A data de fundação do FC Porto sempre foi alvo de debate. O clube existiu em várias reencarnações. Mas apesar de um historial único, a verdadeira invenção do FC Porto moderno aconteceu depois de um aceso debate na pastelaria Petúlia que levou Pinto da Costa a proclamar a sua mítica frase de "largos dias têm cem anos...". O regresso de José Maria Pedroto às Antas foi também o início de um novo clube que rompia com os erros históricos do passado e lançava as bases para o que hoje é a potência dominadora por excelência do futebol português.
Se Eusébio foi o principal embaixador do futebol português nos relvados, no banco de suplentes sentou-se durante duas décadas o seu equivalente entre os técnicos. Portugal é um país historicamente capaz de produzir excelentes treinadores de futebol, desde os dias de Cândido de Oliveira até à consagração mediática de José Mourinho. Nenhum foi, no entanto, tão influente como José Maria Pedroto.
O popular Zé do Boné não se limitou a ser um inovador. Reinventou também um clube e com ele uma cultura futebolista que se prolongou no tempo graças ao trabalho do seu braço-direito emocional, Jorge Nuno Pinto da Costa. Juntos forjaram uma dupla histórica onde ao dinamismo do dirigente se juntava a inteligência e acidez do treinador. Pedroto foi tudo enquanto esteve vivo. Jogador de excelência, um dos mais completos da sua geração. Técnico altamente preparado, o primeiro em Portugal a formar-se no estrangeiro com diploma de excelência. Ideólogo e presidente "de facto", a partir do momento em que regressou às Antas debaixo do olhar corroído de Américo de Sá e de uma cultura futebolística habituada a considerar os azuis-e-brancos como actores secundários.
Pedroto revolucionou um clube preso ao amadorismo de outros tempos. Por um lado espicaçou a moral dos adeptos portistas com declarações públicas violentas contra o poder instituído do centralismo, os "roubos de Igreja" e a preferência política pelos clubes da capital. Uma ideia que defendeu sempre, mesmo enquanto jogador, a partir do momento em que assinou não pelo FC Porto mas sim pelo Belenenses. Ao vivo testemunhou com o circuito político do futebol português se concentrava entre os grandes da capital e não esqueceu a lição. Mas Pedroto não teria triunfado se a sua mensagem fosse apenas de conflito. De portas para dentro trabalhou para mudar a mentalidade pequena de um clube que não vencia um título nacional há quase duas décadas e que antes, no seu tempo de jogador, tinha estado quase igual período de tempo sem triunfar. A mentalidade pequena, provinciana, o medo de atravessar a ponte rumo a sul para jogar longe dos adeptos teria de ser alterada para uma forte cultura de clube inspirada no modelo que Shankly tinha aplicado em Liverpool. As Antas tornou-se um fortim com Pedroto mas foi a melhoria de prestações fora de casa que permitiram a uma equipa nas horas baixas, ultrapassada pelo seu rival local, voltar ao topo da classificação.
O técnico começou a sua carreira a principio dos anos 60.
Formou-se no estrangeiro - o primeiro treinador luso em consegui-lo - e com a selecção portuguesa de juniores alcançou um título internacional que hoje seria o equivalente do Mundial sub-20. De aí passou para a Académica e o Leixões antes de finalmente chegar ao banco principal nas Antas. Foi a maior lição da sua vida. Numa época em que Benfica e Sporting dominavam a liga - com vitórias europeias à mistura - Pedroto montou uma equipa capaz de lutar pelo título pela primeira vez em quase uma década. Mas um tiro no pé do próprio clube, reflexo da gestão quase amadora de alguns dirigentes e do comportamento pouco profissional de vários jogadores, colocaram-no em posição de ruptura com o clube. Num feito quase sem precedentes uma quente Assembleia Geral levou a direcção a expulsar Pedroto de sócio e a proibir a sua entrada nas instalações do clube. Foi um golpe quase mortal na sua ambição de devolver os dragões aquela que ele confiava ser a sua posição natural.
Sem Pedroto o clube da Invicta foi de mal em pior enquanto o Zé do Boné se tornava célebre nas suas passagens por Setúbal e pelo Boavista, equipas modestas com que venceu Taças de Portugal e colocou a lutar pelo título. Foi o primeiro treinador a aplicar os conceitos básicos do 4-4-2, a cultura do futebol de posse, a troca posicional de extremos e laterais para jogar com a perna trocada. Criou uma cultura de balneário impar, um corporativismo quase britânico, e exigiu apenas aos seus jogadores que encarassem cada jogo como se fosse o último. Pelo meio foi também seleccionador nacional, conseguindo um histórico empate em Wembley contra a Inglaterra. No Porto alguns viam o seu sucesso com inveja mas Pinto da Costa, sagaz, começou a fazer os possíveis e impossíveis para o devolver ao seu posto natural. Em 1975 uma nova Assembleia Geral finalmente levantou a suspensão ao sócio e um ano depois Pedroto era treinador da equipa principal do clube apesar das suspeitas de um desesperado Américo de Sá. Condição, só uma: Pinto da Costa seria o seu braço-direito, o director desportivo na área do futebol.
Com Pedroto ao leme os títulos regressaram. Um bicampeonato entre 1977 e 1979. E com eles uma nova cultura de clube. Jogadores formados em casa como Fernando Gomes, António Oliveira ou Rodolfo foram associados a jovens promessas de zonas circundantes (Jaime Pacheco, António Sousa) e a homens da confiança do técnico das suas passagens pelo Bonfim e pelo Bessa (Octávio, Duda e Freitas). Os mesmos princípios que tinham sido a base da sua carreira foram aplicados nas Antas com maior sucesso e a cultura de clube saltou do relvado para os escritórios do estádio. O choque era inevitável e o Verão Quente atrasou em quase uma década a afirmação definitiva dos azuis-e-brancos. Pinto da Costa continuou a luta política e Pedroto exilou-se em Guimarães, com Artur Jorge ao seu lado, esperando o momento certo para voltar. Em 1982 o antigo director desportivo tornou-se presidente graças ao apelo de Pedroto aos sócios e adeptos do clube e o Zé do Boné voltou para a sua terceira e última etapa no clube que durou até à sua morte, a 8 de Janeiro de 1985.
Pedroto mudou para sempre a história do futebol em Portugal. Transformou um clube de mentalidade provinciana na máxima potência do futebol português. Inculcou nos jogadores, mas também nos dirigentes e nos adeptos a crença de que não existia nenhum rival superior se eles assim quisessem. Paralelamente minou sempre que pode o centralismo crónico do futebol em Portugal com declarações e posturas que se enquadravam perfeitamente no espírito de um país em estado ainda revolucionário. À sua morte poucos podiam imaginar no que o FC Porto se iria tornar. Poucos sim, mas Pedroto seria seguramente um deles. Com os seus discípulos - o dirigente, Pinto da Costa, e o treinador, Artur Jorge - o FC Porto não só recuperou o título nacional como iniciou a sua saga europeia. Vinte e nove anos depois a história permanece igual ao sonho de um homem que na década de 70 inventou um clube moderno do nada.
"Um pequeno passo para o Homem. Um grande passo para a Humanidade". A 20 de Julho, Neil Amstrong transformou-se no reflexo humano na lua. Não estava só. Com ele levou a alma do Independiente, o único clube que pode dizer com orgulho que esteve na superfície lunar.
Parece mito mas não o é. Algures no solo rochoso da Lua, há um pedaço de um clube argentino para a posteridade. Um clube chamado Independiente, a alma de Avellaneda, um dos subúrbios mais apaixonados pelo "futbol" de Buenos Aires. Um clube que fez de Neil Amstrong, o primeiro astronauta a pisar o solo lunar, o seu mais célebre embaixador. E no momento mais histórico do século XX, quando a voz de Amstrong pronunciou a sua célebre frase, e as suas pisadas na rocha lunar foram vistas por milhões através da televisão, o que podia ser uma pequena anedota transformou para sempre a vida de um clube de futebol. O único que esteve na lua. Quando a tripulação do Apollo 11 voltou à Terra, os dirigentes do Club Atlético Independiente fizeram pública uma surpreendente notícia. Amstrong tinha deixado na lua uma prova da sua ligação com o clube, uma marca para o resto dos tempos: uma bandeira do Independiente na superfície lunar.
