O regresso de Luis Filipe Scolari ao banco da selecção brasileira demonstra bem o estado de desorganização absoluto em que vive o futebol brasileiro a um ano e meio do seu Mundial. Tal como em 2002, o "sargentão" chega em cima da hora para resgatar a honra de uma selecção de quem muitos esperam que se torne em campeã mundial. Nunca, na história do futebol, uma equipa que recebeu dois Campeonatos do Mundo, salvo o México, falhou em vencer pelo menos uma dessas edições. Depois da depressão de 1950, o desespero da canarinha já se faz sentir a 18 meses do seu encontro com a história.
Quando Ghighia marcou o golo que deu ao Uruguai o seu segundo Mundial, um país inteiro entrou numa profunda depressão que nunca curou verdadeiramente. Sim, o Brasil tem cinco Mundiais, tem algumas das melhores equipas da história do futebol e foi palco de artistas e génios tácticos que ajudaram a mudar a face do jogo para sempre. Mas aquela tarde no Marcanã nunca teve cura.
Perder um Mundial em casa acontece a poucas selecções quando são favoritas.
Uruguai, Itália, Inglaterra, RF Alemanha, Argentina e França contam-se entre os países que venceram torneios diante dos seus. De todos os vencedores de um Mundial de futebol, só o Brasil e a Espanha não o fizeram em frente dos seus adeptos. O caso espanhol é recente, a sua performance em 1982 foi deprimente em todos os sentidos, mas ninguém duvida que se em 2018 o Mundial fosse em Espanha, que eles seriam candidatos sérios ao titulo. E o Brasil?
A selecção canarinha chega a 2014 sem ser o favorito de ninguém. E isso não só parece algo sui generis em si como também ameaça prolongar a ressaca moral do futebol brasileiro. A FIFA ofereceu ao país uma oportunidade única de desforrar-se de si mesmo e limpar os esqueletos do armário. Mas a direcção sem rumo do futebol canarinho tem-se encarregue de destruir esse projecto. A contratação de Luis Filipe Scolari, um acto de puro desespero, é apenas a ponto do iceberg de um problema bem mais gordo.
Ninguém questiona que o favoritismo colectivo do próximo Mundial está nos ombros da selecção espanhola.
Se a Brasil de 1970 foi, provavelmente, a mais entusiasmante selecção da história, esta Espanha pode ser a mais longeva e estender a sua hegemonia a um segundo Mundial consecutivo não é uma ideia descabelada. Individualmente a figura do torneio será Lionel Messi que talvez tenha a última oportunidade de ser campeão com uma Argentina que aprendeu a gravitar à sua volta.
O Brasil não é favorito a não ser no plano emocional. Não possuiu uma geração inesquecível como os espanhóis e é uma equipa com muitos projectos de grandes jogadores mas sem um líder moral como Messi. E é, sobretudo, tacticamente, uma equipa sem rumo, sem um plano definido que ora baila ao som do falso nove ora procura manter-se fiel ao 4-2-3-1 que tem perseguido desde 2006 sem significativo sucesso pelos antecessores de Scolari.
Num ano em que o técnico viu a equipa que treinou descer pela primeira vez em largos anos - o histórico Palmeiras - e depois da péssima carreira pós-selecção portuguesa, muitos questionam a eleição de Scolari. A verdade é que o homem ideal para o cargo chamava-se Guardiola mas os brasileiros não podiam viver com um treinador estrangeiro no momento mais importante da sua história desde 1970. E que tanto Muricy Ramalho como Tite eram nomes pouco consensuais não só nos corredores da CBF mas, sobretudo, entre os adeptos. A falta de um génio táctico ao futebol brasileiro tem-se notado.
Desde o notável trabalho de Carlos Alberto Parreira em 1994 que a táctica desapareceu do futebol brasileiro e o génio individual tornou-se no protagonista solitário com melhores e piores resultados mas cada vez mais ao som da actualidade e distanciando-se das suas origens. Do Brasil de 1998 de Zagallo ao de Menezes vai muita diferença e talvez o de Scolari tenha sido o mais original de todos.
O "sargentão" beneficiou de três elementos fundamentais para ganhar o último Mundial canarinho.
O seu 3-4-3, contrário à tendência da época, funcionava porque então o Brasil contava com os dois melhores laterais ofensivos do Mundo (Cafú e Roberto Carlos) e o melhor tridente ofensivo em gerações (Ronaldo-Ronaldinho-Rivaldo). Tudo o resto era composto por operários que faziam o típico trabalho físico que tanto impressionava o técnico. E por fim, uma debacle das equipas europeias, que pagaram o preço da longa época no futebol europeu e a incapacidade de se adaptar ao clima asiático. Portugal, França, Itália, Espanha e Inglaterra foram caindo, por motivos extra-desportivos e por má gestão, e ficou o Brasil para vencer a mais fraca selecção alemã de que há memória.
Lembrar 2002 é importante para perceber que a escolha de Scolari é, sobretudo, uma escolha desesperada num homem que vendeu um perfil ganhador, mas que depois dessa gesta particular nunca mais voltou a saborear o triunfo. Há dez anos que a sua aura se foi perdendo e o futebol evoluiu. Scolari poderá tentar recuperar esse modelo táctico (tem Alves e Marcelo mas na frente não há Ronaldo e Rivaldo e Neymar ainda não está à altura de Ronaldinho) mas sobretudo o que terá de criar é um bloco emocionalmente forte para superar a pressão emocional tremenda que significa jogar um Mundial em Copacabana.
Scolari é o homem do aparelho, o homem dos escritórios. A sua relação com a Nike e a CBF manteve-se viva durante largos anos. Mesmo com a uma directiva progressivamente afastada da herança de Ricardo Teixeira, os velhos contactos continuam a gravitar na mesma órbitra. O Brasil sabe que, tacticamente, não superará o modelo espanhol e individualmente não encontrará um rival à altura de Messi. Essa foi a base da sua grandeza histórica (o 4-2-4 e 4-3-3 e o génio de Pelé e Garrincha). Terá de recorrer, como em 2002, à épica emocional e ao trabalho colectivo como arma de fogo para não entrar na galeria negra da história da única grande selecção que nunca soube o que era festejar um Mundial com os seus.
Depois de um sprint final que prometia ser intenso, acabou-se o suspense no Brasileirão e o Fluminense conquistou o seu quarto título nacional, o segundo em três anos, consolidando-se como um dos mais sólidos e bem sucedidos clubes do historial recente brasileiro. Apesar da pressão do "Galo" de Ronaldinho e a surpreendente etapa final do Grémio de Porto Alegre, o clube carioca resistiu a tudo e todos e carimbou mais um troféu, o terceiro em três anos.
Fred marcou, voltou a ser o protagonista, e fechou com chave de ouro uma época inesquecível para o Flu.
O goleador do campeonato brasileiro, que depois de uma etapa como emigrante intermitente voltou em grande ao país natal, foi o grande herói individual de uma equipa que Abel transformou num colectivo difícil de manobrar. O Fluminense foi a equipa mais regular da época e depois de um brilhante arranque soube gerir bem a sua vantagem e vencer a prova a três jogos do fim. Nem a derrota em Belo Horizonte, contra o Atlético Mineiro, colocou em cheque o título. No jogo do ano, os homens de Ronaldinho foram melhores mas o atraso já era considerável e os tropeções seguintes dos alvinegros facilitaram o título carioca. O empate contra o Vasco da Gama a um golo abriu as portas ao título do Fluminense. Que não enjeitou a possibilidade.
Abel Braga, um dos grandes históricos dos bancos brasileiros, soube trabalhar bem a herança da espantosa equipa de 2010, onde brilhava o argentino Dario Conca e começava a dar os primeiros passos Deco, fundamental na organização do meio-campo do clube do Rio. Pode já não ter pernas para aguentar o ritmo europeu, mas o luso-brasileiro continua a ser um dos jogadores mais importantes do futebol mundial e o seu papel no título dos cariocas não pode ser ignorado. Entre ele, Wellington Nem, Thiago Neves, Fred e as notáveis exibições do guarda-redes Diego Cavalieri, desenhou-se o sucesso individual de um colectivo muito mais forte que qualquer outro rival brasileiro.
