provas europeias (Old Trafford, 2004; San Siro, 2010; quem sabe se Old Trafford, 2013 também) como na atribuição do primeiro Ballon D´Or ao melhor técnico da história apenas deixam reflectida uma pálida e triste imagem de um treinador genial consumido cada vez mais pela sombra da sua própria persona.



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Quarta-feira, 06.02.13

Houve uma altura que a imprensa portuguesa tentava vender a ideia de que a selecção portuguesa era a equipa de todos. Dos adeptos de todos os clubes, de todos os movimentos políticos, sociais, de dissidentes e apoiantes do regime, de todos os que sentiam Portugal, por cima das suas convicções pessoais. Nunca funcionou muito bem essa fórmula mas agora vive-se o extremo oposto. De ser uma selecção de 10 milhões, Portugal passou a ser o clube de um só homem.

A convocatória de André Gomes por Paulo Bento é apenas mais um prego no caixão dos que acreditam ainda no conceito de meritocracia em Portugal.

Porque se há algo que move as decisões do seleccionador - o trabalho do "treinador" Paulo Bento, deixo para outro momento - é tudo menos o mérito pessoal que estava por detrás da ideia de combinados nacionais. Quando os conjuntos internacionais se começaram a medir, muitas vezes não representavam o melhor de um país. Os problemas de transportes, o amadorismo e os interesses políticos levavam a criar selecções quase plasmadas directamente de clubes ou cidades. Em Portugal e no resto do Mundo, o mal não foi só nosso. Mas com a evolução do jogo, rapidamente ficou claro que a grande vantagem do futebol de selecções face ao futebol de clubes era a possibilidade de ver numa só equipa os melhores, os mais bem preparados ou que mais méritos lograram durante um período desportivo a jogar em conjunto. Durante a década de 60 a melhor defesa de Portugal - a do Sporting - jogava com o melhor ataque - o do Benfica - sem grandes escândalos porque era realmente dificil encontrar individualidades nos restantes clubes capazes de se sobrepor ao génio individual e à harmonia colectiva desses dez jogadores de campo. O resultado foi um terceiro lugar no Mundial de 1966.

A partir dos anos 70 ficou claro que a selecção se tinha transformado em mais um palco de batalha entre os clubes. Da convocatória de oito jogadores do FC Porto para um amigável em Vigo, com manifestação em Campanhã e um "palhaço" metido ao barulho, para acabar no quadrunvirato do Euro 84, onde se rodavam jogadores para agradar a cada cor clubística, acabando em Saltillo, um feito que comprometeu o futuro daquela que talvez foi a mais bem preparada geração de jogadores até à época, o futebol da selecção nacional perdeu essa capacidade de convocação do espírito popular. O despontar da Geração de Ouro - transformada rapidamente numa geração de emigrantes - podia ter invertido essa tendência mas depois apareceu Scolari, o conceito de família, e a selecção nacional transformou-se no clube Portugal. Hoje é o clube Jorge M.

 

Durante os últimos anos é confrangedor ver o lote de convocados de Portugal para jogos amigáveis, jogos de qualificação e torneios internacionais. Nunca vão os melhores, nunca vão os jogadores em melhor forma, vão sempre os catorze que entram na cabeça do treinador da selecção e os outros oito que o seleccionador - um Dr. Jekyll/Mr Hyde com penteado especial - convoca para agradecer a quem o colocou no posto. A quem faz negócio com o futuro de uma selecção que, sem se saber muito bem como, tem-se mantido na elite futebolística. Naturalmente, não são esses seis ou oito jogadores que contribuem para esses resultados. Esses estão lá, sem jogar, sem comprometer, mas com o cachet pessoal a subir, as comissões de venda e renovação a disparar e os milhões a entrarem sempre nos mesmos bolsos.

A prática não é nova e num país tão corrupto como o Brasil levou à demissão de um selecionador. Na Argentina é normal cada seleccionador provar 60 jogadores por mandato, como se houvesse tanto talento nas pampas. O negócio do futebol instalou-se caprichosamente no mundo das selecções e Portugal pode ter poucos jogadores de elites, mas tem o melhor dos negociadores. André Gomes sabe-o bem.

Para o jogo de hoje, o médio do SL Benfica está convocado. Poderá fazer a sua estreia como internacional. Seguramente tem um grande futuro pela frente. Pelo menos enquanto tiver o agente certo. Nem precisa de ter de esforçar-se e jogar. O seu amigo Nélson Oliveira seguramente lhe explicará que ser suplente no último classificado de um campeonato nunca foi impedimento para ir picar o ponto à selecção. Desde que tenha o agente certo. O futebol da selecção portuguesa passou a ser uma questão do agente certo. Nem mais, nem menos.

Na convocatória para um amigável de Paulo Bento - que diz que não existe muita qualidade no futebol português e que por isso convoca sempre os mesmos jogadores...onde a qualidade não é propriamente algo abundante - estão jogadores como os citados André Gomes (oito jogos na época), Nélson Oliveira (suplente raramente utilizado do Depor), Miguel Lopes (recém-aterrado em Alvalade, depois de pouco ter jogado pelo FC Porto), Sereno (o elo fraco da defesa do Valladolid), os poucos utilizados Beto e Eduardo e Bruno Alves e Danny (em plena paragem de campeonato russo). Curiosamente, todos jogadores com laços com uma só empresa de representação, a mesma que - no momento da inoportuna lesão de Micael - ajudou o seleccionador a convencer que era melhor alternativa do que jogadores que têm muitos mais minutos nas pernas como Hugo Viana ou Manuel Fernandes.

A mensagem é clara. Não importa o que vales ou quanto jogas, apenas quem te representa. Ninguém exclui a possibilidade de nas próximas convocatórias jogadores como Tozé, Fábio Martins, João Carlos, Bruma, Diogo Rosado, André Almeida ou Luisinho sejam chamados à selecção se assinarem os contratos certos a tempo. Que mais importa que o rival seja Israel, que está imediatamente à frente de Portugal na corrida ao play-off do Mundial de 2014? Se afinal, convocam-se 22 e jogam catorze, o importante é fazer amigos.

 

E claro, os jogadores do Paços de Ferreira, Estoril Praia, Vitória de Guimarães e apátridas que renegaram da grandeza do maior empresário da história do futebol, podem esquecer as quinas ao peito. Por muitos golos que marquem, assistências que dêem, kilómetros que corram, a selecção é cada vez mais um clube fechado, com quota de membro paga por uma mesma agência. A mesma que ajudou a comprar a nova casa do André Gomes, a mesma que mantém o discurso agradecido da imprensa subserviente sobre o génio ofensivo de Nélson Oliveira (quando quem joga são Pizzi e Bruno Gama) e a mesma que ajudou a transformar a selecção de todos no clube de um só.



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Domingo, 29.04.12

poucos paises no Mundo como a Itália. Uma mistura sublime de beleza natural, humana, de gentes afáveis e história a cada pedra que se calca. É também um dos países mais sujos, desorganizados, inseguros e irrespiráveis que conheço. O Calcio italiano não dista, como tudo no "belle paise", desde o seu capuccino ás suas voluptuosas mulheres, dessa realidade bipolar. Mas como a politica, a justiça e a económia, o futebol italiano também há muito que vive numa terra de ninguém, anárquica, corrupta e sem amor próprio. A decadência da Serie A é evidente e já não apenas nos números. O triste número montado pelos Ultras do Genoa exemplifica perfeitamente o estado de sitio moral em que senta o futebol no país da bota.

 

Os jogadores choram. De vergonha, de medo. Sabem o que lhes irá acontecer. Em Itália ninguém, nem mesmo o mais carismático idolo, se atreve a contrariar os Ultra.