Ninguém acreditou na Argentina na fábula de Héctor Rodriguez. Não só porque parecia ridículo que três norte-americanos se preocupassem com um clube de futebol (e ainda para mais, argentino) como parecia fora de qualquer protocolo deixar um elemento terrestre na lua sem um objectivo concreto para a NASA e o governo norte-americano. E assim, durante meses, os adeptos rivais do Independiente, os seus vizinhos do Racing, divertiram-se com novos cânticos que gozavam com a viagem à lua do mais famoso adepto "rojo", utilizando paralelismos com os falhanços das tentativas dos soviéticos - também eles, os "rojos" - em lograr o feito. Mas em Novembro de 1969, meses depois da histórica viagem, a tripulação do Apollo 11 chegou a Buenos Aires numa tour mundial coordenada pela NASA para apresentar os heróis dos tempos modernos ao mundo. Algum jornalista lembrou-se de perguntar a Amstrong se a louca história contada pelos dirigentes do Independiente tinha algum sentido. A resposta deixou a todos surpreendidos!
Amstrong confirmou publicamente tudo aquilo que tinha sido contado pela direcção do Independiente.
De um momento para o outro a rábula mais fantástica ganhava forma e dimensão de novela épica. Com o relato a ser dado pelo próprio protagonista da aventura. Meses antes do lançamento da nave espacial, o clube argentino abordou a embaixada norte-americana em Buenos Aires. Como reconhecimento à missão espacial, o Independiente queria associar-se ao projecto e fazer dos três astronautas elegidos - Neil Amstrong, Edwin "Buzz" Aldrin e Michael Collins - sócios do clube. A embaixada entregou ao clube fotos dos três astronautas (com o equipamento espacial) e o Independiente fez da tripulação parte da família do clube, respectivamente os sócios 80399, 80400 e 80401.
A história podia ter acabado aí, um golpe de relações públicas. Mas não. O "Rey de Copas", nome pelo qual o clube de Avellaneda é conhecido - é o terceira emblema com mais títulos internacionais do Mundo, 15, (atrás de Boca Juniores e AC Milan, com 18 cada, ainda que os milaneses contam com quatro Supertaças Europeias) queria marcar a sua presença fisicamente na viagem à lua. Semanas antes da viagem lunar, a NASA recebeu uma caixa enviada pela embaixada norte-americana na capital argentina. Dentro vinham várias bandeiras, cachecóis e camisolas do clube para os três tripulantes e a família. Chegavam com um pedido especial: deixar uma das bandeiras enviadas na superfície da lua naquela que seria a mais importante viagem da História. A carta sensibilização a tripulação e os três concordaram em levar uma bandeira a bordo junto a outros elementos que seriam depositados na lua. Quando a 20 de Julho o módulo espacial aterrou na superfície lunar, a bandeira foi colocada, juntamente com esses objectos, no satélite terrestre antes do regresso da tripulação. Amstrong confirmou então por carta à direcção do clube que tinha cumprido a promessa. Meses depois, em pessoa, voltou a fazê-lo para surpresa de todos os presentes na cerimónia organizada na embaixada norte-americana.
Até hoje, a viagem à Lua tornou-se parte do folclore emocional dos adeptos do clube. Quando o astronauta faleceu - a 25 de Agosto de 2012 - os adeptos do Independiente homenagearam-no com uma ovação póstuma de vários minutos no primeiro jogo em casa da equipa. Afinal, graças a este estranho americano, podiam olhar para a Lua de noite sabendo que parte da alma do clube também os iluminava durante a noite.
Testemunhar a história em primeira-mão é algo que raramente se pode fazer. E talvez, e isto é o mais estranho, é algo que poucos se dão realmente conta. Quem gosta do futebol português gostaria de ter vivido as gestas dos Violinos, a reviravolta contra a Coreia do Norte, o duelo de Eusébio e Di Stefano, o calcanhar do Madjer ou os dribles loucos do Chalana. Eu não tive essa sorte. Mas posso ver a Cristiano Ronaldo fazer o que fez ontem, em Solna. E tenho a certeza que momentos como estes, daqui a alguns anos, terão o mesmo valor que os que eu perdi.
O Futebol é uma arte, uma paixão, uma ciência. É tudo, menos um desporto.
E está em perpétuo movimento. Há pessoas que vivem constantemente no passado e outras que teimam a desvalorizar tudo o que é anterior à sua geração, não se dando conta que os que vêm a seguir podem dizer-lhe o mesmo. Conheço pessoas que fecharam-se no mundo de Eusébio, Cruyff e Best e de aí não saem. Outros que falam dos heróis da sua juventude como os grandes e custa-lhes pensar que os deuses actuais estão ao mesmo nível. E aquele que olham para os jogadores de agora como figuras nunca vistas, como se o futebol tivesse sido inventado ontem. Como as cores que há no arco-íris, as opiniões dividem-se uma e outra vez. E ninguém se irá nunca por de acordo.
A história do futebol, essa, não para. E só quem a viveu em primeira mão pode perceber, realmente, a sua importância.
Tenho um respeito tremendo pelos que viram Di Stefano, Pelé, Eusébio e Charlton jogar no seu tempo. Não são condicionados, como eu, por gravações vídeo selectivas. Não são sugestionados, como eu, por páginas e páginas de elogios e gestas. Eles estavam lá e sabem o impacto real que esses deus da bola causaram. Já nem falo dos homens das gerações anteriores porque sobram poucos os que viram a Mathews, Puskas, Meazza, Sindelaar ou Peyroteo. Essa linha de pensamento é válida para tudo. Quem cresceu com Cruyff ou Beckenbauer, Zico ou Platini, Maradona ou van Basten. Pessoas que sentiram a história na carne. Pessoas que sabem realmente, em primeira-mão, como era o antes e o depois.
Por muito que a minha paixão pela história do futebol me tenha feito perder dias e horas a testemunhar os feitos do passado, só posso falar na primeira pessoa a partir da década de noventa. Zidane, Figo, Nedved, Schevchenko, Ronaldo, Guardiola, Romário, Laudrup, Cantona, Ronaldinho, Henry, Rivaldo, Owen, Deco são nomes reais para mim, não lendas de outro tempo. Como são Messi e Ronaldo. Partilho com poucas pessoas o facto de ter presenciado o primeiro jogo profissional do argentino. Nunca o esquecerei. Para mim é como se tivesse tido essa sorte com Di Stefano, Cruyff ou Maradona. Imagino o que essas pessoas possam ter sentido, não nesse momento mas depois. Mas também vi jogar a Cristiano Ronaldo desde que era júnior do Sporting e essa sensação também ficará comigo para sempre. Os dois são e serão sempre parte da minha vida e da minha paixão pelo jogo. Seguiu cada um o seu caminho mas teimam em encontrar-se nesse panteão sagrado que a história do futebol. Eles são os que permitem entender, verdadeiramente, o que se sente quando se presencia História a fazer-se no momento. E ontem, na Suécia, eu senti estar a ver História.
Quando Cristiano chegou à selecção esta vivia a sua melhor etapa.
A chamada "Geração de Ouro" podia estar a acabar mas os que sobreviveram à razia emocional da aventura asiática tinham amadurecido. Figo, Fernando Couto, Rui Costa, Pauleta, Nuno Gomes, Rui Jorge eram peças importantes mas já não estavam sós. O trabalho desenvolvido por Mourinho no FC Porto tinha oferecido a Scolari um leque de jogadores na sua melhor etapa profissional (Deco, Costinha, Maniche, Carvalho, Paulo Ferreira, Nuno Valente, Postiga) e a formação do Sporting abria o caminho para uma nova vaga.
