Sexta-feira, 07.02.14

Sou um nostálgico. Vivo preso no tempo. Cresci nos anos oitenta. Acho que isso tem grande dose de culpa. A era em que brincar ao futebol significava passar horas na rua. Jogar com peças de legos montadas para fingir equipamentos reais. Ou com os jogadores de Subbuteo, muitos sem cabeça. As consolas eram protótipos do que são hoje, os jogos de gestão desportiva um enigma e o futebol, esse, era outro. Daqui a uns meses vou ter o prazer de rever nostalgicamente as minhas velhas conhecidas Colômbia e Bélgica num Mundial outra vez. Tenho saudades desses tempos. E de todas as outras equipas dessa era que ficaram pelo caminho.

Um dos meus sonhos é ter uma réplica perfeita do equipamento da Dinamarca de 86. Ou da Holanda de 88. (quem os tiver, o email de contacto está abaixo à esquerda)!

Sim, sou assim de estranho. Mas já me contentava com aquela camisola colorida da Colômbia de Asprilla ou da Jugoslávia de Stoijkovic. Sei adivinhar o ano de um jogo só pelo equipamento das respectivas selecções. Vivi a era das três tiras nos ombros da Adidas. Dos desenhos da Nike na camisola do Mundial dos Estados Unidos ou das tiras finas tão popularizadas nos anos oitenta por escoceses, franceses e dinamarqueses. Tenho saudades de ver a Preud´Home fazer defesas impossíveis a Hassler ou de imaginar como um desdentado Jimmy Leighton era capaz de defender sobre a linha um tiro de cabeça de Tore Andre Flo. Durante essa geração o futebol europeu consagrou grandes equipas. A maioria dos adeptos sabem quais são, não é preciso que me repita. Mas houve uma série de actores secundários igualmente brilhantes que me roubaram o coração. É como no cinema, onde tantas vezes prefiro apreciar aquele actor de low profile no fundo do plano em vez de perder-me no grande plano ao protagonista. Essas eram as equipas que me tocavam na alma. Talvez porque, nesses dias, Portugal fosse um desses secundários. Não vivi, de forma consciente, o Mundial de 1986 e por isso tive de esperar até já estar no ciclo para ver a selecção das Quinas jogar uma competição internacional. Quando Portugal disputou o seu primeiro Mundial depois de Saltillo estava a dois meses de entrar na universidade. Toda a adolescência tinha passado a pensar que a selecção que então equipava - que saudades - de vermelho e verde, seria sempre um jogador de segunda numa mesa de especialistas em bluff.

 

Esses eram os dias em que a Europa tinha menos países. Menos estados independentes significava equipas mais fortes e místicas.

Lembro-me da devoção especial que sentia pela Jugoslávia e como rapidamente a emergente Croácia me conquistou o coração. Por razões clubísticas sempre torci pela Eslovénia e pela Sérvia. Mas tudo me levava sempre àquela equipa que mereceu melhor sorte no Itália 90, com a orgulhosa estrela vermelha sobre o centro do equipamento. O mesmo podia dizer da União Soviética e o icónico CCCP. O que me custou aprender a dizer Rússia e a pensar na lógica de existir uma Ucrânia em jogos oficiais quando todas as estrelas soviéticas, de vermelho e branco, eram do Dynamo de Kiev. E que dizer da última época dourada do futebol nórdico. Da Suécia de Dahlin, Anderson, Thern, Brolin e de um adolescente rastafari chamado Henrik Larsson. Ou da reinventada Dinamarca, sempre e quando Michael Laudrup estivesse em campo (as horas que passei a treinar "aquele" passe). Para não esquecer-me, evidentemente, da histórica Noruega que chegou ao topo do ranking FIFA com um estilo de jogo importado directamente da segunda divisão inglesa com os seus gigantes nas duas áreas a impor a sua lei. Nesses tempos, quando Portugal tinha de defrontar este tipo de equipas, não havia Ronaldo que nos salvasse. Era drama assegurado.

