Está claro que no futebol os títulos não são tudo. Para os adeptos do APOEL o triunfo sobre o Olympique Lyon vale muito mais que os cinquenta troféus acumulados nos últimos setenta anos. Num país que sonha acordado com a enosis com a mãe pátria, o sentimento de orgulho nacional encontrou na bola de futebol o pretexto mais lógico e genuino. Para muitos cipriotas a noite de 7 de Março entra directamente na galeria dos momentos mais significativos da história do país. O futebol faz esquecer um país dividido, desencontrado e que procura afirmar-se como algo mais que um destino turistico de sonho.
Pode-se explicar a magnitude do feito logrado pelo APOEL por números ou por sensações.
Mas em nenhum dos casos teremos uma ideia aproximada do que significa estar, agora mesmo, em Nicósia. O futebol transformou-se no Século XX numa das mais eficazes formas de reinvindação dos povos. O sucesso nos terrenos de jogo várias vezes espelha a própria evolução de um país ou cidade no plano económico, politico e social. No caso cipriota é preciso ir mais além. Na Europa pós-Guerra Fria só ficaram sequelas de meio século de tensões politicas num país europeu. Precisamente, o Chipre.
O país continua dividido de forma não-oficial (só a Turquia reconhece a República separatista do norte), os muros continuam a relembrar dias pretéritos e apesar dos valores de qualidade de vida serem dos mais elevados da Europa – e definitivamente da zona mediterrânica – esse fantasma de desunião teima em não largar a memória dos cipriotas. Se a esse karma politico juntamos o eterno desejo de uma imensa maioria em unir-se, de forma definitiva, à Grécia (algo planteado por inúmeras vezes nos últimos duzentos anos), torna-se fácil entender que para os cipriotas não há muitos motivos para sacar à janela a bandeira do país e celebrar um feito capaz de capitalizar a nação. No Chipre vive-se relativamente bem, a integração europeia entre 2004 e 2008 foi rápida e sustentada e depois há o imenso nada, o tremendo vazio de momentos capazes de quebrar a rotina de um centro cada vez mais atractivo para o turismo e para a gestão de recursos naturais nas águas quentes e apaixonantes de onde brotou Afrodite. Quando a bola disparada por Gomis encontrou as mãos de Chiotis, tudo fez sentido.
Nunca na história da competição rainha da UEFA uma equipa representante de um pais fora dos 20 primeiros do coeficiente UEFA chegou aos Oitavos de Final. Muito menos aos Quartos. Nos últimos oito anos é preciso recuar a 2003-04 – um ano atipico na história da prova – para encontrar um clube de um país fora do top 15 da UEFA nos Oitavos. Naquela altura o Sparta de Praga caiu de pé, mas mesmo esse feito não deixa de ser bem distinto ao que vivemos hoje. Afinal a República Checa sempre foi uma referência absoluta na evolução do futebol europeu. O Chipre, um imenso desconhecido.
Dentro da ilha mediterrânica poucos podem contestar a hegemonia do APOEL.
Clube fundado por gregos desejosos de unir a ilha aos destinos da sua pátria de origem, sempre foi utilizado como mecanismo de propaganda nacional para os entusiastas da enosis greco-cipriota. Há uma longa tradição de jogadores gregos no clube. Que Chiotis, o histórico guarda-redes helénico, tenha sido o herói do apuramento só reforça ainda mais o momento legendário de um clube reencontrado. O sucesso recente do APOEL espelha igualmente o crescimento de um país que só em 1960 se libertou do jugo imperial britânico, mas que quatorze anos depois se viu dividido entre a ambição turca e grega.
A indefininação nacional significou também uma crónica incapacidade de afirmar-se no terreno desportivo. A partir de 2000 o rápido crescimento económico e social do país, prévia à sua entrada na UE, começou a mudar a dinamica social. Os clubes cipriotas pagavam bem e a tempo e muitos jogadores de perfil médio de várias ligas decidiram emigrar. Kennedy e Ricardo Fernandes foram os primeiros portugueses e hoje o clube conta com quatro jogadores lusos que em Portugal nunca tiveram oportunidades e que ao comando de Ivan Jovanovic se tornaram em peças fundamentais do apuramento. A maioria dos jogadores do clube são internacionais cipriotas mas há nove nacionalidades representadas no balneário. Tudo cartas fora do baralho nas grandes ligas que, em conjunto, se metamorfosearam numa legião de invenciveis.
O APOEL, que já tinha surpreendido na sua primeira aparição em 2010 na prova, teve de passar por três Pré-Eliminatórias para chegar à fase de grupos. Eliminou albaneses (Skenderbeu), eslovacos (Slovan) e polacos (Wisla), tudo clubes de nações com perfil similar. A improbabilidade de marcar presença no top 8 do Velho Continente era tal que nem sequer surgia nas casas de apostas no inicio da competição. A sorte esteve do lado dos heróis de Nicósia. Ao contrário de outros pequenos clubes europeus como o Viktoria Pilzen, BATE Borisov ou Dinamo Zagreb, o grupo onde foi enquadrado era bastante equilibrado. Um Shaktar decadente face ao ano prévio, um FC Porto desencontrado e um Zenith irregular permitiram somar pontos importantes que garantiram um apuramento inesperado e precoce. O sorteio dos Oitavos também abria as portas ao sonho. Afinal este Olympique Lyon está longe de ser a “besta negra” dos gigantes europeus. Mas a diferença brutal de orçamentos, massa salarial, expectativas e plantel era tal que nem os homens de laranja da PAN.SY.FI, a claque oficial do clube fundada em 1979, se atreviam a sonhar com tamanha audácia. Mas o futebol, como a poesia, permite sempre fintar o brutal realismo do dia a dia.
Mesmo com todos estes atenuantes, imaginar uma equipa de um país que nunca esteve sequer perto de apurar-se para um evento internacional é um logro tremendo. A vitória do APOEL é também uma vitória para Platini e a sua Champions League mais plural. Uma vitória para o futebol europeu que não pode cair no jugo de uma asfixiante Euroliga. E uma vitória para o futebol do Chipre, uma nação que se tem reencontrado a pouco e pouco com a sua essência. Se nas ruas de Nicósia e nas praias de Larnaca a bola sempre fez parte da herança cultural do país, o som do hino europeu no GSP Stadium é também uma forma de agarrar pelos braços um país que navega a contracorrente e procura não perder de vista as margens de uma Europa onde se integra com a mesma certeza com que se deixa levar pelos ventos quentes do sul que roçam os ciprestes do monte Olimpus.