Três derrotas em 35 jogos é algo espantoso na realidade brasileira, um campeonato extremamente competitivo e onde todos podem perder pontos em qualquer terreno. O Fluminense tem o melhor ataque, a melhor defesa e o melhor registo em jogos fora de portas (11 vitórias, pelas 6 do Grémio, por exemplo). Ninguém apresenta números similares na prova nos últimos anos.
O clube do Rio de Janeiro tem algo que falta aos seus rivais: solidez financeira.
É uma instituição bem gerida, com os salários em dia, que sabe mexer-se no mercado com habilidade e que mistura veteranos e jovens promessas com critério e paciência. Em 2010 venceram de forma clara o título e dois anos depois repetem a gesta com ainda maior naturalidade. A herança de Muricy Ramalho foi preservada por Abel Braga, que já tinha recentemente obrado a reconstrução do Internacional de Porto Alegre, e levada a outro extremo. Ninguém duvida que o Flu é um dos máximos candidatos a vencer a Libertadores do próximo ano.
O clube manterá a estrutura, a começar pelo técnico, e ninguém espera que veteranos como Deco e Fred saiam. No Brasil ninguém paga tão bem e a horas como o Fluminense, muito mais solvente actualmente do que históricos rivais cariocas como Flamengo ou Vasco da Gama, a pagarem o preço de gestão calamitosas na última década.
A vitória do Fluminense parecia evidente e só foi colocada em questão pela recuperação espantosa do Atlético Mineiro.
Liderado pelo regresso do grande jogador da última década, Ronaldinho, o Galo recuperou a pouco e pouco o atraso e no duelo entre os dois primeiros, o jogo do ano, venceu e encurtou distâncias permitindo aos adeptos sonhar com um campeonato histórico. A qualidade de Bernard, os golos de Jô e a liderança de "Dinho" pareciam condimentos únicos para uma receita de sucesso mas os líderes foram psicologicamente mais fortes e aguentaram o pulso e a distância nas jornadas seguintes não se voltou a encurtar. De tal forma que o Atlético Mineiro perdeu gás e foi apanhado pelo Grémio na tabela classificativa, outro clube que arrancou para um sprint final épico.
Num torneio que pode ficar marcado pela despromoção de outro grande, o Palmeiras, a vitória do Fluminense não só é mais evidente pelo excelente trabalho do Galo em aguentar o suspense do título quase até ao fim da prova. As próximas jornadas servirão para cumprir calendário e para Fred ampliar a sua lenda como goleador para Mano Menezes ver, ele que teima em não confiar no dianteiro carioca como opção para o ataque do escrete canarinho.
O triunfo do Fluminense permite estabelecer uma ponte com 2010 e afirmar, sem problemas, que estamos perante um domínio equivalente ao do São Paulo, no final da década passada. Estão em jogo todas as condições para o título se repetir nas próximas épocas e o próximo passo do clube carioca será restabelecer a importância do futebol brasileiro na máxima prova continental de clubes e marcar presença no Mundial de Clubes do próximo ano.
Sai Leandro Damião, entra Kaká. Uma mudança que provoca um verdadeiro terramoto táctico no jogo ofensivo do Brasil de Mano Menezes. Uma mudança que aproxima o escrete canarinho da sua herança histórica, defensora do conceito de falso 9 muito antes do futebol actual sequer ter sonhado com tamanha "inovação". Este Brasil ainda apresenta falhas importantes para ser considerado favorito no terreno de jogo a vencer o seu Mundial. Mas se a experiência da última semana se tornar em realidade, o concerto de classe e futebol dos brasileiros está garantido para o próximo Campeonato do Mundo.
Circula a bola com fluidez. Move-se de lado a lado do campo.
Sem posições fixas, sem ataduras tácticas visíveis a olho nu (porque elas estão sempre lá), o quarteto ofensivo brasileiro desdobra-se com naturalidade, talvez lembrando-se de outras eras, de outras histórias, de um futebol que foi perdendo com a sua progressiva europeização. Em 1990 Carpeggiani chocou o Mundo apresentando um 3-5-2 calcado ao modelo argentino tão em voga na América Latina e o Brasil desiludiu como nunca. Quatro anos depois o músculo substituiu o talento, os buldozzers jogaram no lugar dos pintores e a eficácia do único génio irreverente fez a diferença e o Mundial chegou, 24 anos depois. Em França, Zagallo procurou aproximar-se mais ao modelo europeu mas cedendo alguma criatividade ao seu ataque e o titulo ficou a um pequeno passo para os brasileiros e um imenso salto para Ronaldo. O homem que apareceu, quatro anos depois, para ajustar contas com a história numa equipa que jogava num 3-5-2 que só era viável porque Roberto Carlos e Cafú são tão inimitáveis como os três R´s da frente. Para os dois Mundiais seguintes passou-se do 8 (um ataque só de avançados e sem trabalho de meio-campo) ao 80 (uma equipa sem alma de ataque que apostava tudo no músculo do miolo). Nenhum dos projectos resultou. Mais do que isso, nenhum destes modelos tinha sequer similaridades à escola brasileira. À dos três Mundiais, entre 1958 e 1970, à do Brasil de Telé Santana, à que acreditava no papel do individuo dentro do colectivo como elemento realmente diferenciador na hora da verdade.
Talvez este seja um ponto de inflexão.
O Brasil que renegou da sua condição parece interessado em redescobrir-se. Talvez porque jogará o Mundial em casa e tem contas para ajustar. Nenhuma selecção grande que teve recebido alguma vez um Mundial falhou em vencê-lo. Uruguai em 1930, Itália em 1938, Inglaterra em 1966, Alemanha em 1974, Argentina quatro anos depois e França em 1998. Os brasileiros são a única grande nação que falhou em casa na hora da verdade. Nunca nenhum país que tenha recebido por duas vezes um Mundial, salvo o México, viveu duas derrotas do anfitrião. Esse é um peso sério para os ombros de Menezes. Especialmente se desiludir não só no resultado mas, sobretudo, no terreno de jogo.
O falso 9 é uma falsa questão, uma invenção tão antiga como os mágicos magiares de princípios da década de 50.
Não foi uma invenção actual, espanhola ou blaugrana, e ninguém a levou ao nível de lenda como a selecção brasileira de 1970. A de Zagallo, o homem por detrás da metamorfose do 4-2-4 para o 4-3-3 e o homem que tem igualmente o crédito de ter inventado o 4-2-3-1 no Mundial do México. A diferença é que esse um, esse elemento avançado diferenciador, Tostão, actuava no terreno de jogo como um mais do tridente que o precedia composto por Jairzinho, Rivelino e o imenso Pelé. Nenhum dos quatro jogava numa posição fixa e alternavam regularmente posições na linha ofensiva. Jairzinho foi o melhor marcador do escrete, apontando em todos os jogos, um feito histórico, aparecendo tantas vezes no espaço que a movimentação de Tostão deixava para os colegas. A consagração dessa selecção, uma das melhores e mais excitantes da história, foi também a consagração de um modelo sem amarras tácticas que muitos pensavam ser possível só no Brasil.
Doze anos depois o Brasil de Telé Santana tentou emular o mesmo ideário, num 4-2-2-2 em que os quatro da frente trocavam de posição de forma constante, com a maioria dos golos a ser marcados pelos médios ofensivos e não pelos dianteiros. Mas a ausência de um título pesou na imagem que deixou no futuro e à medida que o futebol se metia em corsets tácticos vários, a ideia perdeu-se no tempo até que Pep Guardiola, primeiro, e Del Bosque, depois, a aplicaram com sucesso no futebol espanhol.