Mas o que realmente me produz nostalgia é o desaparecimento progressivo de verdadeiras selecções históricas. Daquelas que durante mais de meio século definiram o que era o futebol europeu. Tenho saudades de um Escócia vs Áustria muito antes de ter sabido que esse foi o duelo estético e ideológico que definiu o modelo de jogo que mais me apaixona. Tenho uma tremenda nostalgia quando vejo as camisolas da Hungria cruzaram-se com as da Bélgica, pensando nesses jogos perdidos no tempo em que os Nealazi e os Scifo se cruzavam com naturalidade. Com o passar dos anos, a Europa reinventou-se e nasceram novas potências como Portugal e várias selecções desapareceram do mapa. Raramente vemos equipas do leste europeu que não estejam suportadas por magnatas do petróleo ou do gás, ou clubes nórdicos e britânicos da velha guarda. Isso provocou a decadência de selecções que na era pré-Bosman estavam sempre lá. Eram os dias em que a França, Itália, Espanha ou a Inglaterra podiam falhar um Mundial ou um Europeu e ninguém punha as mãos na cabeça. No seu lugar havia sempre alguém disposto a aproveitar a ocasião como a Bulgária de 94 ou a Dinamarca de 92.

 

Vai ser muito difícil que a situação mude. A ampliação dos Europeus a vinte e quatro equipas - uma decisão que discordo por completo - poderá permitir um último hurrah a algumas destas selecções. Mas a magia nunca será a mesma. O guarda-redes escocês terá uma dentição perfeita. Os belgas terão afros mas nenhum barbudo. Os carecas búlgaros terão tatuagens no crânio e os avançados noruegueses serão imigrantes perfeitamente integrados na sociedade nórdica e não guerreiros vikings de outros tempos. Tenho saudades desse futebol porque sei que passe o que passar, nunca mais vai voltar. E tenho saudades do Escócia vs Áustria porque quando me sentava a ver estes jogos só tinha de me preocupar por fazer o trabalho de casa no carro, a caminho da escola, sem que se dessem conta.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 16:23 | link do post | comentar | ver comentários (11)

Quinta-feira, 06.12.12

De um problema sério, Michel Platini saca uma carta na manga e permite fazer esquecer uma crua realidade. A sua ideia de um Europeu para todo o continente, sem uma sede fixa, passou de ser uma mera farsa a realidade. O presidente da UEFA deixa o seu provável cartão de despedida (tudo indica que em 2020 seja presidente da FIFA) com uma ideia que existe, pura e simplesmente, para ocultar a incapacidade da UEFA de tomar pulso a uma prova que chegou a ter um prestigio único e que vai perdendo força a cada decisão que o francês toma.

 

Platini nunca venceu um Mundial. 

Em 1982 perdeu nas meias-finais por penaltis. Em 1986 não foi preciso chegar a tanto. Em ambas as ocasiões o vencedor foi a Alemanha. Mas seguramente que o gaulês teve a oportunidade de sentir o impacto que o torneio da FIFA teve na vida dos espanhóis e mexicanos que receberam 24 nações mundiais. Na importância para a sua economia, na melhoria de infra-estruturas, na cultura, na sociedade. Mesmo que lhe tenha passado desapercebida essa realidade no exterior, seguramente que Platini sabe o que significa organizar um torneio e ganhá-lo em casa.

Foi ele o capitão da selecção francesa que venceu o Euro 84, enchendo todos os estádios por onde passava, de Paris a Marseille. E foi ele quem geriu o comité organizador do Mundial de 1998 que a sua França também ganhou, criando uma maré única de apoio social a uma selecção multicultural. Essa vitória fez mais pela integração racial em França do que décadas de políticas governamentais. Seguramente que Platini sabe tudo isso. E no entanto não parece ter remorsos em ser o primeiro presidente da UEFA a destroçar essa bela herança. Essa festa colectiva que, desde 1980, é o Europeu.

Até então apenas as meias finais e final se disputavam num só país. Quando se decidiu ampliar a competição a oito equipas, em Itália, a experiência não trouxe o melhor futebol mas o impacto no público foi evidente, particularmente nos jogos da Azzura e a ideia de manter-se fiel a essa filosofia permitiu que adeptos de países europeus pudessem desfrutar o que a FIFA nunca lhes daria: um Mundial.