É uma triste realidade que se vive em poucos países, talvez só a italianizada Argentina sinta a mesma dor, o mesmo buraco na alma, com o triste mas real fenómeno dos Barras Bravas. A violência no Calcio não é tão evidente, não é tão intensa, mas está lá, no mais brutal dos gestos, no mais ensurdecedor dos silencios. Os jogadores sabem-no, os directivos sabem-no e os adeptos neutrais também. Mas como sempre o italiano assobia para o lado, lança um piropo e continua a sua vida. Aqui não passa nada, nada que seja com ele.

Imagino os adeptos neutrais, pelo menos os adeptos que não roçam a loucura facciosa e suicida que compõe o complexo fenómeno dos Ultra. Quando os anos 80 radicalizou a figura dos grupos de apoio organizados, quando o dinheiro das mafias locais e o compadrio das directivas familiares lhes deram uma fatia do poder, o Ultra deixou de ser um sinónimo de apoio incondicional à inglesa para passar a ser mais um braço armado e corrupto, pronto a ficar com uma fatia do bolo em nome do amor ao clube. Em Roma a Lázio há anos que não consegue um acordo publicitário digno do seu valor de mercado porque preferiu entregar o monopólio da comercialização do seu merchandising à directiva dos seus temidos Ultras. Todos sabem isso, poucos querem falar disso e ninguém se queixa. Porque, caso contrário, há muito que os péssimos resultados desportivos da era pós-Cragnotti teriam provocado lutas, invasões de campo e ataques directivos aos directivos e jogadores. O dinheiro paga o silêncio. Em Roma, em Milão, em Turim, em Napoles, em Palermo, de norte a sul o futebol italiano há muito que se tornou alvo de escárnio. A péssima qualidade de jogo, as fracas performances das equipas, a falta de estrelas e os problemas relacionados com o doping e as apostas são apenas a ponta de um iceberg muito mais profundo e assustador. Há largos anos que o Calcio sobrevive na anarquia. Como a que levou à suspensão do Genoa-Siena.

 

Os homens da Toscânia venciam por 0-4, um triunfo categórico, indiscutivel e perfeitamente evitável tal era a superioridade teórica inicial do onze genovês. Mas o futebol é assim, cheio de rasteiras e tardes de bruxas e num duelo de rivais directos tudo pode suceder. Tudo ocorreu depressa demais para a habitual lentidão italiana. Ao minuto 54 Alberto Malesani lançou o georgiano Kaladze para o relvado. Um defesa por um avançado, com um 0-4 no marcador e a linha de água no pescoço. O grupo de Ultras sentiu que tinha a legitimidade moral para fazer-se ouvir mais do que manifestar-se nas bancadas. À boa maneira italiana, pressentiu correctamente que, fizessem o que fizessem, sairiam impunes. Lembrando-me de um Roma-Lazio de há largos anos, onde o rumor falso da morte de um adepto levou o próprio Totti a servir de correio com o árbitro face às exigências dos Ultras da AS Roma, é fácil perceber porquê.

Os lideres do movimento, os que mais lucram com os negócios paralelos feitos ás escondidas com a directiva, entraram no relvado e num gesto de humilhação moral exigiram a camisola dos jogadores. Estes sabiam a que se arriscavam se negassem. Provavelmente ataques ás suas casas, ás suas familias, aos seus carros, uma transferência apressada e pela porta pequena em Junho e o medo no corpo para sempre. É assim que funciona o Calcio e foi esse fantasma bem real que levou a que o capitão genovês, Marco Rossi, a recolher as camisolas e entregá-las como despojos. Claro que as barreiras das bancadas foram abertas com a autorização da directiva e que a pantomina montada entre lágrimas e suspiros pareceu mais assustadora para fora do que realmente foi dentro do relvado. Os jogadores do Siena sairam imaculados do relvado, tal como a equipa arbitral e o jogo prosseguiu, 40 minutos depois, com os Ultras, esses apoiantes incondicionais, de costas para o relvado. O resultado, 1-4, condenou o Genoa a cair mais dois postos na tabela, a ser ultrapassado pelo próprio Siena e a dormir no 17º lugar, apenas dois pontos à frente do Lecce com cinco jogos para o final. Foi o pretexto ideal para Alberto Malesani ser despedido, de novo, nesse habitual circo italiano de treinadores que orientam a equipa mais do que uma vez ao ano. Na Serie A os casos como o de Malesani são o pão nosso de cada dia do norte ao sul e ninguém acredita que o homem que os Ultras juraram expulsar do clube não volte algum dia a sentir-se no Luigi Ferrari. Noutro tempo, noutra época, na mesma crua e triste realidade.

O fenómeno Ultra em Itália é mais perigoso que alguma vez foi o hooliganismo em Inglaterra. Os mais selvagens e animalesco adeptos ingleses formavam-se fora do circulo do clube, existiam á sua margem e acabaram por ser facilmente domados porque nunca exerceram posições de poder real. Em Itália a situação é bem mais complexa. Não há tanta violência exterior mas por dentro os grupos Ultras minam os seus clubes, a liga e o futebol italiano em geral. Estão por detrás do fenómeno das apostas ilegais, alguns são os principais fornecedores de drogas aos jogadores e fazem cair técnicos e estrelas com um estalar de dedos. São eles quem melhor sabe manejar estes dias crueis de anarquia e também são eles em grande parte os responsáveis pelo atraso desportivo e moral em que vive aquela que foi, não há tanto tempo assim, a melhor liga do Mundo. A impunidade dos adeptos do Genoa não é nova nem sequer um exclusivo do clube. Funciona melhor como um espelho da arrogância e da impotência, da impunidade e da injustiça, da falta de escrupulos e do interesse financeiro, nomes dignos dos muitos coveiros que atiram a terra para cima do caixão podre da Serie A.



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Segunda-feira, 09.04.12

Portugal é um país de hipócritas. Um país de falsos liberais, de complexados revolucionários, de amargados sociais e de brandos costumes onde a aparência vale sempre mais que o conteúdo. Um país de faz-de-conta que continua a acreditar, na era de abertura social em que vivemos, que é possível manter os espartilhos sociais e morais de outros tempos não tão distantes. O futebol português sofre, em demasia, desses condicionantes que servem como um dos muitos entraves para um genuino desenvolvimento estrutural que termine, de uma vez por todas, com a profunda incapacidade que existe no país de se olhar no espelho e ver-se tal e qual como é.

O país gosta de ser imaginar como uma virgem de outras eras, incapaz de pronunciar certos nomes e ideias sob pena de aparentar ser menos pura do que é. Na realidade é uma velha rancorosa, incapaz de se assumir como é, com rugas, estrias e pecados escondidos que utiliza a falsa moral social para esconder tudo o que lhe vai por dentro. O futebol nacional, como reflexo perfeito do país, é exactamente igual. Não só no terreno de jogo mas em todos os meios que o fazem, popularizam e internacionalizam.

Esta semana o país que ainda não se decidiu se vai ficar sem subsidios de férias, se aceita manter-se acorrentado por mais anos do que o inicialmente previsto escandalizou-se com mais dois eventos ligados ao universo futebolistico. Fait-divers, como se diz na giria jornalistica, que ganham importância social precisamente por essa clara e preocupante falta de maturidade social e desportiva de quem vive de e para o meio. Primeiro foi a celebração de um comentador desportivo da RTP ao golo de Bruno César, nos instantes finais do Benfica-Braga, que suponha a ultrapassagem do clube encarnado na tabela classificativa aos arsenalistas. Dias depois foi o Telejornal da RTP a ser acusado de fazer propaganda ao mesmo clube, utilizando os jogos europeus da passada semana como exemplo de porquê apostar numa agência de controlo de audiências em detrimento de outra, escolhida por um canal da concorrência. Em nenhum dos casos, como diria Maradona, "se ha manchado la pelota". Mas o grito social, essa imaturidade crónica, transformou o futebol no pretexto para resolver contas pendentes.

