Toca-a outra vez. Quando ninguém dava por eles, quando ninguém acreditava. Toca-a outra vez. Quando os bajitos estavam na lista de transferíveis e os "todocampistas" enchiam as capas de revistas. Toca-a outra vez. Com a moral pelo chão, com as angústias do passado ao virar da esquina. Toca-a outra vez viejo! Luis Aragonés reinventou o futebol espanhol misturando a sua herança histórica, que sacou das entranhas de um país farto de desilusões, com as melhores inovações tácticas da escola centro-europeia que aterraram no país. O elo perdido numa história de desencontros que se fez magia, uma noite em Viena.
Luis nunca esqueceu o tiro que Sepp não soube parar. O tiro perfeito. O livre indefensável que ia acabar com a hegemonia espanhola do Real Madrid na competição que os merengues diziam ser sua por direito divino. A bola entrou, os colchoneros celebraram. O título parecia seu. Cedo demais. Reina, mais entretido em fazer-se fotos do que em estar atento aos últimos lances do encontro, não soube parar o remate desesperado de Schwarzenbeck. Uma bola que nunca devia ter entrado. Mas que custou a Aragonés o título que lhe faltava no dia do seu adeus.
Esse foi o momento que talvez passou pela cabeça do Sabio de Hortaleza quando Torres e Lahm correram a disputar o mesmo esférico. Ao seu lado, no banco, o filho do seu velho amigo Reina susteve a respiração. El Niño foi mais rápido, mais ágil e mais eficaz. Desta vez os alemães teriam de ver como Aragonés, sobre todos os outros, levantava o troféu. Outra taça, certo, mas o seu ajuste de contas pessoal. Despedido antes da competição ter sequer arrancado, sabia que era outra forma de dizer adeus. Em Viena ninguém lhe estragaria a festa. A sua obra estava completa, a trajectória como jogador reivindicada como técnico. A história teria de memorizar o seu nome, quer quisesse quer não. Podia ir em paz.
Luis Aragonés foi o homem que redefiniu o Atlético de Madrid da era de Vicente Calderón. Como jogador e como treinador permitiu ao clube manter uma identidade emocional própria numa época em que o seu rival a norte de Madrid parecia invencível. Com as suas declarações polémicas, carácter indomável e espírito guerreiro, Luis uniu a paróquia à volta de uma ideia comum. A fortuna nunca lhe acompanhou como merecia nas suas sucessivas etapas no banco do Manzanares. Mas ninguém naquelas bancadas se esqueceu do seu contributo. A história do futebol, essa, lembrar-se-ia dele por uma invenção inesperada que roubou o coração do Mundo. Pela sua simplicidade, romantismo e honestidade. Um comentador desportivo chamou-lhe tiki-taka. Para Luis era apenas o velho espírito espanhol aliado com o que melhor holandeses e jugoslavos tinham trazido para o país através de treinadores como Michels, Cruyff, van Gaal, Boskov ou Miljanic. Um estilo de jogo que não abdicava dos princípios emocionais da "Fúria" mas que lhe dava critério, pausa e sabedoria. Um modelo que fazia da bola e não dos ídolos das bancadas, o protagonista principal. Aragonés podia suspeitar mas não saber que a sua invenção dominaria o mundo do futebol com uma frieza germânica. Tudo começou na sua cabeça.
A vida de Luis foi marcada por episódios conflitivos.
As declarações racistas sobre Henry como forma de motivar a Reyes. A exclusão dos pesos-pesados da era Clemente e Camacho da selecção, a começar pelo "intocável" Raúl Gonzalez. A sua crença absoluta nos "bajitos", jogadores que então eram desprezados pelos seus próprios adeptos. Enquanto o Camp Nou assobiava a Xavi Hernandez e a direcção pensava em vendê-lo ao AC Milan, o técnico fez dele a sua bússola. O pequeno Iniesta, que alguns pensavam que não tinha lugar no meio-campo catalão, foi o seu joker. Com eles chegaram também os Silva, os Cazorla, os Alonso e os Fabregas à selecção que ele insistiu de chamar de Roja. A sua senha de identidade, da mesma forma, dizia, que os brasileiros eram a canarinha e os argentinos a albiceleste. Sem conotações políticas. Aragonés tinha vivido a Transição e sabia que no seu tempo essa expressão estaria condenada. Com ele, e a sua teimosia, o país aprendeu a aceitar a palavra que definia o seu combinado nacional. O que não tinha medo de confiar o meio-campo a um brasileiro reconvertido. O que permitia a Sérgio Ramos as suas loucuras. O que decidiu ignorar as velhas guerras Madrid-Barça para forjar um selo de união que ainda hoje perdura, para lá de todas as tentativas da imprensa e de treinadores de quebrar o elo. Sobretudo, uma selecção que aprendeu a tocar a bola como nenhuma outra. Onde se jogava por valor e não por estatuto. Um esquema que começou a desenhar-se no Alemanha 2006 e que foi traído pelo último sopro de vida de Zidane. E que se fez mito nos campos austríacos que testemunharam como o futebol se decidia finalmente a ajustar contas com Espanha. Na meia-final, talvez o melhor jogo de toda a geração do tiki-taka, os ambiciosos e refrescantes russos foram atropelados por um vendaval de futebol de ataque. Organizado, coordenado, pensado. Mas ambicioso, vertical e letal. O fantasma dos quartos tinha ficado para trás e com ele todos os complexos. Em Viena, dias depois, os alemães não assustaram como antes provavelmente teriam feito. Espanha para conquistar a Europa aprendeu a conquistar-se a si mesma. Aprendeu com ele, o homem que não tinha nada a ganhar e nada a perder.
Depois da selecção veio a polémica. Alguma imprensa tentou ajustar contas com anos e anos de palavras secas, frases polémicas e decisões contestadas. O novo staff dirigente da selecção, capitaneado por Del Bosque, manteve-se respeitoso com o passado mas foi a pouco e pouco alterando o ADN impresso por Luis e Espanha tornou-se mais eficaz mas menos espectacular. Com esta nova abordagem veio o Mundial nunca ganho e o terceiro Europeu da história. Mas também uma certa aura de desencanto sentida pelos próprios espanhóis que tinham aquele Junho austríaco na memória. Aragonés, sempre polémico, preferiu o silêncio. Tinha conseguido o mais difícil em campo e não estava disposto a voltar a ser protagonista por algo que não fosse Viena e os seus "Bajitos". Silenciosamente aceitou ser o Quixote da saga nos seus campos manchegos de moinhos de vento endemoniados. Um Quixote que ensinou um país a gostar de si mesmo com a sua franqueza e que demonstrou que o futebol se podia jogar de mil e uma formas, sem dogmas. Depois veio Guardiola, o anti-guardiolismo, a frieza italiana de Del Bosque, o mourinhismo e tudo serviu para atacar a sua herança. Mas quem viveu na pele a euforia de celebrar a sua Espanha em 2008 sabe que hoje partiu um dos homens mais importantes da história do futebol europeu. Só por isso vale a pena dizer uma vez mais, "Gracias, viejo".