Ronaldo era o seu estandarte e deixou a sua marca. As suas lágrimas, que lembravam as de Eusébio em 66, eram um baptismo de fogo emocional tremendo. Talvez suspeitasse que no futuro ele estaria mais só e mais pressionado para resolver sozinho o que aquela equipa de elite falhou colectivamente. Depois de 2006 assim foi. Portugal passou a ser Ronaldo. A principio a relação começou mal. Nem ele estava preparado para a missão nem o país disposto a encomendar-se a um mal-amado, que não tinha o apoio emocional dos adeptos de Benfica e Porto, depois de ter tido símbolos muito fortes que apoiar na década anterior. Em 2008 e em 2010 Portugal foi uma sombra do que podia ter sido. A culpa, para muitos, era de Ronaldo. Só podia ser.
Afinal, o génio de Manchester era incapaz de fazer com as Quinas o que fazia com os Red Devils: decidir jogos só.
Mas o tempo passou, as limitações das gerações seguintes à de ouro ficou evidente e a pouco e pouco os adeptos começaram a entender que um homem só não faz uma equipa. E depois dos golos decisivos no Euro 2012 houve uma espécie de reencontro emocional, alimentado também por uma poderosa máquina mediática apoiada na maior base de negócio do futebol em Portugal. Ronaldo reencarnou no símbolo nacional de força forçada mas ganhou a pulso o papel. Com gestas como a de ontem.
Na Irlanda do Norte, num dia frio e onde todos falharam, fez-se ouvir como capitão. E no duplo duelo contra os suecos, deu um passo em frente. E fez história. Pela primeira vez a sua brilhante série ao nível de clubes permaneceu na selecção. A braçadeira de capitão podia estar a cair-lhe do braço, mas a ideia de liderar um grupo de homens estava já implementada na mente. Como capitão, Ronaldo comportou-se de forma memorável, finalmente à altura do peso emocional de Figo. Como herói, no relvado, foi igual a si próprio. Um jogador capaz de decidir só, agora sim, uma eliminatória equilibrada em todos os sentidos. Pela primeira vez desde 2004, desde essas lágrimas, Ronaldo percebeu o seu papel dentro do colectivo e encontrou forma de soltar-se desse peso emocional. Graças a isso, à sua paz interior - o fim dos gestos, dos comentários fora de tom, das obsessões com Messi e com prémios - Portugal ganhou um símbolo que vai a caminho de transformar-se no maior da história do país e num dos maiores da história do próprio jogo.
A caminho do Brasil, com limitações mais do que evidentes, Portugal estará longe de estar entre os favoritos. Para os que realizam apostas desportivas online, a tentação de eleger a equipa das Quinas como candidata é pequena. É a nossa realidade, apenas é preciso assumi-la e desfrutar do momento. Haverá jogadores que terão no Brasil a sua última oportunidade. Outros que começam a encontrar o seu espaço. Os sub-21 de Rui Jorge dão sensações positivas a cada jogo, e Ronaldo insiste em estar presente. Ele é, finalmente, o Vasco da Gama que a náu lusa necessitava. Ninguém lhe poderá exigir que vença uma competição que parece destinada a ser disputada pelas grandes potências continentais da Europa (Espanha, Alemanha, Itália, equipas colectivas sem grandes individualidades) e América (Brasil e Neymar, Argentina e Messi). O torneio de Junho terá vida própria. Até lá ficamos com a sensação de que jogos como estes, contra os suecos, acontecem uma vez em cada geração. Marcam um antes e um depois. São parte da história. Parte da história que nos foi possível viver e que contaremos no futuro com uma ponta especial de orgulho. Orgulho de ter visto um predestinado pegar num país e atira-lo para o outro lado do oceano!
Durante quatro anos o futebol foi o escape de uma equipa repleta de magos que desafiaram a sombra do nazismo. O Wunderteam foi mais do que uma invenção desde génio precoce chamado Hugo Meisl. Simbolo da cultura das casas de café da Viena dos anos vinte, foi um grito de independência de soldados com a bola nos pés contra o pânico de uma guerra que ninguém podia evitar. Duas décadas antes da consagração do mais belo futebol do centro da Europa pelos magiares de Sebes, a Áustria de Sindelaar ergueu a bandeira da escola continental programada por Jimmy Hogan.
Na década de 30 o futebol já era mais do que uma curiosidade desportiva. Cada país tinha já formada a sua liga, o amadorismo começava a ser abandonado e as duas primeiras edições do Mundial de futebol tinham apresentado ao mundo o poderio do jogo sul-americano (Argentina e Uruguai) e a eficácia do Calcio italiano. A Inglaterra continuava isolada do Mundo, acreditando na sua total superioridade e no coração da Europa começava a nascer um novo estilo de jogo, arrojado e profundamente belo. Uma escola impulsionada por um inglês sui generis e levada à prática por um austríaco com alma de empreendedor, Hugo Meisl.
Em Abril de 1931 a seleção austríaca, orientada pelo mago vienense, começou uma série inesquecível de jogos sem perder. Durou mais de ano e meio - até Dezembro de 1932 - e lançou as bases do "jogo bonito", um futebol de troca rápida de bola, de movimentações organizadas, versatéis e coordenadas por um verdadeiro poeta dos relvados, Mathias Sindelar.
Meisl, visionário como poucos na história do desporto rei, aproveitou as lições aprendidas durante uma viagem ás ilhas britânicas. Em vez de seguir o modelo inglês do seu amigo intimo Herbert Chapman - inventor do WM e à época técnico do invencível Arsenal - preferiu apostar por uma variante do modelo escocês de Jimmy Hogan, muito mais assente no toque de bola no pé e no passe rápido em lugar dos lançamentos longos e em profundidade. Sem inovar no esquema táctico, que continuava a ser o inevitável 2-3-5 (Meisl nunca acreditou no WM) o técnico chegou à sua Áustria natal e colocou em prática toda a teoria que tinha aprendido. Tomou o comando da selecção austriaca e rodeou-se de jovens talentosos que actuavam principalmente nos clubes da capital. Pekarek, Smitsik, Vogl, Schall, Zizchek, Nausch e acima de tudo o "Homem de Papel" (devido à sua compleição física e rapidez) Mathias Sindelar, foram as bases em que o técnico montou o seu sistema de jogo, como um carrousell, onde a troca de bola a meio campo e o desdobramento do eixo ofensivo provocava uma série de desequilíbrios na defesa contrária. No sistema de Meisl a táctica não era fixa. O médio centro apoiava o eixo ofensivo que atacava com seis elementos e era nele que começava e terminava todo o jogo ofensivo. Nascia a figura do 10, numa época onde ainda eram os extremos que habitualmente levavam a bola nos pés em campo. Apesar da táctica pouco inovadora, discutida até à exaustão nas longas tertúlias dos cafés vienenses pelos intelectuais mais importantes da sociedade austríaca, o estilo de jogo de Meisl preconizou uma autêntica revolução de pressing e circulação de bola, tornando-se no avô do que seria o Futebol Total.
Foi dessa forma que durante 18 meses a Áustria foi uma selecção invencivel.
Por essa época eram vistos no Velho Continente como a única equipa capaz de bater a armada sul-americana, que tinha dominado os Jogos Olímpicos de 1928 e logo o Mundial de 1930, então as duas únicas aventuras internacionais do beautiful game. Na prova seguinte, marcada em 1934 para França, os austríacos lideravam as apostas dos favoritos e os primeiros jogos deram razão aos seus adeptos. Depois de vencer por 6-0 a vizinha Alemanha - num jogo que traria futuras consequências politicas - 6-2 a Suiça e 8-0 a vizinha Hungria, a equipa de Meisl chegava ás meias-finais com clara vantagem. Só que o jogo disputado sobre um imenso temporal que impediu a rápida circulação de bola dos austríacos ficou marcado por um garrafal erro arbitral, quando um avançado italiano empurrou o guardião austriaco e o árbitro fez vista grossa. Uma derrota que teve mão de Mussolini (a Itália venceria a prova e reeditaria o triunfo quatro anos depois, também após fortes pressões do Duce) e que destrui a fama de invencibilidade austríaca.