Noutros países europeus, para fechar o circulo á volta do mesmo espaço social, politico, económico e histórico onde se move Portugal, há muito que esses pruridos sociais deixaram de fazer sentido. Há uma abertura social, no aspecto desportivo e não só, que em lugar de criar guettos sociais contribuiu para uma crescente e factável pluralidade. Se a imprensa como orgão independente continua a ser o elemento fundamental, o posicionamento ideológico, base do jornalisto do século XIX, é cada vez mais uma nova realidade. É fácil distinguir em Espanha, Itália, França, Alemanha ou Inglaterra a jornais de esquerda ou direita, progressistas ou conservadores, nacionalistas ou regionalistas, apoiantes deste ou daquele clube, deste ou daquele politico, deste ou daquele personagem. Esse posicionamento não só é mais transparante, honesto e frontal, sem medos, como deixa claro uma coisa ao público: aqui não se engana ninguém.

 

Portugal é o país dos enganos e dos desenganos mais do que do desassossego que tanto preocupava o génio Pessoa.

João Gobern era comentador do programa Zona Mixta há cinco anos. Durante cinco anos foi o que tinha sido nos anos anteriores e o que continuará a ser, adepto de um clube. Qualquer pessoa, seja um árbitro, jornalistas, técnico, jogador ou opinion-maker que escreva sobre futebol tem uma orientação clubistica da mesma forma que qualquer pessoa que se dedique á politica tem uma ideologia, que qualquer escritor tem uma corrente literária que mais o influencia e qualquer cineasta um autor que lhe serviu de inspiração e admiração durante o seu periodo formativo. Negar essa realidade, como só se faz em Portugal, é acima de tudo brincar com o público.

Mais, em todos esses países que citei há programas desportivos, como os há de tertúlias politicas, onde os convidados são-no, precisamente, pela sua filiação. João Gobern, com o qual raramente estou de acuerdo quando o leio ou ouço, limitou-se a fazer o que qualquer adepto de futebol faz, um gesto contido de celebração num momento importante para o seu clube. Não fez nenhuma declaração, não gritou, não interrompeu o colega de mesa. E não teve consciência de que o director, nesse instante, tinha optado por um plano largo em vez de um grande plano, como é habitual na maioria das intervenções tertulianas. Em lugar de aceitar essa reação com normalidade, como sempre, caiu o Carmo e a Trindade e o comentador foi despedido pela mesma estação que o contratou sabendo da sua orientação futebolistica. A hipocrisia é perigosa porque a questão não está no clube e na pessoa afectadas mas sim na falta de sentimento democrático que ainda vive á volta do futebol português onde um jogador, um treinador e um jornalista não podem ainda assumir as suas preferências clubisticas com medo a que sejam crucificados para sempre. 

O FC Porto cresceu nos anos 80 a galopar contra esta tendência, com jornalistas que rodeavam a equipa e que se assumiam como tal, muitos deles ainda no activo e com corpos técnicos, directivos e jogadores que faziam do seu "portismo", uma arma de união e comunhão com os adeptos. Hoje o clube detém uma percentagem maioritária num canal televisivo mas fá-lo a medo, sem assumir o canal como seu e com pézinhos de lã, para não ofender as virgens ofendidas. As mesmas que criticam que no canal do clube rival existam tertulias onde os adeptos desse clube defendem o seu posicionamento lógico num contexto de rivalidade desportiva. Os mesmos que criticam que a RTP, a mesma que despede um adepto de um clube por celebrar um golo em silência agora é acusada de propaganda ao mesmo clube quando utiliza um exemplo de dois jogos para provar que a companhia a quem contrata a medição de audiência é mais fiável. A hiprocrisia é tal que mesmo os adeptos mais racionais que sabem que, sem dúvida alguma, o clube com mais simpatizantes em Portugal continua a ser o SL Benfica - ainda que longe dessa mitologia dos 6 milhões que tanto se proclamou - e a competição de clubes mais popular do Mundo têm maior probabilidade de ter mais audiência que o jogo de um clube rival, o Sporting CP, também com uma franja significativa de adeptos mais em clara decadência face à sua época de esplendor social, e uma competição onde Portugal se tem dado muito bem nos últimos anos mas que mediaticamente não possuiu o mesmo peso.

É intelectualmente desonento fazer destes dois casos uma arma de arremesso porque o pior está no posicionamento dúbio e interesseiro dos jornais desportivos, de canais de televisão privados e de vários nomes da praça que falam dando a impressão que nada devem, nem a Deus nem ao Diabo. Em Espanha, um país que viveu também uma ditadura politica e um dominio futebolistico de um clube durante grandes periodos dessa ditadura, hoje a abertura social é evidente. A imprensa da capital, afecta aos clubes da capital, exerce de facto como uma imprensa nacional e a imprensa regional reforça o caracter independentista dos seus clubes, sejam galegos, valencianos, euskeras ou catalães. As tertulias televisivas são transparentes, os jornais claros e ninguém se atreveria sequer a tomar uma posição de virgem ofendida em casos similares aos que tanto têm preocupado os adeptos lusos. 

 

Os fantasmas dos portugueses são mais profundos e traumáticos do que se possa pensar e a forma como o futebol ainda é visto pela maioria da população é apenas um espelho. O país mais centralista da Europa é incapaz de conviver com os distintos sentimentos regionais e vive debaixo do espartilho das aparências que têm moldado todos os governos democráticos dos últimos 35 anos. Todos sabem que jornal X, jornalista Y e jogador Z são aficionados de um clube mas é preciso manter o silêncio, o medo continua a ser mais importante que a honestidade. As proprias instituições, sejam clubes ou empresas de comunicação gostam de jogar ao esconde esconde, confundir o público, emitir notas criticas, levantar polémica, para depois á mesa, como fazem os deputados da nação, resolver tudo com um sorriso e um vinho de colheita vintage. Não me preocupa que a RTP tenha despedido um comentador ou que haja na internet plataformas a acusar o canal público de servilismo clubistico. O que realmente me incomoda é que o futebol português seja ainda, mentalmente, uma criança.



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Sábado, 07.04.12

Quando Joan Laporta sucedeu a Gaspart como presidente do FC Barcelona a situação politica do futebol europeu vivia numa encruzilhada extremamente complexa. O grupo conhecido como o G14 fazia-se sentir mais influente do que nunca junto de Leonardt Johanssen e a ameaça de uma Superliga europeia era cada vez mais real. Laporta retirou o clube blaugrana da segunda linha desse grupo, liderado por Hoeness, Perez e Galliani, e apostou todas as fichas em Michel Platini, o homem de confiança de Sepp Blatter. O futuro deu-lhe razão e desde então sempre que se vêm em problemas, o clube catalão encontra sempre um amigo!

 

Os corredores do poder na sede da UEFA em Nyon eram estreitos para os emissórios blaugranas.

O clube era visto com maus olhos pela directiva e não passava de uma formação de segundo nivel do grupo G14, fundado por Florentino Perez, Adriano Galliani e Uli Hoeness numa reunião em Milão no ano 2000. Entre AC Milan, Bayern Munchen e Real Madrid, com o fortissimo apoio de Manchester United, Olympique Lyon, FC Porto, Juventus e Arsenal pretendia-se desenhar o futuro do futebol continental.

O papel da UEFA na criação da nova Champions League tinha sido fulcral para por em prática os desejos da elite continental mas o mandato final do presidente sueco tinha deixado demasiadas pontas soltas que os dirigentes pretendiam atar com a criação de uma Superliga europeia ao estilo NBA. O projecto nunca chegou a avançar mas o peso do G14 aumentou de ano para ano e isso reflectia-se no sucesso desportivo dos seus principais integrantes. O Barcelona, em crise depois da venda de Luis Figo e da saída de Louis van Gaal, era um mero actor secundário. E isso notava-se no Camp Nou.