Quem viveu o Euro 2004 em Portugal sabe do que falo. Os suecos, os belgas, os holandeses, os austríacos, os suíços, os ucranianos e os polacos também. Entre todos seria impossível organizar um Campeonato do Mundo mas o Euro era a competição que trazia o futebol aos europeus a casa. As performances da equipa nacional podiam ser melhores ou piores mas o entusiasmo popular e o impacto real na economia e nas infra-estruturas desportivas, e não só, desses países, eram evidentes. E acabar tudo isso por uma ideia peregrina porquê?

Simplesmente, porque a UEFA perdeu a margem de manobra para organizar competições deste calibre sem abdicar das suas benesses. Se a FIFA mantém uma política similar mas tem todo o mundo por onde escolher, do Qatar à Rússia, da China ao Brasil, da Índia aos Estados Unidos, a Europa é bem mais pequena. E começa a perder a paciência com Platini e as suas políticas de interesses.

 

A UEFA acabou com o Europeu, no seu modelo actual, quando permitiu que o torneio de França, em 2016 (curiosamente a candidatura menos apreciada inicialmente pelos avalistas da UEFA), incluísse pela primeira vez 24 equipas. Não só porque inclui quase metade das federações europeias, o que significa uma perda de competitividade significativa. Também vai criar vários problemas logísticos, várias questões relativamente aos apuramentos (os melhores terceiros foram uma dor de cabeça monumental para a FIFA) e desvalorizar uma competição que, em termos competitivos, estava quase à altura de um Mundial.

Esta nova decisão acaba por matar, de forma definitiva, o seu espírito tradicional e popular e transforma o Euro num torneio de corporações de uma forma definitiva. Um torneio de consumidores, um torneio de hubs, um torneio de multinacionais, um torneio sem expressão, sem rosto, sem alegria no rosto dos adeptos que sentem que, por um mês, são o centro do Mundo.

A UEFA tinha de escolher entre manter a política actual e o futebol como fenómeno popular. 

Escolheu a primeira opção, a que permite manter o torneio entregue a cinco ou seis empresas que asfixiam os adeptos com anúncios, que ocupam a maioria dos lugares dos estádios para distribui-los entre amigos (que ás vezes nem aparecem), forçando os preços gerais para o público a atingir valores assustadores. As empresas que pagam o salário de Platini têm carta branca para fazer de 2020 o seu torneio. Doze ou treze cidades europeias, cidades de consumidores, vão receber, como um circo itinerante, um torneio sem expressão. Serão palcos preferenciais para aumentar o consumo.

Muito pouca gente, salvo um espectador de um Euro, visitaria Leiria, Donetsk, Sazlburg, Charleroi ou Norkoping como destino preferencial. Acabar com essa realidade para criar uma prova à volta das grandes praças mata essa natureza popular da prova e permite aumentar a margem de lucro. Porque se há alguém que está farto da UEFA é a Comissão Europeia e os seus governos. Fartos das suas exigências para a organização de torneios, fartos da sua atitude autoritária que permite durante a prova ter um controlo quase policial dos estados, que altera leis a seu favor, que saca um beneficio assustador da prova para deixar os gastos exclusivamente ao país ou países que o albergam. De tal forma que, desde que Platini chegou à UEFA, os grandes países lhe viraram as costas. Ninguém está disposto a entrar neste jogo que só acaba por favorecer a UEFA e os seus esbirros. Desde que o francês é presidente da UEFA só países periféricos lançaram a sua candidatura, salvo o caso francês (patrocinado directamente por si) e Itália, que precisa de um torneio internacional para remodelar o seu futebol. Todos os outros candidatos têm sido países pequenos e submissos à sua vontade. Nem Alemanha, nem Inglaterra, nem Espanha, nem sequer a Rússia se dispõem a jogar o seu jogo. Sabedor dessa realidade, incapaz de convencer nenhum destes estados a organizar o torneio de 2020 sob as suas exigências, o torneio da Europa tornou-se na farsa que esconde essa crua realidade.

Ao ser um torneio entre cidades, com estádios de elite, como se de uma Champions League de selecções se tratasse, as exigências da UEFA não são as mesmas mas os lucros são evidentes. É um aviso às federações que não o apoiam de que não são necessárias, é um estalo aos países pequenos, incapazes de suportar os contratos que beneficiam empresas patrocinadas e patrocinadoras da UEFA e é um insulto directo aos adeptos europeus.