Mas da derrota nasceu a lenda, tal como sucederia mais tarde com os seus sucessor húngaros. E a fama do Wunderteam ficou para a posteridade. De tal forma que Adolf Hitler, um homem nada entusiasmado com a visceralidade do mundo do futebol mas que tinha assistido à humilhante derrota alemã, não hesitou após o Anchluss em exigir a inclusão dos jogadores austriacos na equipa alemã para vencer o Mundial de 1938. Por essa altura já o maestro Meisl, o primeiro a defender a máxima "A melhor defesa é o ataque", já tinha falecido e Sindelaar, a sua maior estrela, cometido suicídio poucos dias antes de ser preso pela Gestapo.
O irromper da II Guerra Mundial destruiu a geração do Wunderteam. A maioria dos jogadores acabou por falecer ou ficar ferida durante o conflito e quando a guerra terminou, em 1945, o futebol austríaco estava de rastos. O país nunca mais voltou a ter uma selecção de alto nível mas lançou as bases do futebol do centro da Europa, distinto a qualquer outro estilo de jogo do Velho Continente. Uma revolução que se transferiu na década seguinte para os vizinhos húngaros, e que nos anos 60 seria transformada paralelamente por um holandês e outro austríaco, Ernst Happell, na base do Futebol Total holandês.
Não há nenhum país onde o vermelho ocupe um papel tão fundamental na cultura futebolística como sucede no historial imponente do futebol britânico. Lendas de noites de glória, tardes de sonho e apoteose sob o signo de uma cor que conquistou o mundo com autoridade. Em Turim, numa fria noite de Abril de 1999, o vermelho voltou a triunfar e ajudou a definir os contornos de uma das grandes lendas modernas do futebol mundial. Em Barcelona esteve a emoção mas a grandeza futebolística foi evidente semanas antes, naquela noite em Turim, a noite em que o Manchester United avisou a Europa que estava pronto a renascer. Outra vez!
Dos Busby Babes aos heróis de Shankley e da Kop, as camisolas vermelhas de Manchester United e Liverpool, são parte fundamental da iconografia do futebol moderno. Entre ambos estão 80% dos títulos de campeão nacional inglês e o dobro das Taças dos Campeões Europeus dos restantes clubes ingleses juntos. O vermelho impõe aqui um respeito que não conhece em nenhum outro país, em nenhuma outra realidade social.
A cor que dá vida e força, para lá do humanamente possível, aos dois gigantes ingleses, também destaque de forma evidente nas suas grandes noites europeias. Como sucedeu com a lenda do Liverpool de Bob Paisley, o homem tranquilo que herdou o clube mais bem preparado do Mundo das mãos do seu mentor, Bill Shankley, também Ferguson encontrou nas meias-finais do torneio supremo do futebol de clubes a sua grande noite de glória. O Liverpool venceu cinco finais da Taça dos Campeões (perdeu duas) mas nenhum desses jogos, talvez com a excepção recente do milagre de Istambul, ressoa tanto na épica encarnada do futebol como a noite da segunda mão das meias-finais de 1977 contra os franceses do Saint-Ettiene. Naquela noite a Kop começou a explicar ao mundo o que significava não caminhar só. O clube de Liverpool já tinha ganho ligas e provas europeias (a Taça UEFA), mas aquela vitória, desenhada por Keegan e pintada no céu pelos adeptos Reds, definiu como nenhuma outra a sua lenda europeia. Em Manchester, cidade a 43 kms, habituada ao sofrimento e à perda, as meias-finais europeias estavam sempre associadas ao sofrimento, ao luto, à dor. Foi sonhando com elas que os Busby Babes conheceram o seu fim. Foi nelas que os projectos de Ferguson teimavam em tropeçar e foi numa meia-final que o sonho de Eric Cantona se encontrou com uma noite terrível para Raymond van der Gouw, o suplente holandês de Schmeichel num duelo em casa com os futuros campeões, o Borussia Dortmund, em 1997.
Talvez por isso aquela noite em Turim tenha tido mais impacto emocional do que a maioria das vitórias de um clube que se habituou a sofrer para ganhar as suas finais. Em 1968 precisou do prolongamento. Em 2008 foram os penaltys que decidiram tudo e naquele ano milenar de 1999 todos sabemos como a história acabou. O êxtase do futebol, o orgasmo futebolístico contra o cronómetro, consagrou o grande United mas não apresentou ao mundo a sua melhor versão futebolística. Mostrou o seu lado mais heróico e britânico. O futebol, esse, foi apresentado em dois duelos sucessivos com os gigantes italianos, quando vir de Itália significava, ainda, para os clubes ingleses um sério problema.
O empate a 1-1 em Old Trafford (golos de Giggs e Conte, o actual treinador da Juventus) dava uma preciosa vantagem à Vechia Signora.
Ninguém duvida que aquela era a melhor formação da sua era. Tinham participado na final da Champions nas últimas três épocas, a primeira vez que algo assim sucedia desde o triplo triunfo do Bayern Munchen nos anos 70. A diferença estava no resultado. A Juve tinha vencido a primeira, frente ao Ajax de van Gaal, mas depois a cada participação somava uma dolorosa derrota, com o Dortmund em 1997 e com o Real Madrid no ano seguinte.
Lippi tinha partido e era Ancelloti o homem que comandava uma nave onde o génio de Zidane, o trabalho de Deschamps, Conte e Davids e a magia de Del Piero davam a Inzaghi as oportunidades suficientes para fazer sonhar os tiffosi com um regresso à elite continental. O Manchester United, na sua versão mais continental, tinha eliminado de forma tremendamente convincente o Inter de Ronaldo e companhia nos Quartos de Final. Mas nem nesse jogo (1-1) nem antes a equipa tinha logrado uma vitória em território italiano. E salvo um empate a mais de dois golos, vencer era necessário para sonhar com reencontrar o Bayern Munchen em Barcelona. Na fase de grupos os Red Devils tinham defrontado os bávaros e viajado à capital da Catalunha. Em 28 de Maio esperava-lhes a história mas para lá chegar era preciso passar aquela noite em Turim.
Turim, cidade malfadada para os ingleses desde a celebre série de penaltis do Mundial de 1990. Turim, cidade onde o gang de Michael Caine comete o mais audaz dos assaltos, num duelo nacionalista com a polícia e a máfia italiana, no mítico The Italian Job (versão original). Turim, uma cidade que viveu também a sua tragédia aérea com os heróis do Torino. Turim, cidade fria e que esperava o United conhecendo os seus problemas psicológicos nas grandes noites europeias.
Aos 11 minutos Turim parecia ser tudo isso e mais ainda. Dois golos do eterno oportunista, Filippo Inzaghi, o homem de quem Ferguson disse ter nascido em offside. Um Manchester United sem Giggs, lesionado, e com Scholes no banco, tocado, era incapaz de dominar o espiritio criativo de Zizou e encontrar espaços na defesa amuralhada bianconera. Um resultado assim seria suficiente para destroçar o sonho de qualque adepto do United. À memória vinham, seguramente, outras noites europeias trágicas. Nesse momento ergueu-se do terreno de jogo a figura de Roy Keane.
O irlandês era o líder espiritual da equipa desde a saída de Eric, le roi, e puxou dos galões como nunca. Reduziu de cabeça depois de um centro de Beckham - e é preciso voltar atrás no tempo para lembrar o quão perfeitos e únicos eram os centros do "Spiceboy" superado injustamente nesse ano no Ballon D´Or por Rivaldo - e suportou estoicamente a punhalada no coração quando o amarelo de Urs Meier o condenava a não disputar a final. Cuspiu para o chão, olhou para o céu e gritou com tudo o que se movia à sua volta. A partir daquele minuto, era Old Trafford outra vez.