Em 2003 o ambicioso advogado catalão Joan Laporta apontou á sucessão de Joan Gaspart. Prometeu trazer David Beckham, acabou por trazer Ronaldinho mas o mais importante acto de gestão foi criar uma embaixada do clube na UEFA, com Gaspart de emissário, juntando a um grupo de descontentes entre personalidades influentes e clubes insatisfeitos com o rumo económico do G14 original. Uma especie de oposição que começou a fazer-se sentir no último ano de mandato de Johanssen quando o clube apoiou declaradamente o francês Michel Platini na corrida á presidência. Florentino Perez tinha saído do Real Madrid, Silvio Berlusconi estava mais preocupado com o seu papel como primeiro-ministro italiano e o apoio da FIFA e as promessas de maior equilibrio financeiro e competitivo com as pequenas e médias nações europeias deram a Platini uma vitória surpreendente.

O Barcelona tinha acertado e começou a viver uma época de esplendor europeu inigualável no seu mágico historial.

 

Em 2006 Chelsea e AC Milan sofreram na pele a influência blaugrana nos corredores de Nyon.

Os ingleses, orientados por José Mourinho, viram o defesa lateral espanhol Asier del Horno ser expulso por agressão depois de um lance onde um então promissor Leo Messi contribuiu, e muito, na decisão final do árbitro. O génio de Ronaldinho fez o resto. Na semi-final que precedeu a coroação do magnifico conjunto orientado por Frank Rikjaard aos italianos foi anulado um golo fundamental no jogo da segunda mão apontado pelo ucraniano Andrey Shevchenko. Anos mais tarde, na celebre conferência de imprensa que lhe valeu a maior suspensão na história da UEFA a um treinador de futebol, o sadino não se lembrou dos nomes de Terje Hauge e Markus Merk. Não era necessário, o historial dos anos seguintes faria destes dois episódios meras anedotas desportivas, similares ás dos sempre polémicos Mr Leaf e Mr Ellis, os árbitros que garantiram em 1962 que o Real Madrid não pisaria a sua sexta final europeia consecutiva numa meia-final histórica com o eterno rival.

O titulo europeu ganho numa final asfixiante com o melhor Arsenal europeu de sempre foi o primeiro de uma série de três em cinco anos, um feito apenas igualado por Real Madrid, Ajax, Bayern Munchen e Liverpool.

Em 2009, o primeiro ano do glorioso e fantástico Pep Team, os adeptos de futebol renderam-se ao magnifico jogo ofensivo de Xavi, Iniesta, Messi, Etoo e Henry, talvez a equipa mais atrevida e arrojada em largos anos no futebol europeu. Mas nem esse talento inegável e superlativo consegue explicar a anormal arbitragem de Tom Ovrebo, árbitro norueguês que conseguiu aguentar o resultado até ao fantástico remate de Iniesta. Pelo caminho ficaram por assinalar penaltys e expulsões. Apesar do génio desportivo, confirmado com uma grande final em Roma, a imagem desse duelo manchou a vitória mais saborosa de Guardiola. Por essa altura o G14 tinha acabado, reformando-se na ECA, e a amizade entre Laporta e Platini era conhecida, aceite e incontestada por todos os presidentes dos principais clubes europeus, como confessou há semanas um dos vice-presidentes mais influentes do clube, Alfons Godaal,

Olhando para os três anos seguintes tem sido fácil perceber porquê.

Em 2009-10 os campeões europeus em titulo defrontaram o Internazionale nas meias-finais. Depois de uma derrota por 3-1 em San Siro, no jogo da segunda volta, o árbitro Frank de Bleckerck conseguiu, como em 2006, ver uma agressão de Thiago Motta a Sergio Busquets e reduziu o conjunto neruazzuri a 10 homens com meia hora de jogo. Foi insuficiente. Não o seria no ano seguinte com Robie van Persie primeiro, expulso cirurgicamente por rematar uma bola depois do árbitro Massimo Busacca ter apitado um fora-de-jogo. Não o seria na meia-final em Madrid com o árbitro Wolfgan Stark a expulsar Pepe depois de um lance dividido com Dani Alves como não seria no jogo da segunda mão quando Gonzalo Higuain marcou para o Real Madrid, apenas para o golo ser anulado por uma falta fantasma de Cristiano Ronaldo sobre Gerard Pique, pelo amigo do costume, o belga De Bleckerck agora elegido pela FIFA para coordenar a sua exclusiva comissão arbitral num braço da organização dirigido pelo espanhol Angel Maria Villar.

A polémica arbitragem no último duelo com o AC Milan foi apenas mais um exemplo para uma longa galeria de amigos que aparecem sempre na hora H. Dois penaltys inexplicáveis, cartões cirúrgicos e um longo sorriso que relembrou aos mais atentos que este mesmo árbitro tinha estado presente no Mónaco, no jogo da Supertaça Europeia frente ao FC Porto para garantir a enésima merecida vitória do Pep Team.

No primeiro lance, Leo Messi sofre falta clarissima de desastrado Antonini mas encontra-se em fora-de-jogo (a bola ressalta no italiano depois de um passe de Xavi o que invalida imediatamente o lance). No segundo, a bola nem sequer está em jogo quando Nesta agarra Busquets sendo depois agarrado por Puyol. O regulamento arbitral obriga o árbitro a interromper o lance e mandar repetir o canto. Kuipers optou pela decisão inédita na história da Champions League de apitar penalty. Um amigo aparece sempre quando é preciso.

 

A indiscutível qualidade futebolistica deste FC Barcelona transforma ainda mais esta profunda relação entre o clube blaugrana e a UEFA numa realidade complexa de analisar e que no futuro marcará seguramente a imagem fantástica de um projecto desportivo unico. Neste periodo de cinco anos sucederam-se duas das cinco melhores equipas da história do Barça. E no entanto, ao contrário dos principais triunfos de alguns dos seus mais simbólicos rivais, a sombra da UEFA nunca se fez sentir tanto por detrás do sucesso de um projecto desportivo como tem sucedido nos últimos cinco anos. Quando a genialidade futebolistica do Barcelona, uma equipa que vence sobretudo porque é a única no panorama internacional que não condiciona o seu jogo ao rival, mantendo-se fiel ao seu ideário, custe o que custar, não chega para resolver os maiores apertos, parece sempre que do outro lado da linha está um amigo pronto a solucionar os problemas. José Mourinho foi punido pela UEFA por denunciar uma realidade que é conhecida por todos os que vivem nos corredores do futebol e que não é inédita nem exclusiva ao FC Barcelona na história do futebol. Mas pensar que a história do futebol europeu dos últimos anos se tem feito apenas com o génio táctico de Josep Guardiola, os passes de régua e esquadro de Xavi e Iniesta e as genialidades de Lionel Messi é, sobretudo, pecar de inocência. E nos corredores do beautiful game a inocência paga-se caro e há muitos clubes da elite europeia que começam a dar-se conta dessa realidade e a sonhar com um projecto antigo.



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Sexta-feira, 09.03.12

Está claro que no futebol os títulos não são tudo. Para os adeptos do APOEL o triunfo sobre o Olympique Lyon vale muito mais que os cinquenta troféus acumulados nos últimos setenta anos. Num país que sonha acordado com a enosis com a mãe pátria, o sentimento de orgulho nacional encontrou na bola de futebol o pretexto mais lógico e genuino. Para muitos cipriotas a noite de 7 de Março entra directamente na galeria dos momentos mais significativos da história do país. O futebol faz esquecer um país dividido, desencontrado e que procura afirmar-se como algo mais que um destino turistico de sonho.

 

Pode-se explicar a magnitude do feito logrado pelo APOEL por números ou por sensações.