Kaká foi a pedra basilar no modelo de Menezes que recupera essa herança.
Até agora o seleccionador tinha procurado jogar quase sempre com uma figura de ataque, habitualmente Leandro Damião. Mas a verdade é que ao Brasil falta-lhe essa figura de goleador com que a história tem abençoado os brasileiros nas grandes gestas desportivas. Talvez com essa consciência, talvez porque a herança táctica brasileira pedia algo especial, Menezes decidiu reunir os seus jogadores mais criativos e distribui-los pela linha de ataque sem posições fixas.
A movimentação de Hulk, Neymar, Kaká e Óscar é o grande quebra-cabeça das defesas contrárias. Jogam no espaço, pedem a bola, movem-se e descolocam os rivais com a precisão de um relógio. Apoiam-se no imenso trabalho físico e táctico da dupla Ramires-Paulinho, herdeiros dessa memória de carregadores de piano do passado, e pintam o seu futebol de forma tranquila e cúmplice. Quando saem, é para dar lugar a outros interpretes da mesma sinfonia, a Lucas Moura, a Giuliano, a Thiago Neves e só, ocasionalmente, ao caça-golos Damião.
Menezes pode avançar com uma linha de individualidades com que talvez só o futebol espanhol e alemão possa competir. Pode dar-se ao luxo de abdicar de um renascido Ronaldinho Gaúcho. Pode esquecer-se até de Jadson ou Willian. Para não falar de Paulo "Ganso" Henriques, que parece ter perdido definitivamente este comboio. De certa forma conta com as condições perfeitas para montar uma orquestra deste estilo. Dois laterais ofensivos - Alves e Marcelo - dois centrais de garantias - Thiago e David Luiz - e um meio-campo tacticamente impecável. Os jogos mais recentes, frente a dois rivais asiáticos, deixaram a nu alguma falta de coordenação entre o ataque e a defesa e talvez por isso o seleccionador brasileiro tenha guardado sempre as substituições para os momentos finais. Para ganhar o grupo, o onze, a equipa que os pode levar ao hexacampeonato do Mundo.
De certa forma, a este Brasil falta-lhe a estrela planetária (que Neymar ainda não é) que tem a Argentina, o espírito coral da selecção alemã e a classe superlativa da equipa espanhola, aqueles que são os reais favoritos a vencer o próximo Mundial. Mas a um ano e meio de arrancar o torneio, Menezes tem tempo para trabalhar a sua ideia. Ter encontrado com o modelo ideal é o primeiro passo. A partir daí a herança histórica brasileira e o talento genuíno dos seus interpretes terá de fazer o resto para fazer dessa condição de favorito emocional o primeiro passo para um torneio para a posteridade.
Quando era jogador nunca foi um exemplo fora do campo e nunca deixou de ser um génio dentro dele. Negou-se a treinar com a anuência de Cruyff, chegou de helicópetro ás concentrações, disputou a soco o titulo de "bad boy" do futebol brasileiro com Edmundo e passou tantas horas no ginásio como em festas em favelas e hotéis de luxo de Copacabana. Com todo esse historial nas costas era dificil imaginar o que viria a passar mas Romário está decidido a salvar o futebol brasileiro.
Era dificil de acreditar mas Ricardo Teixeira encontrou finalmente a sua nemésis.
O enteado de João Havelange, talvez o pior dos directivos de quem falava Juca Kfouri quando dizia que Deus deu ao Brasil os melhores jogadores e piores dirigentes do Mundo, foi forçado a sair finalmente do seu trono sagrado na CBF. A pressão da investigação jornalista da equipa de Andrew Jennings e do próprio Kfouri, a inimistade com Dilma Roussef foram elementos fundamentais na sua saida. Mas quem deu o tiro de graça foi Romário.
O "Baixinho" foi o herói de um futebol brasileiro orfão de lideres depois da debacle emocional do Mundial de 90 quando a nostalgia do futebol arte da geração de Telé Santana já era um longo adeus. O país perdoou-lhe tudo. A sua indisciplina crónica, a sua falta de profissionalismo absoluta, os casos com as mulheres, as discussões com os colegas e os rivais, as suas amizades com alguns dos traficantes mais perigosos do Rio de Janeiro e, sobretudo, do seu ódio crónico á imagem sagrada de Pelé. Em troca Romário deu-lhes o melhor futebol que o país viu nas eras entre Zico e Ronaldo. Terminou com a seca de 24 anos sem vencer um Mundial de Futebol, nuclear na campanha dos Estados Unidos em campo e fora dele. Tornou-se no terceiro maior goleador da história do país, apenas atrás do "Rei" e de Friedenreich, por muito que muitos dos golos fossem abertamente questionados por todos. Passou pela Europa onde se doutorou com Cruyff e enimistou com Robson, Ranieri e Aragonés voltou ao Brasil como semi-deus. Depois fez-se politico. As más linguas, e no Brasil a má lingua é um desporto nacional como jogador futvoléi nas suas praias perfeitas, diziam que a sua carreira politica, como a de muitos nomes ligados ao futebol, era apenas uma forma de se proteger face aos problemas fiscais que há anos o enfrentavam a Brasilia. Provavelmente teriam razão mas na capital artificial do gigante sul-americano Romário transformou-se, como Pelé, no rosto mais claro de oposição á CBF. O histórico avançado do Santos não teve o poder politico e mediático para vencer a luta com Teixeira e num último acto de desprezo o ex-presidente da Confederação recusou-se a convidá-lo para a cerimónia de apresentação da fase de apuramento para o Mundial de 2014. Mas com Romário, o homem que viveu com ele um dos episódios mais tristes da história da CBF na ressaca do Mundial dos EUA, não encontrou forma de vencer.
As criticas do "Baixinho" começaram por centrar-se na organização do Mundial.
Romário utilizou o seu lugar em Brasilia e o seu poder nas redes sociais para atacar violentamente a organização do torneio. Um torneio onde todos, incluido o próprio Sepp Blatter (que aprovou em 2000 a rotatividade de continentes também a pedido expresso de Teixeira), começam a termais dúvidas do que certezas. As obras levam um atraso histórico, há ainda sérios problemas de financiação com estádios e infra-estruturas, aeroportos e estradas por construir e um pais com uma tremenda pujança financeira que começa a questionar-se, na pessoa da sua nova presidente, se gastar tanto dinheiro para enriquecer a FIFA - da qual Teixeira continua a ser membro honorário - é realmente um bom investimento.
Das criticas ao torneio - que a imprensa brasileira apoia entusiasticamente- o ex-dianteiro apontou baterias a Teixeira. Criticou a sua gestão de mais de duas décadas, a profunda desorganização do futebol nacional no Brasil, o mitico e polémico contrato com a empresa americana Nike e, sobretudo, o investimento paralelo que pode fazer valer a Teixeira e alguns dos seus principais colaboradores contratos milionários com a própria FIFA. O mano a mano durou meses e inicialmente Teixeira, habituado a ser desafiado por tudo e todos, se mostrou condescendente. Aceitou colaborar com o avançado na sua campanha a fazer dos que padecem de sindrome de Down (como uma das filhas de Romário), declarando um investimento de 32 milhões de reais e uma série de bilhetes gratuitos para as organizações patrocinadas pelo deputado. Mas não chegou. No final o cerco mediático organizado por Romário deu ainda mais destaque ás revelações da Folha de São Paulo sobre os seus negócios paralelos. A má performance do Brasil em campo, as queixas de corrupção secundadas pela procuradoria geral e a perda de apoio na FIFA obrigou Teixeira a ceder o seu posto ao seu braço-direito, José Maria Marin. O novo dirigente não só garantiu que a filha do seu antecessor, directiva na CBF, iria manter-se no cargo onde foi colocada pelo pai, como garantiria uma reforma milionário para o ex-presidente até 2030.