Antes do intervalo o empate, aquela parceria que ficou para a história como as "Twin Towers", Yorke-Cole, encontrou espaço para colocar a eliminatória do lado inglês. Obrigaram Ancelloti a arriscar, obrigaram a equipa italiana a subir no terreno, obrigaram Schmeichel a mostrar porque no seu último ano de vermelho algo mágico se sentia no ar. E obrigaram Scholes a entrar em campo para por pausa ao jogo e levar o outro amarelo malfadado que também lhe impedia a ele disputar o jogo decisivo. No meio da dor e do sofrimento, o terceiro golo, ao cair do pano, porque na ópera a obra não se acaba até que Cole marque. Não só Turim deixava de ser um pesadelo como visitar Itália deixava de dar medo. Numa das maiores performances desportivas de um clube inglês em provas europeias, o Manchester United de outros tempos renasceu e confirmou na Europa a sua hegemonia recente do futebol insular. Carimbou o passaporte para a final com autoridade e certezas.
Parecia uma heresia que os Red Devils tivessem chegado a este ponto apenas com um título europeu no bolso. Hoje têm três, fruto do trabalho legendário de Alex Ferguson. Mesmo assim continuam a dois de igualar o recorde encarnado do Liverpool de Paisley, Fagan e Benitez. É a decisiva quimera futebolística de Sir Alex, lembranças das noites de Turim pretéritas e futuras que lhe permitem superar a idade e agarrar-se à sua cadeira de sonho com a esperança de voltar a saborear a sensação de grandeza de epopeia clássica que só noites como aquela de Turim podem fazer sentir alguém que venceu tudo o que havia para ganhar. Noites de lenda, noites de memória perdidas na bruma.
Há vinte e três anos morria numa movimentada estrada de Madrid a primeira pérola negra do futebol britânico. No país que inventou o beautiful game a população negra parecia ter sido historicamente colocada de lado no desporto mais popular do país. Até que chegou Laurie Cunningham, e com ele uma nova esperança de futuro. Na capital espanhola apelidaram-no de "El Negro" e aí acabaria por morrer num trágico acidente de viação.
Contam-se pelos dedos das mãos os jogadores negros britânicos a brilharem no futebol das ilhas até aos anos 80.
Um contra-senso, já que não só a população negra - particularmente nos centros urbanos - cresceu velozmente ao largo do século, mas também pelas condições físicas que permitiam a jovens oriundos - directamente ou em primeira ou segunda geração - de África ou das Caraíbas, mostrar o perfume do seu jogo. O historiador desportivo Chris Green citou apenas quatro exemplos anteriores ao final dos anos 70. Arthur Warton e Walter Tull, ainda no amador século XIX, e Lindy Delapenha e Teslim Balogun nos anos 50.
Mas o percurso deste mágico futebolista negro britânico seria de todos o mais marcante. Nasceu em Londres, a 8 de Março de 1956. Numa época onde os Busby Babes iluminavam o futebol europeu e Stanley Matthews e Jimmy Greaves faziam as delicias dos mais novos, Laurie Cunningham começou a correr endiabradamente atrás de uma bola. Aos 18 anos este descendente de jamaicanos decidiu tornar-se profissional e assinou um contrato com o modesto Leyton Orient depois de ter sido rejeitado pelo Arsenal. Despontou rapidamente e dois anos depois foi contratado pelo West Bromwich Albion. Sob o comando do carismático Ron Atkinson, no Hawthorns Stadium começou a mostrar todo o seu talento e a parceria com Batson e Regis - também de raça negra - levou ao aparecimento de um verdadeiro fenómeno mediático que passaria para a posteridade como os Three Degrees, nome de uma popular banda soul norte-americana negra da época.
No WBA o jovem Cunningham explodiu liderando a equipa aos seus melhores resultados dos últimos 50 anos. Em 1978 disputaram até ao fim o titulo com o poderoso Liverpool, tendo estado invictos durante três meses. Isso permitiu ao jovem ser também o primeiro negro a estrear-se com a camisola inglesa num jogo oficial. Mas nem tudo era rosas.
Num país de contrastes, o racismo no futebol era um tema tabú e poucos atreviam-se a defender Cunningham dos ataques sofridos. O jogador era constantemente vitimas de ameaças e ataques racistas, os mesmos que ainda hoje sofrem jogadores da Premier League como os recentes casos de Anton Ferdinand e Patrice Evra demonstram, mesmo dentro do terreno de jogo.
Durante um jogo atiraram-lhe uma navalha aberta e numa viagem ao norte - zona tradicionalmente mais conservadora - foi colocada uma bala junto do poste da baliza do WBA com a mensagem "Terás uma destas nos joelhos se jogas pela nossa Inglaterra"). Era constantemente assobiado quando a equipa jogava fora e até nos partidos disputados em casa havia sempre um sector racista que não se cansava de o assobiar. Em 1979 - e depois de um magnifico jogo a duas mãos contra o Valencia numa eliminatória da Taça UEFA - o promissor extremo esquerdo, então com 23 anos, deixou as ilhas para assinar pelo Real Madrid por uma cifra record de 995 mil libras.
Foi o primeiro britânico a actuar no clube merengue e no Bernabeu viveu os seus melhores momentos como jogador. No primeiro ano venceu a Liga e a Taça do Rei, mas também passou por momentos complicados, com a afficion ultra madridista a apelidá-lo pouco carinhosamente de "El Negro".
No entanto o público em geral aplaudia o seu estilo rápido e letal mas as sucessivas lesões que foi sofrendo e a sua agitada vida nocturna progressivamente afastaram-no do onze. Quatro anos depois de aterrar em Madrid voltou a Inglaterra, mas a carreira estava já em queda livre. Actuou a espaços no Manchester United (onde reencontrou Atkinson) por empréstimo e ainda passou por Sporting Gijon, Olympique Marseille, Leicester, Charleroi e Wimbledon clube onde conseguiu o seu último troféu, uma FA Cup em 1988 contra o mítico Liverpool. No final da temporada decidiu voltar a Madrid, desta feita para actuar no pequeno Rayo Vallecano. Ao serviço do clube madrileno não exibiu o seu melhor nível e na noite de 15 de Julho de 1989 morreu num violento acidente de tráfego na circunvalação da capital espanhola. Tinha apenas 33 anos e era um fantasma da flecha que tinha despontado dez anos antes.
Em Inglaterra poucos deram importância ao evento mas a inequívoca verdade é que Cunningham fez história. A estreia pela equipa nacional inglesa num jogo oficial (em 1979) fez dele o primeiro negro internacional britânico. O extremo abriu as portas para dois dos grandes futebolistas britânicos da década - John Barnes e Paul Ince - e iniciou uma verdadeira revolução no futebol inglês. Na época em que surgiu, Cunningham era a única estrela negra e hoje a Premier League conta com um 23% de jogadores de raça negra, muitos dos quais ingleses internacionais como l Theo Walcott, Danny Wellbeck, Ashley Young, Ashley Cole, entre tantos outros. O seu estilo de jogo era apaixonante mas foi o seu espírito de luta e sacrifício que lhe permitiram quebrar barreiras invisíveis. Foi a primeira pérola negra num futebol que descobriu tarde a sua imensa colónia e que hoje olha para trás com um inevitável sentimento de culpa.
Durante a última década a UEFA tem sofrido criticas de todos os quadrantes do futebol europeu relativamente ao formato aplicado á Champions League. Á medida que Leonardt Johanssen foi devolvendo favores ás grandes federações do continente e ampliando o número de clubes dos principais países ás custas dos mais pequenos, o torneio foi-se transformando no protótipo da Euroliga que Platini tem vindo a combater. Paralelamente as criticas á falta de qualidade da edição deste ano, que chegam invariavelmente dos mesmos sectores, deixam claro uma severa contradição. Numa época em que os quartos de final se assemelham, como nunca, ao modelo da antiga Taça dos Campeões, qual é o futuro ideal para o maior torneio de clubes do Mundo?