Mas em nenhum dos casos teremos uma ideia aproximada do que significa estar, agora mesmo, em Nicósia. O futebol transformou-se no Século XX numa das mais eficazes formas de reinvindação dos povos. O sucesso nos terrenos de jogo várias vezes espelha a própria evolução de um país ou cidade no plano económico, politico e social. No caso cipriota é preciso ir mais além. Na Europa pós-Guerra Fria só ficaram sequelas de meio século de tensões politicas num país europeu. Precisamente, o Chipre.

O país continua dividido de forma não-oficial (só a Turquia reconhece a República separatista do norte), os muros continuam a relembrar dias pretéritos e apesar dos valores de qualidade de vida serem dos mais elevados da Europa – e definitivamente da zona mediterrânica – esse fantasma de desunião teima em não largar a memória dos cipriotas. Se a esse karma politico juntamos o eterno desejo de uma imensa maioria em unir-se, de forma definitiva, à Grécia (algo planteado por inúmeras vezes nos últimos duzentos anos), torna-se fácil entender que para os cipriotas não há muitos motivos para sacar à janela a bandeira do país e celebrar um feito capaz de capitalizar a nação. No Chipre vive-se relativamente bem, a integração europeia entre 2004 e 2008 foi rápida e sustentada e depois há o imenso nada, o tremendo vazio de momentos capazes de quebrar a rotina de um centro cada vez mais atractivo para o turismo e para a gestão de recursos naturais nas águas quentes e apaixonantes de onde brotou Afrodite. Quando a bola disparada por Gomis encontrou as mãos de Chiotis, tudo fez sentido.

Nunca na história da competição rainha da UEFA uma equipa representante de um pais fora dos 20 primeiros do coeficiente UEFA chegou aos Oitavos de Final. Muito menos aos Quartos. Nos últimos oito anos é preciso recuar a 2003-04 – um ano atipico na história da prova – para encontrar um clube de um país fora do top 15 da UEFA nos Oitavos. Naquela altura o Sparta de Praga caiu de pé, mas mesmo esse feito não deixa de ser bem distinto ao que vivemos hoje. Afinal a República Checa sempre foi uma referência absoluta na evolução do futebol europeu. O Chipre, um imenso desconhecido.

 

Dentro da ilha mediterrânica poucos podem contestar a hegemonia do APOEL.

Clube fundado por gregos desejosos de unir a ilha aos destinos da sua pátria de origem, sempre foi utilizado como mecanismo de propaganda nacional para os entusiastas da enosis greco-cipriota. Há uma longa tradição de jogadores gregos no clube. Que Chiotis, o histórico guarda-redes helénico, tenha sido o herói do apuramento só reforça ainda mais o momento legendário de um clube reencontrado. O sucesso recente do APOEL espelha igualmente o crescimento de um país que só em 1960 se libertou do jugo imperial britânico, mas que quatorze anos depois se viu dividido entre a ambição turca e grega.

A indefininação nacional significou também uma crónica incapacidade de afirmar-se no terreno desportivo. A partir de 2000 o rápido crescimento económico e social do país, prévia à sua entrada na UE, começou a mudar a dinamica social. Os clubes cipriotas pagavam bem e a tempo e muitos jogadores de perfil médio de várias ligas decidiram emigrar. Kennedy e Ricardo Fernandes foram os primeiros portugueses e hoje o clube conta com quatro jogadores lusos que em Portugal nunca tiveram oportunidades e que ao comando de Ivan Jovanovic se tornaram em peças fundamentais do apuramento. A maioria dos jogadores do clube são internacionais cipriotas mas há nove nacionalidades representadas no balneário. Tudo cartas fora do baralho nas grandes ligas que, em conjunto, se metamorfosearam numa legião de invenciveis.

O APOEL, que já tinha surpreendido na sua primeira aparição em 2010 na prova, teve de passar por três Pré-Eliminatórias para chegar à fase de grupos. Eliminou albaneses (Skenderbeu), eslovacos (Slovan) e polacos (Wisla), tudo clubes de nações com perfil similar. A improbabilidade de marcar presença no top 8 do Velho Continente era tal que nem sequer surgia nas casas de apostas no inicio da competição. A sorte esteve do lado dos heróis de Nicósia. Ao contrário de outros pequenos clubes europeus como o Viktoria Pilzen, BATE Borisov ou Dinamo Zagreb, o grupo onde foi enquadrado era bastante equilibrado. Um Shaktar decadente face ao ano prévio, um FC Porto desencontrado e um Zenith irregular permitiram somar pontos importantes que garantiram um apuramento inesperado e precoce. O sorteio dos Oitavos também abria as portas ao sonho. Afinal este Olympique Lyon está longe de ser a “besta negra” dos gigantes europeus. Mas a diferença brutal de orçamentos, massa salarial, expectativas e plantel era tal que nem os homens de laranja da PAN.SY.FI, a claque oficial do clube fundada em 1979, se atreviam a sonhar com tamanha audácia. Mas o futebol, como a poesia, permite sempre fintar o brutal realismo do dia a dia.

 

Mesmo com todos estes atenuantes, imaginar uma equipa de um país que nunca esteve sequer perto de apurar-se para um evento internacional é um logro tremendo. A vitória do APOEL é também uma vitória para Platini e a sua Champions League mais plural. Uma vitória para o futebol europeu que não pode cair no jugo de uma asfixiante Euroliga. E uma vitória para o futebol do Chipre, uma nação que se tem reencontrado a pouco e pouco com a sua essência. Se nas ruas de Nicósia e nas praias de Larnaca a bola sempre fez parte da herança cultural do país, o som do hino europeu no GSP Stadium é também uma forma de agarrar pelos braços um país que navega a contracorrente e procura não perder de vista as margens de uma Europa onde se integra com a mesma certeza com que se deixa levar pelos ventos quentes do sul que roçam os ciprestes do monte Olimpus.



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Quarta-feira, 07.03.12

Entre a noite de consagração da França multicultural e o coro de assobios que a imensa maioria argelina votou à Marselha, o Stade de France vive numa eterna incógnita existencial. Construido numa zona desprezada pelos parisinos, transformado em icone da França do século XXI, nunca um estádio de futebol replicou de forma tão concisa a encruzilhada de uma nação.

 

O seu aspecto imperial faz relembrar a megalomania napoleónica.

A sua arquitectura ousada transforma-o numa especie de Versailles futebolistica. Tal como o palácio construido por Luis XIV, o governo central decidiu escolher a periferia para erguer a obra que não só deveria albergar os grandes eventos nacionais. O seu objectivo final era, sobretudo, marcar uma nova era na concepção nacional de um país com uma profunda dificuldade em entender-se como nação.

Depois de anos de disputa, discussões e polémicas, a decisão final foi tomada e a construção do estádio arrancou no bairro de Sain Dennis, um dos muitos banlieus a norte de Paris onde se reproduz a mesma dinâmica social pós-industrial que tanto desprezo provoca no coração da capital. Um bairro de emigrantes, sobretudo norte-africanos, um bairro ostracizado historicamente pelo governo de Paris de repente passava a ser o centro das atenções do projecto nacional mais importante da V República. Um contrassenso digno do puzzle moral e emocional da própria França. À medida que o estádio ia nascendo muitos suspeitavam que o divórcio entre os franceses autóctones e o estádio espelharia o divórcio que existe entre a sociedade e as suas minorias. Os habitantes de Saint Dennis não queriam ser invadidos pelo betão do império desfeito e os nomes da velha guarda consideravam um erro instalar um monumento épico no meio dos indesejados da nação.

Durante os três anos que tardou a construção de um estádio de 80 mil lugares, algo nunca visto num país onde o futebol é olhado com o desprezo dos intelectuais da esquerda e dos mais tradicionais que continuavam a ver o jogo como uma invasão social inglesa, a polémica prosseguiu. Paralelamente também a equipa francesa entrava numa profunda mutação social com a inclusão, pela primeira vez na história, de multiplos representantes da França moderna.