Os que pensavam que a luta de Romário era apenas com Teixeira ficaram surpreendidos quando o homen do PSB-RJ anunciou que continuaria o seu combate até limpar a CBF de todo o rastro de "teixeirismo", declarando publicamente o apoio a Ronaldo Nazário como eventual candidato presidencial para a federação brasileira de futebol, no próximo ano.
Com a reeleição praticamente garantida, Romário emulou Pelé em campo e fora dele. Nos anos 90 o histórico jogador brasileiro desafiou os poderes da CBF com a lei que levou o seu nome e que tinha como objectivo reformular totalmente o mais caótico campeonato do Mundo. O poder do lobby da CBF no Senado destroçou uma lei prometedora. Passados quase 15 anos outro homem de 1000 golos prepara-se para continuar a luta para salvar o seu futebol. Entre festas, jogos de futvolei em Copacabana e sessões do Senado, o "Baixinho" revelou-se ser maior que a sua própria lenda. Os cartolas do futebol brasileiro que se cuidem...
A ressaca do sucesso do escrete canarinho no Mundial de 1970 durou uma década. Até 1980 o Brasil andou sem rumo, perdido entre o sucesso individual de 70 e a certeza de que essa geração tinha-se tornado num mito irrepetivel. Telé Santana encontrou a chave do futuro e desenhou um sistema capaz de emular o modelo de jogo das camisolas amarelas de Pelé e companhia. O Quadrilátero Mágico brasileiro tornou-se a chave da europeização do futebol brasileiro até aos dias de hoje, mas na sua concepção foi um último piscar de olhos a uma realidade mitológica que nunca mais ninguém foi capaz de repetir.
O golo de Carlos Alberto que culminou o triunfo mais espectacular de uma equipa na final de um torneio internacional marcou o fim de uma era.
Não só a geração de 70 era única no talento e na entrega como as condições em que se formou o projecto de Zagallo acabaram por se revelar tremendamente circunstanciais e, portanto, irrepetíveis. Um Mundial de altitude que asfixiou, à partida, qualquer ideia de pressing que começava a tornar-se popular na Europa e, sobretudo, um Mundial onde as equipas, pela última vez, prestaram mais atenção ao homem e menos ao espaço. O 4-2-3-1 que Zagallo desenhou para albergar tantos génios só funcionou porque nenhum dos rivais que o Brasil encontrou, nem mesmo a Itália, se preocuparam minimamente em aplicar um pressing eficaz. Gerson, Clodoaldo, Pelé e Rivelino tiveram a eternidade nos pés e tempo e espaço para desenvolver o seu melhor futebol. Mas esse espirito livre e romântico do jogo já tinha os dias contados antes do Mundial e depois o desmoronar do projecto brasileiro acabou por ser inevitável. O Mundial de 74 confirmou a mudança de guarda no histórico duelo com a Holanda e quatro anos depois o Brasil esteve perto de chegar à final de uma forma timida e absolutamente imerecida. Tanto Zagallo como Coutinho continuavam a acreditar que os individuos superavam o sistema mas ambos tentaram instituir um sistema europeizado que acabou por ir contra o próprio modelo de jogo individual dos seus principais astros. Numa década onde a qualidade do futebol brasileiro decaiu, a selecção foi incapaz de aguentar o futebol mais musculado, temporizado e, sobretudo, pressionante, dos conjuntos europeus. Parecia inevitável que o Brasil procurasse uma fórmula que permitisse recuperar o tempo perdido. Mas havia também uma imensa nostalgia com os dias gloriosos do Tri que ninguém queria perder. Telé Santana, então maestro do Fluminense, chegou a Espanha em 1982 com o modelo ideal na sua cabeça. Um modelo que não funcionou mas que iria forçosamente condicionar o futuro do futebol brasileiro nos 30 anos seguintes.
O Quadrilátero Mágico de Santana resumia os principios da geração de 70 (jogam os melhores jogadores com total liberdade) com a aplicação do ideário do Futebol Total (pressing, movimentação no terreno de jogo, verticalidade e velocidade).
O sistema táctico idealizado pelo brasileiro acentava num claro 4-2-2-2 abdicando totalmente do jogo de extremos, uma ideia já defendida por Maslov e Ramsey nos anos 60 e que Zagallo adaptou ao transformar dois avançados, Jairzinho e Rivelino, em falsos extremos. Em 1982 o futebol brasileiro tinha uma grande variedade de médios centro e uma profunda escassez de dianteiros de renome. Em lugar de emular Zagallo, o técnico nacional optou por dar total liberdade a Sócrates e Zico, com Serginho e Éder à frente e Toninho Cerezo e Dirceu como médios mais recuados. As alas eram entregues a dois laterais rápidos, na escola de Nilton Santos, Leandro e Júnior que tinham a função de abrir o campo e cercar as defesas contrárias. Um modelo que garantia pressing no miolo com um quarteto de luxo, dois dianteiros móveis (que só jogaram porque Careca, lesionado, e Dinamite, fora de forma, não estavam em condições) e laterais ofensivos. O plano resultou na fase de grupos (com Falcão a "roubar" o posto a Toninho) e a vitória clara sobre a Argentina deu a sensação de que a equipa tinha encontrado o equilibrio necessário. Não foi assim.
Contra a Itália o sistema bateu o individuo e marcou o fim de uma era. O Brasil nunca soube controlar os tempos do jogo, viu-se prejudicado pela concentração massiva de jogadores no meio-campo e deixou as alas abertas às investidas de Cabrini e Tardelli. A derrota significou o fim do futebol-arte brasileiro (nunca mais repetido a esse nivel) e reforçou a ideia da europeização do jogo. No entanto, o 4-2-2-2 manteve-se como o santo graal. Quatro anos depois Santana repetiu o esquema e voltou a fracassar frente a uma equipa com um esquema táctico similar, a França, nos penaltys. Em 1990 Carpeggiani decidiu emular o billardismo argentino e fracassou ainda mais estrepitosamente levando o seu sucessor, Carlos Alberto Parreira a regressar ao 4-2-2-2. Com Jorginho e Branco nas alas, Dunga e Mauro Silva no miolo, Bebeto e Romário no ataque e atrás de si uma dupla móvel de criativos, Zinho e Mazinho. Uma equipa sem brilhantismo mas com a eficácia europeia que faltou aos génios de 82. O sucesso do Quadrilatero levou Zagallo, o homem que tinha liderado a geração de 70, a não mudar no esquema para 98, trocando Romário por Ronaldo e Zinho e Mazinho por Rivaldo e Leonardo. A equipa brasileira voltou a uma final mas saiu derrotada, por uma França que soube anular o 4-2-2-2 ocupando o meio-campo de forma mais organizada num 4-5-1 letal. Scolari voltou ao billardismo (e com sucesso porque, tal como o argentino, contou na frente com um jogador inspirado, Ronaldo) mas Parreira decidiu recuperar o Quadrilatera para o Mundial de 2006. Um erro absoluto porque emulou o ideário de 1982 (grandes jogadores, total liberdade, desorganização táctica) e não o de 1994. O falhanço levou os brasileiros a questionar a eficácia de um modelo que, para o bem e para o mal tinha moldado o futebol brasileiro mas quando Dunga decidiu repetir a dose em 2010, com Robinho e Fabiano diante de Kaká e Elano que por sua vez jogavam com Melo e Gilberto a proteger a medular, o Brasil entrou em desespero. O insucesso da campanha do escrete canarinho significou também o fim do Quadrilatero. Mano Menezes entendeu que não havia nenhuma possibilidade de alterar o ciclo vicioso sem abdicar de uma profunda mutação táctica. O técnico apostou num 4-2-3-1, recuperou o jogo de extremos com Robinho, Neymar ou Lucas e na figura solitária do ponta-de-lança, tão de voga na Europa. Mas nem isso lhe valeu, talvez por culpa mais dos rostos do que, propriamente, do sistema.