 

Platini foi um grande jogador no terreno de jogo mas fora dele tem querido assumir o mesmo protagonismo que tinha no relvado, esquecendo-se que no futebol os dirigentes deviam actuar na sombra e a pensar no bem do jogo. O francês pensa sobretudo na sua carreira e na alegria dos patrocinadores oficiais das suas provas. O futebol, os adeptos e as tradições, para ele, tornaram-se um problema e não a sua principal preocupação. Em 2020 o futebol europeu disputará um torneio entre selecções. Não será um Euro. Será uma espécie de convenção multinacional entre aeroportos. Uma feira de turismo andante. Tudo menos um torneio de futebol. Nessa altura lembrem-se de Platini e agradeçam. O futebol será mais pobre mas quem está ao seu lado acabará muito mais rico.


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publicado por Miguel Lourenço Pereira às 20:21 | link do post | comentar | ver comentários (6)

Terça-feira, 29.03.11

Quem conhece a natureza do futebol espanhol desde as suas raízes sabe bem que o jogo popularizado pela brilhante Roja nos últimos três anos é a antítese da alma hispânica. Espanha conseguiu os títulos e a glória que sempre buscou a partir do momento em que deixou de ser ela mesma e passou a emular, passo a passo, a mentalidade de jogo holandesa. No futebol não há nada novo a inventar e comparar a evolução da equipa que deu forma ao Futebol Total com a selecção do país vizinho é como olhar para o reflexo num espelho. A Roja podia ter sido Orange e ninguém teria dado por isso...talvez só mesmo os espanhóis!

 

 

 

Rondo, rondo, rondo.

Quem ouve Xavi Hernandez, o maestro da selecção espanhola e o mais completo futebolista dos últimos anos, é forçado a guardar esta palavra espanhola no seu vocabulário. O equivalente ao nosso "meinho", esse exercício quase infantil, mudou por completo o rosto do futebol espanhol. Começou na Catalunha - como sucedeu nos anos 20 com a primeira versão grande versão da Roja, algo que a história centralista procurou esquecer - e hoje é o santo e senha do país. E o motivo de admiração do mundo. Mas o rondo de Xavi é tudo menos espanhol. Aliás, o rondo de Xavi é a antítese do futebol espanhol. É profundamente metódico, organizado, criativo e veloz, características difíceis de encontrar na mentalidade desportiva de um país que olha para um desafio como vê uma tourada, à procura do lado esteta e da vitória triunfal em ombros alheios. Esse mítico rondo que definiu um modelo de criativos que hoje compõe a estrutura base da campeã da Europa e do Mundo chegou tarde a Espanha. Chegou com Johan Cruyff. O mago feiticeiro da Holanda dos anos 70 foi também o responsável directo pelo renascimento do futebol de toque, de ataque, romântico, paralelamente em duas realidades. Quando arrancou a sua carreira como técnico, no seu amado Ajax, lançou os princípios que iriam definir o renascimento do futebol holandês e que durou até ao inicio desta década. Responsável primeiro das gerações que encantaram o mundo de 1988 a 1998, Cruyff voltou a mostrar aos holandeses o que faz deles especiais. Essa paixão pelo toque curto, pelo passe lateral, pela basculação sem perdas de bola. Esse gosto pela velocidade da bola (e não do homem) tornou-o também o pai fundador do Barcelona moderno. Até 1988 o clube catalão viva mais da fama de vitima do franquismo do que dos seus (poucos) títulos. Com Cruyff tudo mudou. O rondo chegou aos treinos, as equipas de formação de La Masia passaram a seguir os mesmos ensinamentos aplicados às estrelas do Dream Team e a pequena La Masia passou a formar, desde a sua origem, as peças do futuro. Essa mentalidade, desenvolvida por Rinus Michels nos anos 60, marcou um antes e um depois na história do futebol moderno. Mas em Espanha ninguém lhe ligou muito, nem quando o técnico pregou aos peixes de Barcelona em 1972. Enquanto a Holanda deslumbrava com o seu futebol mágico, com laterais ofensivos, falsos pontas-de-lanças, extremos bem abertos mas incisivos e médios criativos, em Espanha ainda se apostava na fúria. E não era, como muitos dizem, um exclusivo do duro futebol basco. O Real Madrid dos "yé-yés" ou dos "Garcia", as equipas que sucederam à constelação de estrelas de Di Stefano e companhia também preferia "hecharle huevos" a pensar o jogo. E do Barcelona, mesmo com génios tácticos como Michels ou Menotti, era mais fácil esperar jogos frenéticos e desorganizados do que um futebol estético. O futebol espanhol sempre foi um futebol de raça mais do que de talento. De tal forma que hoje em dia - e até Xavi  (com as excepções de Suarez, Butrageño e Guardiola) - todos os grandes nomes do país passam por ser figuras raçudas mais do que jogadores talentosos: Quini, Raul, Santillana, Gordillo, Camacho, Michel, Rexach, Hierro, Luis Enrique, Martin Vasquez, Peiró, Aragonés... 