Aime Jacquet juntou a Barthez, Deschamps, Petit e Blanc filhos do império perdido, desde caribenhos como Henry e Thuram, a africanos como Desailly, Vieira e Makelelé sem esquecer os imigrantes norte-africanos (Zidane), arménios (Djorkaeff, Boghossian), portugueses (Pires) e argentinos (Trezeguet). Dessa miscelânea nasceu a equipa mais plural da história do futebol. Quando se anunciou que o recinto da final finalmente seria conhecido como Stade de France muitos pensaram de que França estavam os promotores a falar.

 

Claro que na noite de 12 de Julho de 1998 ninguém se importou muito.

Os maus augurios foram desaparecendo à medida que o torneio se transformou numa verdadeira celebração da integração. Os sucessos da equipa foram o maior motor de integração da história do país. A França conservadora saiu para a rua para celebrar com a França radical, os nacionalistas desfraldaram a tricolor, os emigrantes aplaudiram de pé a Marseillese, todos encontraram algo com que se identificar. A consagração no Stade de France significou a reconciliação das duas Franças e surgiu como um bom prenuncio para o futuro especialmente quando mais de dois milhões de franceses, de todos os credos, cores e origens, encheram os Champs Elyseé na maior manifestação popular desde a libertação.

Como sempre o doce sabor da vitória esconde o lado mais escuro da alma. Quando a selecção francesa começou a sua dolorosa desintegração, quando o rumor de um balneário dividido em clãs étnicos se transformou em realidade, o Stade de France viveu o outro lado da moeda, o lado escuro da sua lua. Um duelo comemorativo entre França e Argélia colocou frente a frente duas nações fortemente marcadas por uma guerra impiedosa que significou o fim da IV República, o advento do gaulismo e um dos maiores cortes sociais na história de ambos os paises. À volta do estádio a imensa maioria de emigrantes argelinos juntou-se para apupar o autocarro que trazia os jogadores franceses e aplaudir a equipa argelina.

Quando ambas subiram ao terreno de jogo as bandeiras tricolores brilhavam pela sua ausência. Depois começaram os assobios. Um long e intimidativo assobio que afogou o espectro sonoro da Marseillese. Minutos depois a invasão, as lágrimas, o choque. Imagems que cancelavam tudo o logrado anteriormente e que significava, de facto, que as politicas sociais do governo gaulês tinham desperdiçado o capital de confiança ganho com o Mundial. Meses depois os mesmos jovens tomavam os banlieus com cocktails molotov, primeiro em Paris e depois em todo o país. Le Pen bateu as sondagens e seguiu para a segunda ronda das presidenciais, a França entrou em choque quando a esquerda aceitou apoiar Chirac e o divórcio definitivo entre o modelo multiracial e a França conservadora tornou-se inevitável. Desde então, jogar no Stade de France deixou de ser uma vantagem para transformar-se numa realidade confrangedora. As bandeiras tricolores desapareceram e aumentaram os assobios ao primeiro sinal de desânimo. O público multi-étnico desapareceu e deu forma a bancadas compostas essencialmente por gauleses autóctones. Os suburbios do estádio divorciaram-se do seu ex-libris e a sua monumentalidade tornou-se mais fria e cinzenta do que nunca.

 

Se o Mundial de 1998 e o Stade de France significaram o triunfo da integração europeia, a última década da selecção gaulesa transformou o seu recinto oficial num micro-cosmos de um desalento transversalmente nacional. Apesar da selecção ser cada vez mais representativa da multiculturalidade, a França de Chirac e Sarkozy seguiu o caminho oposto ao desenhado a 12 de Julho. A obra máxima da nova França ficou de pé como simbolo do calor humano passado e da frieza humana presente. Transformou-se num gigantesco pavilhão a céu aberto, perdeu a condição de simbolo nacional e para os que passam por ele todos os dias continua com lembrança de um país que podia ter sido, mas realmente nunca o foi. O estádio de uma França que existe no nome e não na alma... que é quem dá cor ao verde do tapete.



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Segunda-feira, 24.10.11

Não deixa de ser curioso (ou preocupante) a infima quantidade de obras escritas que se debruçam sobre um desporto mais que centenário e um fenómeno global que hoje, mais do que nunca, é uma ferramente fundamental para perceber o Mundo. No entanto, entre as (insuficientes) grandes obras que versam sobre a magia que desprende o beautiful game não há um só livro que possa sequer ombrear com aquele que corre o sério risco de se tornar numa verdadeira biblia sagrada do jogo. Com Inverting the Pyramid o inglês Jonathan Wilson conseguiu muito mais do que um livro. Transformou a alma do futebol e plasmou-a no papel como da Vinci reinventou a pintura e Borges permitiu a todos sonhar um pouco mais...

Conta Jonathan Wilson que a ideia para Inverting the Pyramid surgiu num bar do Bairro Alto em Lisboa depois de uma acalorada discussão com os adeptos ingleses que acompanhou para presenciar o França-Inglaterra do Euro 2004. O jogo que definiu a classe dos gauleses e a falta de punch da Inglaterra de Erikson deixou o jovem escriba a reflectir sobre a verdadeira essência do jogo que o tinha capturado desde pequenos na cinzenta Sunderland. Colocou mãos à obra e como Tolstoi ou Miguel Ângelo, desafiou todas as leis.

Inverting the Pyramid é mais do que um livro, é um ser com vida própria.

Wilson analisa a evolução moral e estética do jogo através das suas metamorfoses tácticas. O titulo faz referência à mutação vivida do 2-3-5 do futebol desorganizado de principios de século ao 5-3-2 que algumas equipas, nomeadamente a Argentina de Billardo, aplicaram nos últimos anos como último recurso evolutivo num jogo que se dedicou a encontrar formas de anular a falta de ordem dos seus primórdios. Mas se essa mutação, factual e indismentível, é a base do trabalho, é no miolo das páginas que se encontra a verdadeira importância de uma obra que vale mais do que um manual de bolso para qualquer treinador de bancada.

A táctica, disposição das peças no tabuleiro, é o pretexto ideal para mergulhar nos ritmos, na evolução fisica e mental, na abordagem dos aspectos psicológicos e na emergência de nomes que a história preferiu esquecer, reciclando-se como lhe convém. O autor, hoje o consagrado colunista do The Guardian e editor do projecto online The Blizzard, utiliza a sua prosa eximia para chegar ao osso do esqueleto futebolistico quando a maioria dos autores se ficam pela superficie. Herrera, Michels, Lobanovsky, Cruyff e Chapman todos conhecem. Maslov, Zubeldía, Arkadiev ou Hogan nem por isso. E é nessas almas que o autor encarna a evolução real do jogo. Essa mutação em que a táctica foi forçada a acompanhar a sociedade contemporânea.

 

É dificil não ler Wilson - nesta ou outras obras - e não entender que ele é, hoje, provavelmente o autor mais esclarecido sobre os moldes em que se move e moveu o jogo durante o último século. A compreensão táctica é fascinante e certeira mas o estudo histórico e social transforma-se no verdadeiro vector da obra. Desde os dias em que os ingleses ainda exportavam o seu modelo de jogo até à formação de uma cultura intelectual futebolistica no centro de Europa que encontrou caminho rumo à América Latina e potenciou uma nova alma, mais genuina, somos convidados a conhecer épocas, personagens, momentos irrepetiveis.

O enfoque é dado, com naturalidade, aos elementos mais preponderantes do jogo de hoje. O pressing, erradamente atribuido ao Lobanovsky, o futebol total que a maioria dos estudiosos ainda acreditam ser obra e graça de Michels, o futebol directo da escola inglesa vs o futebol de passe da escola europeia, uma divisão que remonta a muito antes do que se possa imaginar e, inevitavelmente, a filosofia do não há nada mais a inventar de que tantos técnicos modernos se queixam.