Perdi a conta ás vezes que ouvi jornalistas, dirigentes e adeptos queixarem-se dos moldes da Champions League.
Inicialmente queixavam-se pelo excesso de equipas das grandes ligas, esse poker de clubes de Espanha, Itália, Inglaterra e agora Alemanha. Depois as queixas passaram a ser a atacar a base da politica de Michel Platini que tem feito de tudo, é preciso dizê-lo, para abrir o torneio aos pequenos países. Claro que o francês não o faz por ser um bom samaritano. Ter clubes como o Basel, APOEL ou BATE Borisov na prova é um dardo envenenado á ECA - a organização dos clubes europeus que antes era conhecida como G-14 - e um piscar de olhos ás dezenas de pequenas federações que foi quem realmente conseguiram a sua eleição e que serão a sua base de apoio no assalto ao trono da FIFA.
Os senhores do futebol que fizeram de tudo para ter uma Champions League para as elites, com Real Madrid, Barcelona, Manchester United, Arsenal, Chelsea, AC Milan, Inter e Bayern Munchen á cabeça, têm agora de conviver com uma realidade que, nesta época, mais do que nunca faz lembrar a Taça dos Clubes Campeões Europeus.
A imprensa afim a estes clubes sempre criticou o antigo modelo queixando-se de uma falta real de competitividade. Realmente, durante os anos 70 e 80, principalmente, a Taça UEFA parecia mais equilibrada e exigente que a própria Taça dos Campeões. Mas o prestigio desta manteve-se inabalável e mesmo com os triunfos de Aston Villa, Hamburgo, Steaua, FC Porto, PSV e Estrela Vermelha face a rivais de maior prestigio e de países mais poderosos o torneio continuou a ser considerado como a prova de elite do futebol europeu. A jogada de Johanssen, patrocinada pelas grandes federações, quase que matou o futebol europeu e atirou para o esquecimento alguns dos países mais influentes das décadas anteriores ao aparecimento da Champions League. Os rankings UEFA e FIFA, as fase pré-eliminatórias e o reparto de fortunas fizeram da prova um coto privado que só Ajax e FC Porto souberam contornar em 20 anos de existência. Mas que dirão os mesmos que criticaram esse modelo do torneio - e os seus campeões - quando chegue a final do Allianz Arena no próximo mês de Maio?
Em oito equipas só um país se repete.
Um cenário que foi a constante em 90% das edições da Taça dos Campeões Europeus entre 1955 e 1991, sendo que habitualmente o país que se repetia apresentava o campeão europeu em titulo e o campeão nacional (ou vice-campeão se fosse o caso). A Espanha, neste caso, conta com o campeão em titulo, FC Barcelona, e o Real Madrid, algo que sucedeu, por exemplo, em 1961-62 quando os merengues foram eliminados pelos blaugrana nas meias-finais, sendo impedidos de defender o titulo que afinal acabou nas mãos, pela primeira vez, do SL Benfica.
Exceptuando o dueto espanhol, máximo favorito em todas as casas de apostas, os restantes seis clubes chegam de seis países diferentes. Pela primeira vez na história da Champions League. Um clube português, um alemão, um francês, um inglês, um italiano e um cipriota que bem podia ser turco, grego, russo ou holandês, para citar apenas ligas de destaque do futebol europeu. O mesmo cenário que se vivia na antiga versão da prova e o mesmo que é agora alvo de criticas sobre a falta de interesse e competitividade de um torneio que se tem habituado a meias-finais com dois ou três clubes do mesmo país - entre ingleses, espanhóis e italianos - e apenas um que outro filtrado de nações com menos poder financeiro e mediático. Em 2003-04, a última vez que um clube fora do top 5 ganhou o torneio, a esta altura da competição ainda havia duas equipas espanholas (Deportivo e Real Madrid), duas equipas inglesas (Arsenal e Chelsea), duas equipas francesas (Monaco e Lyon), uma italiana (AC Milan) e uma portuguesa (FC Porto). E mesmo esse ano foi considerado, pela imprensa em geral, o mais fraco da última década. Talvez, como disse antes, pelo peso mediático da imprensa inglesa, alemã, italiana ou espanhola que não viu nenhum dos seus clubes chegar a uma final inédita entre lusos e gauleses.
Se é provavel que a final de Munique se dispute entre dois potentados do Velho Continente (Barcelona ou Milan, Bayer, Real Madrid ou Chelsea), não menos verdade é que o torneio desta época deixou a nu a hipocrisia da maioria dos analistas que defende um regresso nostálgico ao passado e que, quando deparado com um torneio de características similares, opta pela critica fácil e incoerente. Tanto Benfica como APOEL ou Marselha fizeram méritos mais do que suficientes para chegar tão longe e os erros dos clubes de Manchester, de Valencia e Villareal, de Inter ou Dortmund não podem colocar em questão uma evolução legitima que a Champions tem vivido nos últimos anos. O futebol europeu é, cada vez mais, de todos os países da UEFA e cada vez menos um projecto similar á Euroliga que Florentino Perez e Uli Hoeness imaginaram há mais de dez anos.
O modelo da Taça dos Campeões proporcionou duelos históricos, finais inesquecíveis e impediu grandes equipas de se medirem pelo maior torneio continental com maior regularidade. Mas durante os últimos vinte anos o futebol centralizou-se em demasia em meia dúzia de clubes todo-poderosos e esqueceu-se que é um bem colectivo de um continente que o organizou e apresentou ao Mundo. Com os milhões em jogo que, na realidade, sustêm essas máquinas de gastar dinheiro que são os clubes de top da Europa é inverosímil acreditar que a Champions League vive o seu ocaso desportivo. Mas as cirúrgicas alterações de um Platini oportunista mas equitativo trazem essa mais do que necessária viagem a uma era onde o dinheiro não era tudo e em que grandes equipas de pequenos países podiam sonhar com algo mais do que fazer seis jogos ao ano junto das elites. Esta Champions à moda antiga pode ser um breve parêntesis, mas também é um sinal de esperança.
Cinco golos num jogo de futebol profissional é algo tão raro que qualquer que se atreva a lograr o feito tem, forçosamente, de ser aplaudido de pé. Quando o gesto se torna recorrente, aplaudir já não chega. Lionel Messi já está nessa lista de grandeza onde coabitam dezenas de magos deste jogo que é mais do que um desporto. Por momentos de absoluta simplicidade como os que destroçaram o Bayer Leverkusen. Por situações de extrema complexidade que ajudaram a construir a sua lenda. Messi tem méritos para sentir-se grande, mas para enquadrá-lo no último degrau olimpico é necessário contextualizar o seu jogo com o de aqueles que, quase unanimemente, por lá andam.
Qualquer lista é subjectiva e peca por injusta, seja o tema que for. Mas a consensualidade faz a história e se Alexandre, Júlio César e Napoleão têm mais prestigio que Alcibiades, Pompeu e Frederico é porque há mais gente – com ou sem justa causa – que os considera superior no seu mister. O futebol não escapa - como podia - a estes jogos de café e desde há trinta anos que há um poker de ases que parece ser inquestionável para uma grande maioria nem sempre silenciosa. Nos últimos anos a trajectória ascendente de Leo Messi fez recuperar esse debate que, de tempos a tempos, um jogador consegue despertar da letargia. O do quinto grande.
O curioso, nestas listas, é que o quarteto mais habitual e omnipresente não representa, apenas, o futebol como jogo. Para entrar no Olimpo não basta ter sido imensamente dotado, tremendamente decisivo, imperialmente triunfador. O talento, por si só, é pouco para establecer uma linha difusa entre o grande e o imenso. Falta algo mais, algo profundamente anacrónico e que só se entende quando se consegue dar um passo para trás e analisar o contexto de aparecimento e consolidação do jogador no tempo cronológico e no espaço geográfico, politico e socio-cultural. Uma lista de 100 jogadores tremendos é dificil de ser feita porque outras centenas ficarão de fora e a diferença entre uns e outros não é, manifestamente, significativa. Mas muito poucos foram os que souberam levar o jogo para fora do relvado e transformá-lo noutra dimensão. Foi, sobretudo, essa realidade, que definiu esse poker consensual e é essa realidade que impede a Lionel Messi de ambicionar juntar-se a essa elite. Messi tem a grandeza dos maiores, de isso há poucas dúvidas. Mas não tem essa bagagem moral que lhe permite escancarar as portas da eternidade como antes dele não tiveram Ronaldinho, Zidane, Ronaldo, Rivaldo, Bergkamp, Cantona, Baggio, van Basten ou Gullit, para citar apenas os maestros das duas últimas décadas.