 

A grande transformação cruyffiana marcou um antes e um depois na história do futebol espanhol.

Quando o Barcelona deixou de ser o Barcelona para passar a ser a versão holandesa do clube catalão tudo mudou. Cruyff impôs as suas normas e os seus métodos e apesar dos altos e baixos na sua polémica gestão a ideia germinou. O futebol espanhol vivia um significativo atraso comparativo com outras nações europeias (e pouco condizente com o estatuto da sua liga, sempre mais depressa apoiada em figuras estrangeiras do que em valor local) e começou a trabalhar na recuperação. A cantera, antes um conceito mais económico do que técnico, passou a fazer sentido. Particularmente em zonas onde o nacionalismo valora, profundamente, o produto local. Athletic Bilbao e Barcelona deram um passo à frente. A lei Bosman fez com que os clubes de Madrid dessem um passo atrás. Curioso é pensar que são dois técnicos formados e criados na capital que melhor souberam entender os ensinamentos do holandês. Aragonés e Del Bosque não são grandes treinadores no sentido táctico ou mediático do termo. As suas carreiras são longas e cheias de altos e baixos. Mas a forma como o primeiro interpretou os ventos de mudança e o segundo soube controlar a transição geracional é louvável. Porque estavam a lutar contra o que eles próprios defenderam durante a sua etapa como atletas e primórdios como jogador.

Ver jogar as equipas de Aragonés (principalmente Atlético Madrid e Barcelona) e Del Bosque (no Real Madrid) e encontrar traços de similaridades com esta Espanha é tempo perdido. Não os há. Essas equipas eram assumidamente espanholas na sua paixão pela fúria, pelo ataque continuado e pela desorganização táctica no sector defensivo. Mas em 2007 Aragonés entendeu que o 4-4-2 espanhol, que tantos fracassos acumulara, tinha perdido definitivamente a validez como ideia. E olhou para trás. Provavelmente para os jogos de Cruyff, não como técnico, mas como jogador. Se há alguma equipa que alguma vez se tenha parecido àquela Holanda é esta Espanha. Talvez os interpretes estejam uns furos abaixo individualmente (Villa não é Cruyff, Iniesta não é Resenbrink, Ramos não é Surbieer, Capdevilla não é Krool, Xabi Alonso não é Rep, Puyol não é Haan e Busquets não é Neskeens). Mas o sentido colectivo está lá. As transições coordenadas, a troca de bola fluida e constante, em movimentos laterais que permitem procurar espaços e desgastar, ao mesmo tempo, o rival e, sobretudo, a fluidez ofensiva entre o quinteto de meio-campo e o dianteiro, permitem-nos traçar essas similaridades. Espanha pensa o jogo como uma equipa holandesa. Não só "aquela" mas todas as que se seguiram. Se a Espanha jogasse de laranja e cada jogador da meseta castelhana tivesse um van como prefixo ninguém se estranharia. Talvez por isso catalogar o sucesso da Espanha como sucesso da ideia de futebol espanhol é, não só abusivo, como um erro. Não há nada de novo nos jogos da Roja que não tivesse sido posto em prática há 40 anos. Há melhoramentos (principalmente na faceta defensiva) e coisas a melhorar (esta Espanha continua a dominar pouco os extremos, algo de que Aragonés abdicou totalmente com um quinteto de "bajitos" - Silva, Cesc, Xavi, Iniesta, Cazorla - e que Del Bosque procura timidamente recuperar com Pedro) mas a filosofia de jogo é similar. Mais até do que a do próprio Barcelona que soube inculcar as próprias características autóctones ao jogo de Cruyff e os ensinamentos que Guardiola recebeu de Capello e Sacchi na sua estadia transalpina. Esse seu Barça é talvez ainda mais Total que a equipa capitaneada pelo seu mentor. 