Na evolução táctica do futebol o profissionalismo, a gritante melhoria das condições de treino, da alimentação e do próprio papel do jogador dentro de um desporto que passou do proletariado e colégios britânicos para as multinacionais e organismos internacionais há espaço para os acertos e os erros, as metamorfoses e e os passos atrás. Da magia de uma táctica que dependia sobretudo do individuo (como o Brasil de 70) para a cerebralidade de outra (como o Dynamo de Lobanovsky) que quase deixa de contar com o peso do individuo face ao poder colectivo, entendemos o porquê de ser tão legitimo falar de "futebóis" em lugar de "futebol".

Wilson desmonta teorias antigas, credos vigentes e fantasias assumidas por todos como realidades e demonstra que o jogo é hoje tão diverso como foi no passado e que as suas respectivas evoluções foram mais producto do momento do que, propriamente, inventos individuais absolutos. O futebol como modalidade social e colectiva ganha mais preponderância do que nunca numa obra que utiliza o individuo (e o seu génio) apenas como veículo narrativo, como se fosse a veia que faz circular o sangue por todo o corpo.

 

Ler Inverting the Pyramid é mais do que aprender o que levou o Brasil a imitar um 4-3-3 que já se utilizava anos antes na União Soviética ou pensar que a Inglaterra, o país que mais se agarrou à ideia dos extremos clássicos foi também o primeiro que acabou com eles de forma inequivoca. É olhar para o mapa mundi e saber ler como o único desporto que é capaz de parar o Mundo por completo cresceu, ganhou pernas e aprendeu a andar sozinho. A obra de Wilson, resumo perfeito do que é sentir as palpitações de uma qualquer final nos derradeiros instantes, agarra pelas entranhas o leitor e não o larga até que este chegue à conclusão que Sócrates estava certo. Cem anos depois continuamos a presumir muito e a saber muito pouco sobre o beautiful game...



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Quinta-feira, 13.10.11

Pode ser que T.E. Lawrence, na voz inesquecível de Peter O´Toole, tenha tentado fazer-nos crer que nada estava escrito mas a repetição do duelo entre um Portugal decadente e uma flamante Bósnia parece dizer todo o contrário. Em vinte anos um país que sobreviveu à maior catástrofe humana que o Velho Continente viveu em mais de meio século pode olhar olhos nos olhos no exemplo perfeito da desintegração europeia. Falamos de futebol, claro, desporto em que Portugal começa a perder argumentos e onde os bósnios encabeçam, com certa autoridade, a revolução de uma nova e pujante vaga.

Antes de que o ano acabe falaremos da Arménia, da Estónia e do Montenegro, selecções que hoje por hoje são mais interessantes e meritórias que as decadentes potências da Europa Ocidental perdidas entre elogios pretéritos e sonhos irreais. Potências como a França ou Portugal está claro. Mas entre todas essas selecções a que mais espanta, mais surpreende e, por outro lado, mais encanta, é sem dúvida a da Bósnia-Herzegovina.

Há momentos que marcam gerações. Ninguém que viveu os anos 90 com uso de razão pode esquecer as imagens de uma Sarajevo rasgada na pele, destroçada na alma. Hoje provavelmente a maior parte das ruas da cidade já não são construidas com tijolo e cimento. O mais seguro é que se sustenham com lágrimas e sangue.

Essa cidade, conhecida há séculos como a Jerusalem europeia, sempre foi a mais discriminada das capitais regionais da antiga Jugoslávia, discriminada por Tito e pelos seus seguidores em detrimento de Belgrado e Zagreb, cidades mais cosmopolitas e, sobretudo, mais eslavas. A herança muçulmana e judia fizeram da rainha das montanhas dos alpes dinários um primo pobre, olhado de lado. O mundo demorou a ter pena mas quando as imagens falaram mais alto do que todas as palavras dos corredores diplomáticos o mundo apaixonou-se por Sarajevo.

Vinte anos depois a capital da Bósnia é uma cidade diferente. Os problemas continuam lá, ninguém se engane. A corrupção, a crise económica, o desemprego e as relações institucionais no caldeirão de pólvora balcânico continuam a ser um problema. Mas como em tantos outros sitios esquecidos do mundo uma bola pode mudar muita coisa. Pode transformar uma rua de lágrimas num poço de euforia. Uma bola que rola, no próximo mês, com um objectivo claro e histórico.

 

Desde a separação da antiga Jugoslávia que as várias repúblicas que fizeram parte do ideário nacionalista de Tito usaram o futebol como o meio preferencial de afirmação nacional. Excluidos pelo Ocidente do seu brinquedo, a croatas, eslovénios, sérvios, bósnios, montenegrinos e macedónios tiveram de recorrer ao futebol (e ao basket é certo) para não deixarem o Mundo esquecer-se que eles existiam.

Os croatas foram os primeiros a brilhar, bem alto, e rapidamente se seguiram sérvios e eslovenos. Dez anos depois da extinção da Jugoslávia as três nações já tinha marcado presença tanto em Europeus como Mundiais e de forma bastante satisfatória. No meio da euforia colectiva todos pareciam esquecer-se da Bósnia, da pobre, ostracizada e semi-destruida Bósnia.

Mas a metamorfose do futebol bósnio tornou-se evidente na última década. A sua liga nacional continua a ser, em traços gerais, a mais pequena das três principais da ex-Jugoslávia (a eslovena e montenegrina são ainda mais humildes) mas a sua selecção deu um tremendo salto qualitativo. A aposta na formação local tornou-se uma realidade quando os clubes entenderam que não havia dinheiro para competir com o exterior. As estruturas foram-se melhorando a pouco e pouco e a corrupção federativa, um habitué nos dias da Jugoslávia, tornou-se menos evidente. O último problema, a tripla presidência federativa, espelhava de certa forma a identidade partida de uma Bósnia ainda orfã da guerra. Com o fim dos clãs étnicos a pujança da equipa nacional tornou-se mais evidente do que nunca. Pela primeira vez a nação sentia-se verdadeiramente unida.

No meio de tudo isto a figura tutelar do mitico Miroslav Blazevic.

Um treinador que sobrevive, sobretudo, graças ao seu tremendo carisma e que nos anos 90 foi o grande responsável pela reestruturação de outra nação recém-criada, a Croácia de Boban, Suker, Prosinecki e companhia. Com Blazevic ao leme a Bósnia começou a melhorar os seus resultados nas fases de apuramento. A isso ajudou também a chegada de uma nova vaga de jovens valores como Edin Dzeko, Asmir Begovic, Miroslav Pjanic, Vedad Ibisevic ou Haris Medunjanin que se juntaram aos veteranos Spahic, Rahimic, Muzlimovic ou Misimovic. Um onze espalhado pelas principais ligas da Europa e que se tornou num adversário temivel para qualquer selecção europeia. Ao contrário do que se supõe, um onze repleto de pequenas grandes estrelas.

A transformação arrancou em 2008. A Federação transferiu a esmagadora maioria dos jogos em casa para o mais pequeno - mas mais "quente" e intenso - estádio de Zenica que se transfou num verdadeiro fortim. A equipa começou a olhar de igual para igual com as nações do seu nivel. Em 2010 falhou o apuramento directo para o Mundial depois de sofrer na pele a superioridade da Espanha (mas batendo no sprint a Turquia) e caiu diante de Portugal no play-off. Na passada terça-feira foi outra campeã do Mundo, a França, a garantir o apuramento directo num grupo onde os bósnios voltaram a superar outra selecção com mais tradição como é o caso da Roménia. E mais uma vez o destino, esse que afinal parece estar escrito, colocou Portugal no caminho dos bósnios. 

 

Exceptuando dois ou três jogadores (se muito) o onze base português não é substancialmente diferente do melhor onze bósnio.