A metamorfose táctica do país que inventou o 4-2-4, explorou o 4-3-3 e consolidou o 4-2-2-2 continua agora numa normalização com o resto do planeta futebol em que o homem passa a ser apenas parte da engrenagem táctica. A falta de tempo e espaço no futebol de alta competição acabou com o espirito malandro dos grandes "malandros" brasileiros que durante anos fizeram a delicia do público. Hoje não há tempo nem paciência para fenómenos individuais se não existe antes e depois uma forte contundência colectiva. O Brasil, o mais individualista dos amantes do futebol, ainda não conseguiu verdadeiro unir método e homem num só esquema. Perdeu a magia de antes, a eficácia de antes e o ritmo cadente de titulos de antes. O que ainda não perdeu foi o sonho utópico de juntar a mestria dos génios individuais com as necessidades tácticas do futebol moderno. Talvez algum dia o escrete canarinho descubra o que todos já desistiram de procurar...
O habitual preconceito dos europeus obrigam-nos a suspeitar sempre de um jogador brasileiro. Em qualquer jornal, revista ou programa especializado ouvimos vezes sem conta que um jogador que brilhe fora da Europa só é bom no dia em que repetir o feito nos relvados do Velho Continente. Uma falácia perigosa que nos leva até Neymar, a pérola do mercado que tem meia Europa a salivar e meio Brasil a rezar desesperadamente para que não atravesse o oceano. Na encruzilhada de uma carreira precoce, o pequeno génio do Santos terá de tomar uma decisão que marcará de forma inevitável o resto da sua carreira.
Desde os dias de Pelé que o Santos não vencia a Copa dos Libertadores.
São quase 50 anos de uma espera angustiosa que só uma equipa de eleitos podia encurtar de forma definitiva. Neymar foi, em parte, responsável por esse titulo. Não só pelo que fez dentro do campo, onde foi figura fundamental durante a campanha do "Peixe" mas, sobretudo, pela imagem que transpareceu, de uma maturidade inusual, do lider de uma geração com fome de titulos. Esta equipa do Santos provavelmente não tem o mesmo nivel do conjunto da década de 60 (e isso só o tempo o dirá) e até é bastante parecida com a geração de Diego, Robinho e Elano que devolveram ao clube do porto de São Paulo o titulo de campeão nacional. Mas a figura de Neymar destaca-se claramente sobre o colectivo.
O jovem extremo de 19 anos é, por direito próprio, o chefe da banda. Talvez a sua influência no jogo seja inferior à de Paulo Henrique, o célebre Ganso que perdeu muito do ano por uma inoportuna lesão, mas o seu carisma supera a do médio criativo que, na realidade, faz o jogo mover-se. Neymar tem nos pés a magia do futebolista de rua sul-americano, essa raça que os espartilhos tácticos tão a gosto dos europeus ainda não conseguiu fazer desaparecer totalmente. São cada vez menos e acabam por ser olhados com mais suspicácia, mas sobrevivem a cada finta, cada regate, cada jogada impossível. A fama que Neymar tem ganhou-a a pulso graças ao seu repertorio particular. É a epitome do futebolista individual, do jogador que brilha por si mesmo, pelo seu talento inato e pelo seu descaro. No futebol sul-americano, onde o respeito pelo individuo ainda é uma máxima, Neymar está cómodo e confortável. Não significa isso que seja um jogador imaturo como muitos querem fazer querer. A maturidade do extremo ficou provada na final da Copa dos Libertadores frente a uma das melhores e mais duras equipas do Mundo, o Peñarol uruguaio. Poucos conjuntos europeus tratam o jogo com tanta paixão e agressividade como os uruguaios e no entanto Neymar teve maturidade suficiente para aguentar o golpe e decidir a eliminatória. Não teve o mesmo espaço, não brilhou tanto, mas não desapareceu no momento mais importante da sua carreira. Esse sinal de persistência joga a seu favor mas também deixa os tubarões europeus a salivar.
Numa era em que o futebol sul-americano vive um descontrolo financeiro imenso o dinheiro é mais necessário do que nunca, tanto para jogadores como para os clubes. As estrelas das ligas argentina, uruguaia e brasileira saem cada vez mais cedo dos seus clubes de origem e muitos são forçados a voltar depois de passos em falso. Os veteranos, sem espaço para o jogo mais cerebral do futebol europeu que já não encontram espaço em ligas milionárias emergentes, também regressam a um ritmo trepidante. E no meio de todo este caos um jogador do talento de Neymar (tal como Ganso, Lucas e companhia) legitimamente questiona-se sobre se continuar num campeonato descontrolado nos calendários, salários ou métodos de gestão. Mas o nosso erro, dos analistas europeus, é olhar para o Brasileirão com esse sentido critico de quem faz da organização o aspecto fundamental do seu futebol, dentro e fora de campo. Um jogador como Neymar, criado nas ruas do Brasil e acarinhado como o enésimo sucessor de Pelé, sente certamente a sua realidade de outra forma.
É o jogador mais bem pago da América Latina, um salário de 6 milhões que o coloca por cima da maioria das estrelas europeias.
Esse é o grande handicap da maioria dos jovens craques brasileiros, um problema com o qual a estrela do Santos não tem de lidar. Ao mesmo tempo Neymar sabe-se que é o lider do projecto desportivo que mais injecção de dinheiro privado tem em todo o Brasil. Um suporte financeiro importante para tentar atacar o titulo Mundial e a revalidação do ceptro continental. O objectivo da direcção santista é ter uma equipa de top até ao Mundial de 2014 para potenciar o efeito de atracção que terá o Brasil em ano de Mundial. E Neymar é a estrela desse ideário de que o futebol sul-americano pode resistir ao encanto europeu quando as condições que encontram na Europa as encontram em casa.
Mas a oferta do Real Madrid (e do Chelsea, e do Barcelona) é tentadora não só pelo aspecto financeiro. Os sul-americanos sabem que a mitologia desportiva é construida essencialmente pelos europeus. Os que sempre olharam de soslaio para Pelé porque nunca ter abandonado o seu clube de formação e que exigem de qualquer astro sul-americano o mesmo brilhantismo nos palcos europeus. Zico, Sócrates, Kempes, Tostão, Dinamite e companhia nunca tiveram o impacto mediático que mereciam porque na Europa ficaram a anos luz do seu rendimento no seu país natal. Neymar quer repetir o feito de Ronaldinho, Rivaldo e Ronaldo, os únicos brasileiros que realmente deixaram a sua marca no futebol europeu. E para fazê-lo sabe que tem de atravessar o Oceano e provar todo o seu valor. Aos 19 anos é dificil resistir ao canto da sereia mas o potencial de crescimento de Neymar nos próximos anos faz mais sentido numa realidade como a do Santos do que debaixo dos holofotes de um grande europeu. O extremo que vai liderar o ataque do Brasil à Copa América não tem nada a invejar em talento puro aos grandes do jogo mas precisa provavelmente de crescer como profissional longe da pressão do imediatismo ou os espartilhos tácticos que têm servido, em muitos casos, para travar a progressão de verdadeiros génios. Esse é o risco que corre Neymar .
Ficar para disputar o Mundial de Clubes com o Santos seria o acto de maturidade mais importante na carreira de um jogador brasileiro em largos anos. Crescer desportivamente no futebol sul-americano em vez de partir para a Europa pode parecer, à primeira vista, um acto de receio pelo que lhe possa esperar num gigante do Velho Continente. Mas seria a forma perfeita de Neymar mandar uma mensagem clara ao Mundo. Ser o melhor e sê-lo longe dos holofotes dos duelos mediáticos de Messi, Ronaldo e companhia é um desafio intrigante que pode devolver algum do fascinio ao fosso imenso que ainda subsiste entre o futebol europeu e o futebol sul-americano. Neymar tem todas as condições para brilhar onde quer que seja, para o futebol seria certamente mais importante que o fizesse longe do circo por onde todos já se movem e onde o ar para respirar é cada vez mais rarefeito.