Di Stefano, Pelé, Cruyff e Maradona.
O que os define? O que os une? O que faz de cada um destes quatro génios seres especiais, referenciais incontornáveis, nomes indisputados. Sobretudo a contextualização da sua genialidade no tempo e a forma como marcaram o mundo que os rodeava. Nesta era de twitter e facebook, de ipads e low-cost, Messi encanta, mas não aporta nada de novo. Nem definiu a sua profissão como Pelé. Nem é um lider espiritual como Cruyff. Nem um maverick solitário como Maradona. E muito menos o jogador completo que foi Di Stefano. Tal como Garrincha, Charlton, Beckenbauer, Ronaldinho, van Basten, Ronaldo, Zidane, Platini, Kopa, Best, Sindelaar, Muller, Zico, Mathews, Hidgekuti, Mazolla, Rivera, Eusébio ou Puskas, ele é, sobretudo, um talento descomunal, um génio superlativo e um artista do impossível. Mas o que Messi faz hoje nem é inédito nem inovador e para entrar na história pela porta grande é preciso saber definir um antes e um depois.
Di Stefano foi o primeiro futebolista assumidamente total. Com o River Plate, Milionarios e, sobretudo, com o Real Madrid, ele transformou o papel da estrela em campo na de general. Ao contrário de Puskas – talvez mais dotado tecnicamente que ele – o argentino estava ao mesmo tempo em todo o lado. A equipa de mil estrelas respondia apenas ao som da sua voz. Di Stefano jogava onde queria e como queria, perdia-se como médio mais defensivo, surgia como criativo, rematava como falso nove e zarandeava as defesas nos sprints pelas laterais. Impossível de marcar, dificil de lidar, Di Stefano ajudou também a criar um mito, o do Real Madrid, e beneficiou, sobretudo, da televisão para distingui-lo com a sua pronunciada calvice, dos génios que o precederam e que o Mundo mal conseguiu vislumbrar.
Pelé, dentro de toda a sua genialidade, definiu o futebolista profissional contemporâneo e ajudou a definir a mitologia nacional brasileira. Ao contrário da maioria dos futebolistas, Pelé foi primeiro um idolo nacional e só depois um herói local. Quando em 1958 aterrou na Suécia ainda não era a máxima estrela do Santos mas os seus golos, principalmente na fase a eliminar, fizeram dele o principe do Brasil. Ultrapassou os seus problemas de adaptação e afastou-se dos fantasmas que destroçaram (e destroçariam) a maioria dos génios do Brasil adoptando uma vida imaculada onde a preparação fisica, mental e a gestão da imagem de marca se tornaram tão importantes como a própria bola. A marca Pelé ajudou a prolongar o mito muito depois das chuteiras terem deixado se calçar os pés do astro e o seu comportamento exemplar estableceu o padrão do futebolista de futuro.
Cruyff, Johan, foi o profeta que todo o desporto precisa. O holandês está para o futebol como Lennon está para a música contemporânea e há sempre um antes e um depois da sua mensagem de futebol absoluto, lucrativo e intelectual ter rasgado os relvados de Amesterdam. Que o holandês tenha sido o único dos quatro a brilhar como treinador (e só Pelé não o tentou) explica bem a forma como abordou o jogo. Numa era onde o profissionalismo começava a ser a nota dominante e o futebol total se vislumbrava, Cruyff soube conciliar ambos, transformou o génio numa forma de vida bem remunerada, mexeu com a consciência social de dois países, desafiou o monopólio das marcas desportivas e reensinou o mundo a olhar para o campo de jogo e a ver triângulos e diagonais onde antes apenas estava erva.
Maradona foi o seu oposto, o último potrero, o último dos romanticos. O único jogador capaz de ganhar as duas provas mais dificeis da sua época (o Mundial e a Serie A) só, com um bando de jogadores medianos e bem treinados atrás de si. Maradona desafia a táctica, o conceito colectivo de Cruyff e o profissionalismo de Pelé e sai a vencer em cada equação. Depois de ele nunca nenhum jogador foi grande sem estar envolvido num projecto de outras grandes individualidades, nem Ronaldo, nem Zidane, nem Ronaldinho, nem Messi.
Nada disso retira mérito ao génio de Messi que é, com Cristiano Ronaldo, o simbolo mediático desta nova década. Os seus números individuais e o projecto colectivo onde cresceu e se tornou parte nuclear são, por si só, história. A união do ideal potrero com a formação tecnocrática europeia é talvez única. Mas se já vi outros jogadores serpenterem, se já vi outros enganarem seis defesas, se já vi desafiarem números e estatisticas, como vejo regularmente a Messi, a verdade é que não vi ainda o astro argentino a romper com a ordem natural das coisas, a rasgar preconceitos e establecer tendências como lograram o poker de asas que muitos aprenderam a recitar de memória. 24 anos é idade mais do que suficiente para surpreender, mas para ser algo mais do que genialmente perfeito a Messi é necessário, mais do que ganhar um Mundial (Di Stefano e Cruyff também não o ganharam), romper com as verdades mais absolutas. Parece pouco, mas há uma lista de cem, como ele, que não chegaram lá...
Não é o primeiro grande livro nem certamente será o último grande livro alguma vez escrito sobre esse jogo tão popular, hoje como há 100 anos atrás, que é o futebol. Mas é seguramente o mais completo e fundamental tratado sobre o gigantesco fenómeno politico, social, económico e desportivo que é o beautiful game. Nunca um livro soube penetrar tão fundo na pele de um desporto que muitos teimam em dissociar dos alicerces da sociedade contemporânea. Talvez por isso, The Ball is Round, é tão importante para entender o jogo como o drible de Maradona naquela quente tarde na Cidade do México em 1986.
São 900 páginas mas leem-se como se fossem apenas 90.
Talvez essa seja o mais sincero elogio que se pode fazer a um livro que, no fundo, é um tratado épico. Resume o seu poder de sintese, a sua capacidade de absorção e a eterna sensação de vazio que fica quando se guarda o livro pela última vez. Para quem lê pela primeira vez um livro dedicado ao futebol, a experiência é intensa. Para quem conta com uma biblioteca repleta de livros sonantes e brilhantes, é uma surpresa refrescante. The Ball is Round não vive da especificidade que fazem de Inverting the Pyramid de Jonathan Wilson e Football Against the Enemy de Simon Kuper, obras fundamentais. O primeiro é o mais completo livro escrito sobre tácticas, o segundo o mais espantoso retrato do futebol como fenómeno social.
The Ball is Round é tudo isso e muito mais. Sem entrar no mesmo nível de detalhe, abordage com perfeição as metamorfoses tácticas e a envolvência social do jogo. Toca os aspectos politicos com a mesma delicadeza com que Maradona dormia a bola nos pés. Finta a natural tendência de livros cronológicos em deixar-se cair em datas e titulos com a velocidade de Garrincha e remate cada capitulo com uma análise tão perfeita como os disparos de Pelé. Respira-se futebol em cada página. Sobretudo respira-se a evolução da própria história a partir de uma bola de futebol.