Zenica pode ser um inferno tão intenso como a Luz ou o Dragão (e muito mais que Alvalade) e o novo seleccionador, Safet Susic, goza de muito mais prestigio e respeito dentro e fora de portas do que o próprio Paulo Bento. O prestigio recente parece indicar, aos mais despitados, que Portugal é favorito. Longe disso, a dinâmica do momento parece indicar precisamente o contrário e são os bósnios, feridos pelo empate em Paris, quem surgem como o alvo a abater. O seu 4-2-3-1, acente no jogo ofensivo de Pjanic, Dzeko, Medjunjanin apoiado na segurança defensiva de Begovic, Spahic, Misimovic e Rahimic, propõe um modelo de jogo equilibrado e com várias soluções para os momentos mais complicados. Da solvência de Pjanic nas bolas paradas à eficácia goleadora de Edin Dzeko sem esquecer uma das defesas menos batidas na fase de qualificação, liderada por um Begovic em plena maturidade desportiva, transformam o onze dos Lirios, como são popularmente conhecidos, num durissimo rival.

Num país de 3,8 milhões de habitantes, sem uma imensa tradição futebolistica e com uma liga que anda entre a terceira e quarta divisão europeia, o mérito desta campanha é imenso. Um espelho perfeito de uma nova Europa de que fazem parte várias nações do antigo bloco de Leste que começam a superar nações históricas do Velho Continente que vivem em perfeito estado de estagnamento desportivo.

Portugal provou em Copenhague que está num lento mas claro processo de desintegração, incapaz de manter-se já nos bicos de pés que aguentou durante uma década junto das grandes potências. Faltam-lhes as forças, faltam-lhe os argumentos, faltam-lhe as ideias. À medida que nações como a portuguesa (e a belga, e a austriaca, e a escocesa, e a hungara, e a norueguesa) vão perdendo competitividade, consequência de várias decisões erradas a distintos niveis, novas nações como a Bósnia representam aquilo que estes próprios países, no passado, chegaram a representar face às potências de sempre que ainda o são hoje em melhor (Alemanha, Holanda, Espanha) e menor (Inglaterra, Itália, França, Russia) medida.

 

Uma semana servirá de pulso para entender se o processo de crescimento bósnio é decisivo e irreversível da mesma forma que os portugueses acabarão por se ver confrontados, mais tarde do que cedo, com a inevitabilidade do final dos seus dias de ouro. Portugal surge como favorito para a imprensa internacional mas na Bósnia o amor a uma pátria que há vinte anos não tinham e a lembrança dos dias de Sarajevo podem fazer a diferença. Para os adeptos neutrais, quando esse conceito ganha sentido num desporto de amor e ódios, entre ambas as nações ficará evidente quem representa o passado e quem representa o futuro. E muitos deles se lembrem das lágrimas e sintam essa canção de amor, de amor a Sarajevo, a cidade de um povo que quer quer o futebol sirva - pela enésima vez - para transformar as lágrimas em gritos de genuina alegria. Para eles o destino de sofrimento também é algo que não está escrito...



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 22:17 | link do post | comentar | ver comentários (7)

Sábado, 06.08.11

Em Pristina estão cansados de esperar. Mais de dois anos depois continuam num beco sem saída. A bola não rola, espera pacientemente uma decisão. Depois de tantos nãos, esperar é mesmo tudo aquilo que têm. O Kosovo quer ser independente. Os kosovares querem jogar futebol. Com a sua bandeira ao peito. A FIFA e a UEFA dizem que não é a hora mas a bola está farta de esperar...

Em Fevereiro de 2008 o Kosovo declarou unilateralmente a independência da Sérvia.

Foi, talvez, o derradeiro capitulo de um conflicto nos Balcãs com 17 anos de história. A Sérvia, destroçada por dentro depois de tantas guerras e sanções, fez um ultimo esforço diplomático e rejeitou aceitar a existência dessa República do Kosovo. Por uma vez o Mundo teve paciência e decidiu ouvir Belgrado antes de tomar uma decisão. De tanto ouvir as palavras ficaram presas no ar e a rápida decisão prometida pela ONU eternizou-se. E eterniza-se ainda hoje para desespero dos quase dois milhões de kosovares. O país não conseguiu a unanimidade necessária para ser considerado oficialmente um país - que conceito mais repelente esse de depender da vontade alheia para ser alguém - e procurou desfraldar a recém imaginada bandeira por outra via. O futebol, como sempre, era o caminho mais rápido. E eficaz.

Um mês depois da declaração unilateral representantes kosovares apresentaram-se na Suiça para convencer os executivos da FIFA e da UEFA a deixá-los entrar nas suas "célebres" familias. Futebolisticamente o Kosovo pertence à última divisão europeia, a mesma por onde andam as Ilhas Faroe, Malta, Lieschtenstein ou São Marino, por exemplo. Só um clube kosovar, o FC Pristina, passou pela primeira divisão sérvia. A maioria dos jogadores que podiam fazer parte de uma hipótetica equipa nacional kosovar estão divididos entre Albânia, Finlândia ou Suiça. E nenhum deles mostrou um exacerbado patriotismo que os fizesse sequer considerar a possibilidade de abdicar das regalias que têm hoje para cantar o novo hino nacional. A sua estrela mais cintilante, Lorik Cana, jogador da Lazio joga actualmente pela Albânia e não parece ter pressa para mudar. Ele, como muitos, vive também na sua encruzilhada particular.

 

Blatter e Platini foram peremptórios. Enquanto o Kosovo não for reconhecido pela ONU os kosovares têm de pensar noutras opções para jogar futebol. Oficialmente eles são uma não-nação, seja lá o que isso for. Irritar os russos e espanhóis é um preço que os dirigentes desportivos não estão dispostos a pagar. Os kosovares não têm culpa, afinal às restantes repúblicanas balcânicas houve até uma pressa ensurdecedora para dizer que sim antes do tempo. Eles pagam a factura de tempos pretéritos e sensibilidades agudas.

Mas a federação kosovar não desistiu. Os contactos com a Albânia, o país que mais apoiou o recém-constituido estado kosovar, levaram à realização do primeiro jogo amigável - que não oficial - para a selecção do Kosovo. Claro que os albaneses ganharam (3-1) mas isso importava muito pouco. Mas, mesmo assim, o Kosovo continuou a ser visto por tudo e todos como um desses estados malditos condenados a jogar entre si vezes sem conta. Estados como o Chipre do Norte, Monaco, as comunidades autonómicas espanholas, Sapmi, Greenland, Crimeia, Padania, Ocitânia, Gibraltar ou as ilhas de Man e Guernsey.

No último ano e meio os kosovares têm tentado organizar amigáveis com a maioria das federações mas a complexa situação politica tem sido, até a esse nivel, um sério impedimento. O apoio da Arábia Saudita (o Kosovo, como a Albânia, é um país iminentemente muçulmano) e da comunidade emigrante na Suiça deram a possibilidade ao seleccionador Albert Bunjaku de começar a fazer rodar alguns dos jogadores que decidiram assumir a sua condição de kosovares desde o principio. Jogadores como o guardião do Novara, Samir Ujkani, o lateral do Tottenham Ajet Sehu ou o médio do Hannover 96, Valdet Rama, jovens promessas que há dois anos teriam sido repescadas pelas selecções dos países onde cresceram (e o caso albanês continua a ser o mais evidente) e que agora começam a desenhar o futuro do futebol kosovar.

 

Parece impossível que o Kosovo possa estar na linha de partida para a qualificação para o Europeu de 2016 em França. Os timings das principais instituições não facilitam e a burocracia a essas estâncias é ainda mais gritante. Mas o sonho do futebol kosovar está bem vivo. Uma nação que espera por um milagre para não cair no esquecimento a que o futebol internacional muitas vezes devota os países de onde não saem os Messis do futuro.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 09:59 | link do post | comentar | ver comentários (7)

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