Começa a ser dificil ignorar o imenso talento de Neymar. E no entanto apetece. Apetece esquecer que ali existe um imenso potencial artistico que, aplicado na dose certa, pode resultar num jogador extraordinário. Tudo porque Neymar tem representado um papel para o qual não há futuro. Robinho já o viu e até grandes como Ronaldinho sentiram-no na pele. Neymar vive uma encruzilhada perigosa. Pode vir a ser um grande jogador ou um grande artista. E a balança que não se decide...
Em 2014 o Mundo vai exigir ao Brasil o que não logrou em 1950. O que não consegue há nove anos (serão 12 então). O titulo Mundial.
Sem Ronaldinho, sem Kaká e sem qualquer referência histórica, a geração do escrete canarinho de 2014 está orfã de um lider. Mano Menezes, o hábil seleccionador que se prepará para o torneio com o peso do Mundo nos ombros, sabe-o bem. Faz provas, experimenta, procura a originalidade mas está refém. Refém de um campeonato desvalorizado, sem chama. Refém da migração precoce dos seus melhores jogadores jovens. Refém do poder mediático das estrelas passadas de moda e forma fisica (e mental). Mas, sobretudo, refém de jogadores que teimam em esquecer a faceta profissional do futebol. Jogadores que continuam a preferir a festa, o dinheiro, as mulheres e o espectáculo inconsequente ao treino, à disciplina, ao sentido táctico...jogadores como Neymar.
O médio ofensivo do Santos é uma pérola imensa, talvez a maior que o futebol brasileiro tem em mãos desde a ascensão de Ronaldinho Gaúcho no Grémio. Nem Kaká, nem Robinho, nem Pato conseguiram tanto em tão pouco tempo. E os três também tiveram pouco tempo para se apresentar ao Brasil. Aos poucos jogos como profissionais já tinham um bilhete de avião para a Europa no bolso. Neymar há ano e meio que encanta o Brasil. No horário de São Paulo. É o lider criativo do Santos mas, sobretudo, é o espelho do jogador de rua que os brasileiros tanto apreciam. Mas é, também, o seu maior inimigo. Anda com correntes de ouro, telemóveis de última geração, penteados copiados dos catálogos que chegam de Miami e rotinas que pouco condizem com um profissional. É também o herdeiro de um estilo de jogador muito habitual no Brasil. O que não acredita na organização e na disciplina. Insulta o seu treinador com facilidade, recusa-se a comemorar golos dos colegas quando lhe apetece e, acima de tudo, é incapaz de jogar para o colectivo quando tem a possibilidade do brilho individual. Um jogador destructivo mas com um talento tão grande que o Brasil se arrisca a deixar-se cair nas suas mãos. Antes do tempo.
Pelé tinha 17 anos quando chegou ao escrete mas era, já então, um profissional imenso. Garrincha não, mas a sua jovialidade além de ser resultado da sua inocência mais do que a sua presunsão não teria funcionado hoje como sucedeu entre 1958 e 1966, os seus anos de ouro. Ronaldo foi adulto muito cedo e viveu o sacrificio como Romário e Ronaldinho nunca souberam fazer. Por isso ainda há no Brasil quem olhe um pouco de lado para a sua figura. O público brasileiro gosta do espectáculo pelo espectáculo mas também não suporta perder. É como Neymar. O delicioso jogador brilha num campeonato feito à sua medida onde o defesa para para se deixar driblar e não faz falta para não receber o olhar reprovador dos seus próprios adeptos. O talento de Neymar teria mais dificuldades em encantar na Europa como Robinho descobriu. Em Espanha, Itália e Inglaterra o avançado nunca logrou parar o tempo e os rivais com a mesma facilidade com que serpenteava o relvado curtinho do Brasileirão. Talvez por isso, talvez por essa licção aprendida pelos grandes que ainda hoje não sabem o que fazer com este tipo de jogadores, Neymar continua no Brasil. E não está só. Paulo Henriques (Ganso), Casemiro, Ciro, Kleber, Dentinho, Óscar, Tinga e tantos outros talentos precoces inspiram o mesmo tipo de desconfiança que Neymar. Mas é deles que o Brasil depende. Ou pior, quer depender.
Menezes sabe que não tem o leque de jogadores que Scolari, Parreira e Zagallo tiveram para chegar ao topo. Nem de longe nem de perto. Hoje o Brasil tem sérias dificuldades para montar um plantel competitivo para disputar com Espanha, Alemanha, Argentina e Holanda a supremacia mundial. Não tem um jogador determinante como Messi, um modelo de jogo claro como o dos espanhóis ou um colectivo forte e habituado a jogar junto há largo tempo como germânicos e holandeses. Apesar de receber o Mundo, este escrete está muito longe da imagem romântica que inspira receio nos rivais. Para Menezes entregar a batuta da geração de 2014 a um jogador como Neymar, tão problemático como genial, diz bem do desespero que vive uma nação habituada a impor o seu ritmo e lei. Entre médios trabalhadores, jogadores a trabalhar na chamada classe média europeia (que grandes brasileiros actuam nos principais clubes da Europa com a excepção de Dani Alves, Alexandre Pato ou Marcelo?) e essas conflituosas promessas vive o futuro dos campeões dos campeões. Um jogo de expectativas perigoso que pode jogar contra a ideia de supremacia moral que sempre pareceu acompanhar as estridentes camisolas amarelas.
Neymar, no meio de tudo isto, continua a deslumbrar no relvado e a preocupar fora dele. O seu estilo dandy é inconfundivel, traz a marca do jogo de favelas e da habitual esperteza do desenrascanço brasileiro. Mas o "chico-espertismo" do brasileiro hoje não funciona num planeta futebol habituado a encontrar rapidamente o antidoto para cada veneno. E Neymar, como outros antes dele e muitos certamente depois, encanta mas não traz consigo um efeito surpresa. Nem na classe nos pés nem nos problemas fora do campo. É uma bomba-relógio que só ele mesmo poderá desactivar e um problema para os dirigentes dos grandes clubes europeus. Ter nos ombros o peso de um país pode fazer com que a bomba se active antes do tempo. Ou que se desactive permanentemente. Uma encruzilhada que tem em suspenso o Brasil. Dele depende a ilusão do futuro e a eficácia do presente. E o tempo, já sabemos, fugit!
Conta-se que uma vez um reputado jornalista do L´Equipe, de visita ao Rio de Janeiro, viu-se confrontado com a pergunta de quem era, para ele, o melhor jogador do mundo. O homem sorriu e respondeu "Edson Arantes do Nascimento". O brasileiro que lhe fez a pergunta ficou com ar de espanto e não evitou o comentário "Pô, você nunca viu jogar Pelé?". Independentemente de nomes, apelidos, alcunhas e titulos, o mundo do futebol conheceu vários craques e lendas, mas nunca nenhum jogador chegou tão longe, tão perto da eternidade, do que um rapaz que não gostava que lhe chamassem Edson.. A história imortalizou-o com outro nome, mas no meio de tanta genialidade, que importam os nomes?
A história é feita de episódios curiosos. Como o de Dondinho, jogador fracassado que se dedicou a treinar a equipa onde o filho e os amigos jogavam. Ou o dia em que, então um rapazinho com saudades de casa, se preparava para sair a meio da madrugada do lar do Santos, onde vivia, e abandonar o sonho de ser futebol. Foi apanhado pelo porteiro e voltou atrás, engolindo as saudades e lançando as bases para a era mais memorável de todo o futebol brasileiro. Fez toda a sua carreira desportiva de elite no Santos, clube que o acolheu quando ainda era um miudo de bairro. Foi o primeiro a perceber o potencial mediático da liga americana e durante alguns anos actuou no New York Cosmos. Teve dezenas de jogos de despedidas e recebeu múltiplos galardões como o maior futebolista da história. No Brasil chamam-lhe Rei, para muitos é o Deus do Futebol. Titulos ou episódios, marcos históricos ou galardões. Tudo isso se torna redutor quando o tema em questão se chama Pelé.