David Goldblatt, jornalista inglês por detrás desta obra épica, entende, como nós, que o futebol é o espelho perfeito da metamorfose social dos últimos 150 anos. Com ele conhecemos as múltiplas origens de um jogo que os ingleses souberam domar e estruturar. Com ele viajamos à volta do mundo futebolistico para perceber de que forma o jogo contribuiu para a ascensão e queda das ditaduras militares sul-americanas ou para a formalização do movimento independentista africano. Como Goldblatt explica detalhadamente o futebol não provocou guerras nem assinou tratados de paz, mas abriu as condições para mudanças de ciclo espelhando perfeitamente o sentir dos povos em cada micro-cosmos socio-cultural.
Ao largo das páginas avançamos cronologicamente, viajamos entre continentes, entendemos a decadência das grandes potências, a ascensão dos desafiantes ao trono, reconhecemos nomes próprios, eventos e momentos chave e entendemos de que forma a Guerra das Malvinas contribuiu para a péssima campanha da Argentina no Mundial de 1982 da mesma forma que o ambiente que se vivia em Budapeste à hora de partida dos Magiares para o Mundial de 1954 condicionou a sua performance. Seguimos a evolução do futebol nacional das principais nações e ligas e lemos sobre as especificidades que fazem dos EUA, Austrália, India e China casos à parte nesta relação quase sintomática entre futebol e importância politica-social durante os últimos 50 anos. Goldblatt, notável jornalista free-lancer, não deixa pontas soltas, não abdica de encontrar sempre uma resposta para cada dúvida e, no final, explica como um jogo de 90 minutos não é mais do que a consequência de mil e um factores que se conjugam na mesma direcção.
Ao contrário de muitos livros que tentam relativizar o papel do maior fenómeno social dos últimos 100 anos – talvez só comparável ao cinema e à libertação sexual – The Ball is Round interpreta a sua real relevância e reforça a sua condição primordial no entendimento da evolução socio-economico-politica e cultural do último século. Um livro que não esconde nem se envergonha de entender o beautiful game como algo muito mais importante que um jogo é, nos dias que correm, uma verdadeira benção. Que seja escrito de forma tão brilhante e certeira é um autêntico bónus. Se alguma vez tiverem de ler algum livro jogo o futebol e só puderem escolher um, The Ball is Round deveria ser, sem dúvida, a primeira (e única) opção. Pouco mais se pode dizer de um livro. Pouco lhe faria tanta justiça como lê-lo. Até ao último sorvo.
Há algo no passado que nos prende eternamente, algemas invisíveis de que realmente ninguém se quer livrar. 150 anos da história do futebol dão para muitos passados distintos mas na era moderna a sua revalorização continua a ser um enigma para muitos. Para a empresa TOFFs tornou-se na melhor forma de fazer negócio. Com a memória, com o passado, com os sonhos que ainda comandam algumas vidas.
A moda de ir para os estádios com a camisola do clube do coração nasceu em Inglaterra.
Quando os clubes começaram a entender o potencial da sua própria comercialização, nos arranques da década de 80, os adeptos responderam. Hoje fazem-se três e quatro equipamentos diferentes por ano para capitalizar a fome dos mais novos e dos mais velhos em ter colados ao peito a cor e escudo da equipa dos seus amores. O fenómeno britânico tornou-se global, as grandes marcas fizeram disso uma das principais fontes de rendimento e hoje o lançamento de uma nova camisola é feito com a pompa e circunstância de uma cerimónia de estado. De ano para ano os equipamentos, as cores, os traços vão-se renovando reforçando a condição de imediatismo do jogo. As três riscas de este ano para o ano serão cinco, o ano passado foram só duas e quem imagina se existirão sequer riscas no equipamento de daqui a duas temporadas. A tradição conta cada vez menos e o importante é oferecer um producto novo para seduzir os bolsos dos adeptos, sempre desejosos do futuro. Mas o amanhã não é o único negócio possível. Há quem continue a lucrar com o passado, com a memória de quem não quer esquecer.
Em 1990, em pleno “boom” da cultura dos equipamentos comercializados para adeptos, Alan Finch decidiu recrear a histórica camisola com que o Arsenal disputou a final da FA Cup, a sua primeira do pós-guerra. Comprou o tecido, bordou o emblema e logrou uma réplica idêntica à que se lembrava dos seus tempos de infância. Foi a primeira de muitas.
A TOFF´s (The Old Fashioned Football Shirts) nasceu em contracorrente com os seus dias e tornou-se imediatamente numa referência absoluta de quem olhava para trás com a mesma ilusão que contemplava o futuro. Finch recrutou uma pequena equipa de desenhadores, costureiros e historiadores e começou a sua própria pequena empresa no sul de Inglaterra. Inicialmente fez-se anunciar em revistas da especialidade, sobretudo as fanzines como When Saturday Comes que viviam então a sua época de esplendor. A grave crise porque passava o futebol inglês, em plena ressaca do Taylor Report, fez reaviver uma profunda nostalgia com os anos dourados da First Division. Os adeptos aderiram em massa à ideia e rapidamente a TOFFS passou a produzir réplicas perfeitas de camisolas clássicas de todas as equipas do futebol inglês. O posterior aparecimento da internet permitiu-lhe criar uma das primeiras páginas webs dedicadas à compra e venda de productos desportivos onde exibiam o seu magnifico portfolio. Pais que queriam oferecer aos filhos pedaços da sua infância, filhos que queriam oferecer aos pais pedaços do seu passado, oferecer uma réplica clássica tornou-se tradição dentro dos fãs hardcores ingleses à medida que o aumento dos preços dos estádios da Premier os afastava dos terrenos de jogo.
A partir de meados dos anos 90 o portfolio da empresa expandiu-se a nível internacional à medida que a própria cultura da venda de marketing das equipas começava a chegar a outros países. Muitos dos productos eram pedidos únicos, de adeptos solitários que procuravam uma lembrança de um momento feliz da sua memória. Adeptos do velho Torino que queriam relembrar os dias de Mazzolla, saudosistas dos dias de Eusébio com a camisola do Benfica, fãs do River Plate e da camisola da La Maquina ou nostálgicos do Ajax de Cruyff começaram a invadir a web de Alan Finch com pedidos tão originais como a camisola que usou Fachetti no dia do seu 100º jogo. Um trabalho que implicava não só conseguir o tecido certo como uma profunda pesquisa nos jornais e revistas da época para garantir a reprodução perfeita. Em quase todas as entrevistas que dá, o seu fundador, Alan Finch reforça a ideia de que o que ele produz não são meras réplicas de camisolas do passado. Réplicas, diz ele, são as que se comercializam hoje, aos milhões, sem identidade. Cada uma das suas camisolas é única, não existe stock e tê-la no peito é algo absolutamente pessoal e intransmissível. Algo que o ritmo de fordização do negócio futebolístico actual é incapaz de lograr.
Hoje a empresa prospera misturando essa paixão pelo passado e a optimização do futuro. As novas ferramentas online permitem recompilar informação e material a uma velocidade impossível em 1990 e a popularidade do projecto é hoje parte da própria mitologia do jogo. Para aqueles que sonharam em sentir na pele uma réplica perfeita da camisola que Pelé vestia na tarde da final do Mundial do México de 1970, (a sua estátua de cera no Madame Tussauds veste precisamente um dessas) a TOFFs tornou-se um espaço fundamental. Os próprios clubes e federações compram lotes de equipamentos do seu próprio passado que ninguém se lembrou de preservar e não há um museu ou estádio em Inglaterra onde não se encontre um dos seus productos.
Numa época onde a velocidade do negócio à volta do futebol parece não conhecer limites, o preço que pode ter a memória começa a fazer cada vez mais sentido. Os adeptos sentem um desapego com o ritmo vertiginoso do negócio que marca o ritmo do futebol de hoje e agarram-se ao seu passado. Talvez o façam sem darem-se conta de que inevitavelmente estão a cair na mesma dinâmica comercial. Mas terá o mesmo preço emocional o mergulho nas memórias mais pessoais do que entregar-se à incerteza do amanhã. O Ser Humano é incapaz de viver sem olhar para trás e o adepto de futebol é só mais um espelho dessa necessidade. A TOFFs limitou-se a ver as cifras, as ilusões e as expectativas. O resto já é história!