 

 

 

Não podia ser mais irónico que a consagração da Espanha holandesa tenha surgido frente a uma Holanda que renegou, desde o primeiro dia, tudo o que faz parte da sua bíblia futebolística. O killer-instinct que faltou à Holanda nos Mundiais anteriores (e em três deles foi a melhor equipa do torneio) tornou-se excessivo com a formação que viajou até à África do Sul. Essa falta de classe deixa, se cabe, ainda mais a nu a aproximação mental e estética dos espanhóis à mentalidade neerlandesa. Os nomes são profundamente espanhóis, os físicos não enganam, mas o jogo que Iniesta lança no tapete verde não se vê na planície manchega de Fuentalbilla mas sim na verdejante Volendam muitos quilómetros a norte. O passe de Xavi não existe na tradição futebolística de Terrasa, mas há muito que faz parte do abecedário dos parques infantis de Amesterdam. A Espanha dos moinhos de D. Quixote transformou-se na Espanha dos moinhos de vento holandeses. Os adeptos sabem, lá no fundo, que esta equipa é tão estrangeira como qualquer outra. Mas acabar com uma fome de títulos de meia século não tem preço, mesmo que o que há que pagar seja a própria identidade futebolística de um país. Esta Espanha é temível e sê-lo-á na próxima década porque, precisamente, há muito que deixou de ser Espanha e passou a ser a ideia concreta de um pensamento abstracto cor-de-laranja.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 18:21 | link do post | comentar

Terça-feira, 08.02.11

Viveu profundamente a metamorfose do futebol alemão, ferido no orgulho menos pela guerra e mais pela ascensão estética dos seus grandes rivais do centro europeu. Esteve em dois dos momentos chaves da história do futebol europeu, sempre do lado que a história preferiu esquecer. Mas o homem que engoliu a "Laranja Mecânica" merece bem o seu lugar na história de um jogo que também ajudou a moldar.

 

 

 

Quando o árbitro britânico Graham Taylor apitou para o final do encontro que marcava o fim do Mundial de 74, os alemães deitaram as bandeiras aos céus em delirio. O resto do Mundo olhou estupefacto. Como era possível que a selecção, consensualmente considerada não só como a melhor do torneio mas também como uma equipa que tinha marcado um antes e um depois do jogo, tivesse caído de forma tão clara aos pés de outra equipa. Essa outra equipa era a RF Alemanha. A selecção, já se sabe, a Holanda. A equipa que o mundo aprendeu a amar profundamente e que entraria para a história, efectivamente, como a percursora do jogo moderno. Só um homem, provavelmente, podia entender a importância daquela vitória. Helmut Schön, então seleccionador alemão, tinha estado sentado no banco - como adjunto - 20 anos antes, em Berna, quando o mesmo cenário colocou um fim às ambições da equipa dos mágicos magiares. A vitória da RFA então sobre a Hungria foi, para os anos 50, o mesmo que a mesma vitória dos germânicos, diante da Holanda, para o futebol da década de 70. O dedo de Schön esteve em ambas. Personagem extraordinário, ele foi quem definiu o ritmo e o espirito de sobrevivência, da metamorfose do futebol alemão ao largo da segunda metade do século XX.

Como ajudante de Sepp Herberger, pertence ao ex-jogador do Dinamo Dresden, a táctica de marcação homem a homem ao mentor do jogo hungaro, Hidgekuti. Vinte anos depois, os seus onze jogadores exploraram bem os espaços deixados pelo estilo de jogo veloz e móvel da mitica "laranja mecânica". Dois triunfos históricos que definiram o futebol europeu, marcando num primeiro caso, o último suspiro do WM. E no segundo, a vitória do 4-4-2 sobre o mais anárquico 1-3-3-3, imposto por Michels.