Avaliar a marca na história de Pelé não se faz apenas pelos três Mundiais que conquistou. Ou pelas vitórias conseguidas pelo Santos no Brasil, América Latina e nas Taças Intercontinentais. A marca de um génio capaz de dominar o jogo do primeiro ao último segundo com a sua capacidade fisica (apesar da sua pequena estatura, 1m70) e garra. Falar de Pelé é falar de poesia, de drama, de tragédia ou épica. Dos dribles fantásticos capazes de eclipsar o próprio Garrincha, rei do regate. Dos seus saltos nas alturas, onde era capaz de ir buscar bolas impossíveis e torna-las em golo. Dos seus malabarismos diante dos guarda-redes. Ou do seu pontape, forte, seco, colocado, indefensável. Falar do futebol de Pelé é redutor porque Pelé é o próprio futebol. Aos 17 anos sagrou-se campeão do Mundo na Suécia, marcando dois golos na final numa equipa onde não estava previsto que fosse titular. E chorou. Como o menino que era. Doze anos depois era o homem na plenitude máxima das suas potencialidades que fez gato sapato de cada equipa que se passava diante do escrete canarinho. Do guardiã checo, impressionado pela ousadia de Pelé em rematar atrás da linha do meio campo. Do "portero" uruguaio que caiu no drible do melhor golo do mundo que não o foi. Ou da defesa italiana que ainda hoje tenta entender como foi possível ao craque brasileiro rasgar por completo uma equipa impenetrável. Falar de Pelé é falar do Santos e do melhor periodo do futebol do Brasil, da forma como esmagou o SL Benfica do amigo Eusébio. Ou o AC Milan de Rivera. Falar de Pelé é falar de magia em estado puro. É falar de futebol!
Pelé começou a jogar no Santos como falso ponta de lança. Explodiu aos 15 anos na equipa titular e com um golo. A primeira vitima de Pelé chamou-se Cubatao. A primeira de tantas outras (1283 golos oficiais em 1367 jogos disputados) que se habituaram a ter de conformar-se com cair de pé perante a armada santista do Rei. Aos 17 anos fez parte da equipa mágica do Brasil que conquistou o primeiro mundial, oito anos depois do "Maracanazo", apesar da polémica convocatória e da lesão que arrastou no inicio do torneio. Quatro anos depois já era o melhor jogador do mundo, liderando o Santos à conquista de multiplos campeonatos paulistas e torneios Rio-Sao Paulo, as grandes competições brasileiras da época.
As vitórias nas primeiras edições da Copa dos Libertadores levou o Santos a disputar a Taça Intercontinental onde derrotaria tanto o SL Benfica como o AC Milan, consagrando um homem que no entanto teve de sofrer na pele as lesões que quase o afastaram do Mundial de Chile 62 (só jogou os dois primeiros jogos) e que o destroçaram no Inglaterra 66 (com a implacável marcagem dos defesas bulgaros e portugueses a deixarem o craque k.o.) mas que mesmo assim não minimizaram a lenda. Apesar disso este foi o seu periodo aureo no Santos, onde militavam os melhores jogadores brasileiros da época. Uma equipa de sonho que explorou o melhor momento de forma de um Pelé cada vez mais decisivo e goleador.
Durante os anos 60 resistiu-se sempre saltar para a Europa, como tantos sul-americanos, e quando chegou o Mundial de 70, então com 29 anos, para muitos era uma estrela em queda livre. Surpreendendo mais de meio mundo, o homem que meses antes estava fora da selecção, liderou a melhor equipa que alguma vez pisou um relvado a conseguir o seu mais brilhante triunfo. No final, em ombros no Azteca, percebeu que tinha logrado a perfeição e farto de tantas digressões e provas secundárias onde alinhava para que o Santos cobrasse o cachet, começou a preparar a sua saída em alta. Primeiro deixou o escrete pela segunda vez (em 1966 tinha-se retirado e esteve três anos sem jogar pelo Brasil) e quatro anos depois o clube da sua vida. A imagem de Pelé aproveitou o filão televisivo, o potencial mercado norte-americano e o delirio que desatava no Brasil a sua presença. Ao contrário dos seus geniais colegas de equipa (Nilton Santos, Didi, Vavá, Zagallo, Garrinhca, Tostão, Gerson, Rivelino, Jairzinho), Pelé soube manter-se sempre na crista da onda e imortalizou a sua imagem mesmo diante daqueles que nunca o viram jogar de tal forma que até Romário disse um dia que o futebol devia levar o seu nome..
Tornou-se no primeiro icone futebolistico mundial. E mais do que Rei, tornou-se em Deus. Um Deus que antes foi um rapazinho de lágrimas nos olhos. O mesmo rapazinho de sotaque mineiro que, quando era pequeno e acompanhava o pai Dondinho aos treinos, ao chamar pelo guarda-redes da equipa e amigo do pai que se chamava Bilé pronunciava mal o nome e acabava por ditar a sentença que marcaria o futuro do jogo...Pelé.
O futebol sabe ser ingrato com os seus filhos mais pródigos. Hoje termina um capitulo fundamental, que marcará uma página da história do jogo. Mas parece ser apenas mais uma vírgula no meio de tanto histerismo por assuntos menores. Ronaldo Nazário, provavelmente o protótipo do avançado ideal, o mais completo jogador pós-maradoniano, disse basta. O Mundo já lhe virou as costas há demasiado tempo para se recordar da verdade e há muito que preferiu esquecer a lenda do único Aquiles que trocou a armadura por umas chuteiras e desafiou a ordem dos astros do universo futebol.
Para muitos amantes do futebol, o golo de Diego Armando Maradona à Inglaterra, no Mundial de 86, define uma época. Esses serão, provavelmente, os mesmos que se lembram bem daquela fria noite de Compostela quando um jovem brasileiro de 20 anos decidiu meter o mundo no bolso e dar um salto no tempo. Depois daquele momento histórico - que, matematicamente, serviu de pouco - passou a haver um antes e um depois de Ronaldo. O "Fenómeno" era, de facto, fenomenal. Hábil na gestão dos tempos, veloz como um felino, o seu instinto goleador enganava os analistas que se surpreendiam ao vê-lo começar as jogadas na linha de meio-campo. O seu poder de explosão e a facilidade de associação lembrava, e muito, o argentino caído em desgraça. No Mundial dos EUA, el Pibe despediu-se envergonhado. Sem jogar um minuto, Ronaldo esperava a sua hora. Já tinha sido o rei do Brasil, num ano memorável ao serviço do Cruzeiro. E já tinha confirmado, acima de tudo, a sua fácil adaptação ao futebol europeu. Com o PSV mediu-se ao melhor Ajax pós-Cruyff e, mesmo assim, pareceu inimitável. Mas também frágil e humano, dolorosamente humano.
Pelé sofreu lesões que o mantiveram em serviços minimos em dois Mundiais. A Maradona até uma perna lhe partiram e tanto Cruyff como Di Stefano, Platini, Messi ou Cristiano Ronaldo já sofreram agruras sérias provocadas pelos mais acérrimos rivais. Mas nenhum jogador de futebol foi tão vitima do seu próprio corpo como Ronaldo Luis Nazário de Lima. Um Deus de um jogo que o revelou como Mortal. A especulação faz parte da vida e hoje é legitimo pensar que, não fosse o seu corpo frágil, Ronaldo poderia ter sido mais do que o maior avançado dos últimos cinquenta anos. Poderia ter sido perfeitamente o maior jogador do Mundo.
Parou dois longos e deprimentos anos na sua estadia em Milão. As lesões contraídas ao serviço do neruazurri impediram-no de dar um salto qualitativo quando em melhor posição se encontrava para superar a barreira histórica deixadas por Pelé e Maradona. Depois do ano mágico ao serviço do Barça onde ganhou tudo menos a Liga (a desforra tardaria seis anos), o Inter era um profundo desafio. No primeiro ano esteve a um penalty do titulo, o mesmo que ficou por marcar naquela tarde seca contra a Juventus de Ancelotti. Depois veio o corpo e as dores de alma. As dores da nunca bem explicada desaparição no relvado do Saint-Dennis na final contra a França. Desse misterioso jogo pode-se retirar a essência fantasmagórica que acompanhava a carreira de um jogador completo a todos os niveis. O Mundial de França provou o que de melhor havia naquele Ronaldo. Quatro anos depois, o mesmo cenário exemplificou algo único: a transformação absoluta de um jogador de elite num outro jogador de elite, totalmente oposto.
As lesões destruiram o jovem explosivo e irreverente que tinha marcado um antes e um depois no futebol mundial e reinado, só, como único jogador global pós-Maradona. Em 2002 havia já Zidane, Figo, Beckham (todos futuros colegas naquele projecto megalómano de Florentino Perez). Mas nenhum como ele. Nenhum tão completo e com um espirito de sobrevivência tão agudo. Ronaldo reinventou-se, abdicou da velocidade em prole da colocação, aguçou os dentes frente à baliza contrária e assinou o Pentacampeonato brasileiro com o mesmo padrão de genialidade de Pelé. O titulo mundial, esse corolário, confirmou uma carreira sem igual que na Europa bebeu poucos titulos (como Maradona, nenhuma Champions League, por exemplo) mas que soube desfrutar plenamente da sua segunda etapa, agora de branco, com quilos a mais e vontade a menos. Em Madrid o segundo Ronaldo, esse sósia trabalhado do primeiro, foi assassino quando era necessário e displicente quando se pedia compromisso. Confirmou-se, se era preciso, como um jogador único, mas o mundo tinha perdido o interesse. Queria a novidade, a novidade dos Ronaldinhos, dos Messi, dos Cristianos e prodigios posteriores. O marketing funcionou contra ele depois de o ter ajudado a tornar-se num mito (os anuncios Nike com Ronaldo definiram, em boa parte, o fenómeno global do futebol na segunda metade dos anos 90 e o poder das marcas num jogo universal). O Brasil, com todo o seu atractivo, funcionou como um retiro progressivo de um atleta com muito futebol nos pés mas já sem forças para manter o nivel corporal. Ronaldo não podia aguentar com o ritmo europeu e mostrou manifestas dificuldades para encontrar a forma no mais pausado futebol sul-americano. O corpo, como disse, não aguentou. Tinha sofrido demais, talvez mais do que muitos desportistas de elite juntos. E o Mundo não percebeu que cada golo do brasileiro depois daquele calvário era, acima de tudo, um soco no destino. Um soco que van Basten, por exemplo, não soube dar. Um soco que só os maiores dos maiores (Pelé, Maradona) teriam sido capazes de desferir sem perder a pose.
Os ses e os senões comandam a vida e o destino. Ronaldo é, sem dúvida, o avançado mais completo da história do futebol se pensamos que Pelé e Maradona souberam sempre ser mais do que isso. E que Di Stefano e Cruyff eram, cada um ao seu estilo, jogadores totais. Mas quando se pensa nesse quinteto de maravilhas e se procura o ás que falta, que saltem os nomes de Zidane, Messi, Cristiano Ronaldo, Platini ou Beckenbauer soa um pouco a falso. Soa a esquecimento, propositado ou não, esquecimento daqueles arranques, esquecimento daqueles slaloms, esquecimento daqueles remates, esquecimento daqueles suspiros antes do golpe definitivo. Esquecimento de um rei que pareceu sempre ter de pedir a coroa emprestada e que mais do que um diamante forrado numa bola de couro, é uma gota de divinidade que mergulhou num corpo frágil, qual Aquiles, para mostrar ao mundo que os Deuses também são Mortais.
Muitos se perguntam como é que ainda é possível que uma liga onde habitam alguns dos mais talentosos futebolistas do Planeta continua a ser uma ilustre desconhecida. Uma liga pouco competitiva, incapaz de atrair os adeptos de além fronteiras. Parte da razão está em decisões como o despedimento de Dorival Júnior. O Santos espelha bem o Brasil de hoje, o Brasil de sempre. Um país com muito futebol nos pés e pouco na cabeça.
No último ano tornou-se moda seguir o renascido Santos. A equipa do Peixe foi rebaptizada graças ao talento emergente de vários jogadores da sua formação. Entre eles o trio a seguir, Neymar, Paulo Henriques e André.
A fama da equipa, reforçada momentaneamente com o empréstimo de Robinho, tornou-se num chamariz ideal para o Brasileirão. A equipa santista, um dos históricos do futebol canarinho, voltou a vencer. Voltou aos titulos. Algo que não se via desde os dias de Diego, Robinho e Elano. Muito tempo. Dorival Júnior foi o arquitecto da mudança. O técnico, um dos mais respeitados no grémio, organizou um onze atractivo e ofensivo e com as jovens estrelas como porta-estandarte, mudou o rosto do apagado clube da cidade portuária de São Paulo. Num ano venceu o Campeonato Paulista e a Copa do Brasil, dois titulos que a equipa há muito que não tocava. Naturalmente os santistas partiam na linha da frente para atacar o Brasileirão, já rodeados pela polémica da não-convocatória dos "meninos da Vila" para o Mundial (algo que o Brasil nunca perdoou ao sempre contestado Dunga) e pelo assédio constante dos grandes da Europa. Um assédio com resposta negativa. Sempre.
E quando tudo parecia que ia de vento em popa, Dorival Junior é despedido.
Sem dó, nem piedade. À brasileira. Por fazer o seu trabalho bem. Por preferir o colectivo ao individualismo que continua a ser o trademark por excelência de um futebol habituado, cada vez mais, à exportação de talentos. O técnico santista, obreiro do santo e senha que pauta o jogo dos brancos, foi despedido por um motivo: Neymar.
A jovem vedeta tem acumulado polémica atrás de polémica. Primeiros foram os penaltys de paradinha que obrigaram a FIFA a rever a lei que permite esse jogo sujo com o guarda-redes. Depois foram as celebrações que revoltaram as equipas contrárias. O lado safado de Neymar ganhou ainda mais força nas passadas semanas. Já sem o seu parceiro de ataque, o lesionado Paulo Henriques, o médio criativo chamou a si todo o protagonismo da equipa. Recusou-se a passar a bola as colegas, recusou-se a jogar em grupo. Procurou, como sempre, resolver tudo sozinho. Falhou. E o Santos perdeu. E viu a diferença para com o lider da prova, o Corinthians dos veteranissímos Ronaldo e Roberto Carlos, ampliada para seis pontos. Os insultos do médio ao técnico, à frente de toda a equipa, foram a gota que colmou o vazo. Em véspera de derby paulista. Dorival Júnior ficou farto da atitude do jogador e multou-o por indisciplina. Mas não foi suficiente, Neymar reeincidiu. Revoltou-se contra colegas e técnico em pleno treino. Em pleno jogo. E aí entram as diferenças entre o Velho e o Novo Continente, entre a desorganização brasileira e a disciplina europeia. Num gesto tão habitual na "Velha" Europa mas criminal no Brasil, o treinador informou a direcção que não iria convocar o atleta para o jogo contra o Corinthians. E talvez para os seguintes, se a situação se mantivesse. Foi suficiente. Poucas horas depois era fulminado. Despedido. Humilhado.
Sem Dorival Júnior o Santos enfrenta um rival temível desarmado. Neymar ganhou a batalha, o controlo definitivo da equipa. Tal como um novo Romário, Edmundo e afins, demonstrou que, como sempre, no Brasil o safado do relvado vale sempre mais que o génio do banco. Um espelho digno e fiel da estagnação táctica e competitiva do futebol brasileiro actual. Os grandes da Europa tomaram nota e pensarão duas vezes antes de arriscar os seus milhões num "menino" que acha que é dono da "vila". Mas que dificilmente conquistará o mundo.