 

O destruidor de mitos, como poderia ser conhecido, nasceu em Dresden no lado oriental alemão e jogou largos anos pelo Dinamo local, chegando a internacional na equipa que viveu os dias mais sombrios do futebol germânico. Ao serviço da Mannschaft conheceu Herberger, eleito seleccionador no pós-guerra, e tornou-se no seu braço direito depois de em 1952 ter sido eleito, interinamente, seleccionador do Sarre, provincia independente alemã do pós-guerra. Farto de viver na recém-criada RDA, desertou pelo arame farpado que dividida a cidade e rumou a Munique. Com o seu mentor, em 1954, teceu uma teia à equipa hungara de Gustav Sebes, alinhando uma equipa propositadamente débil no primeiro jogo, na fase de grupos, onde foram goleados, para depois apresentarem-se na máxima forma no jogo decisivo. Uma tarde perfeita para Rhan, Seeler, Walker e companhia e que significou o primeiro titulo futebolistico da então RFA. Acima de tudo, foi a vitória do parente pobre do futebol centro-europeu. Os alemães tinham crescido a ver os elogios do mundo ao jogo dos austriacos de Meisl nos anos 30 e aos hungaros de Sebes na década de 50. Mas nem o Wunderteam, nem os Magiares chegaram a vencer um titulo mundial, e os alemães sim.

A vitória foi tão importante para a federação da RFA que Herberger e Schön tornaram-se intocáveis. O primeiro seria seleccionador nos dois Mundiais seguintes - onde a RFA foi absolutamente relegada para um terceiro plano - e Schön ficaria com o posto a partir do fracasso do Euro 64, quando se cumpriam 10 anos da glória de Berna. Prometeu uma nova atitude e demonstrou-o rapidamente. Em Inglaterra chegou até à final, graças a um 4-2-4 móvel, com Beckenbauer como elemento nuclear na transição defesa-ataque. Quatro anos depois, no México, só a lesão do capitão e o cansaço acumulado impediu os alemães de aguentarem o ritmo da Itália. Mas em 1972 ninguém os conseguiria parar. Schön tinha adoptado, finalmente, o 4-4-2, inspirando-se na série de talentos que emergiam entre Munique e Monchenlagdbach. Deu a batuta do jogo a Netzer, apostou na eficácia de Heynckhes e Muller e transformou Beckenbauer no lider, recuando-o para a posição de libero, onde o Kaiser estava destinado a comandar o jogo. A vitória no Europeu, frente à URSS, foi o inicio da grande era do futebol alemão. Dois anos depois, com o Mundial organizado em solo germânico, a responsabilidade era máxima e o sucesso mediático da Holanda de Cruyff, aliado à derrota inicial com a vizinha RDA (no único jogo entre as duas Alemanhas da história) minou a confiança dos adeptos. Mas o seleccionador tinha as suas ideias. Abandonou o virtuosismo dos jogadores do Borussia e apostou na velocidade e força d consagrando Holzenbhein, Bonhof, Overath e Grabowski atrás do possante Hoeness e do ágil Muller. Os alemães chegaram merecidamente à final e no jogo decisivo começaram a perder desde o primeiro minuto. Mas souberam controlar os ritmos, explorar os erros defensivos da linha mais recuada dos Orange e antes dos 45 já tinham dado a volta ao marcador. Uma vitória histórica, que só Schön seria capaz de explicar.

 

 

 

O homem que definiu o gene competitivo dos alemães ainda seria finalista vencido do Euro 76 (o tal penalty de Panenka) e só uma má performance na Argentina, dois anos depois, o motivaria a deixar um posto que conhecia de memória. Mas a sua herança competitiva e táctica ficou, de tal forma que o conjunto orientado pelo seu adjunto, Jupp Derwall, repetiu os ensinamentos de Schön até à exaustão quando venceu o Europeu de 80 e marcou presenças na final de 82. Seria um dos seus melhores alunos, aquela cuja ruptura mais lhe custou, que levaria as suas ideias um pouco mais longe para devolver a Alemanha aos titulos mundiais: um tal de Beckenbauer.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 16:16 | link do post | comentar | ver comentários (2)

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