Em 1976 o Real Madrid foi campeão de Liga perdendo os dois jogos com o Barcelona. A equipa blaugrana, alimentada por um inconstante Cruyff, foi demasiado irregular para capitalizar a sua superioridade em campo. Quase quarenta anos depois a situação pode repetir-se. O Barcelona foi superior ao rival histórico, operando uma das mais memoráveis reviravoltas da história dos Clássicos. A incapacidade preocupante do Real Madrid de Ancelotti em ganhar a rivais directos deixa de ser um problema com um calendário mais acessível que os rivais. Ironias do destino.
Desaparecido à um bom punhado de Clássicos, Lionel Messi montou o seu show pessoal num dos estádios onde é habitual ser mais eficaz.
A exibição galáctica do argentino é uma grande noticia. O "Diez" do Barcelona parece recuperado dos problemas físicos que o mantiveram fora dos relvados nos últimos meses. Sem estar ao seu melhor, Leo foi decisivo. Não tanto pelos golos - dois deles em grandes penalidades marcadas de forma perfeita - mas pelo dinamismo que deu ao ataque blaugrana. Uma brilhante assistência para o golo inaugural. A troca de bola dentro da área com Neymar que permitiu o empate. O passe espantoso para o brasileiro, segundos antes deste chocar contra um Sérgio Ramos anedótico. Tudo isso ajuda a entender bem a sua importância no modelo de jogo do gigante catalão. Sem Messi durante várias semanas, a equipa de Martino ainda assim consegue estar a um ponto do topo da tabela classificativa. Um exercício de colectivismo mais do que interessante. Mais do que esquecido. Messi foi o rei e senhor do Bernabeu com um jogo autoritário e incisivo. Mas salvo Neymar - a anos-luz do seu melhor e titular, no lugar de Pedro, provavelmente mais por questões politicas que desportivas - a exibição colectiva do sector medular e de ataque dos blaugrana foi exemplar. Sobretudo a de Andrés Iniesta.
O manchego foi fundamental na forma como o jogo do Barcelona rompeu as linhas montadas por Ancelloti. Engoliu literalmente o "verde" Carvajal uma e outra vez. Apontou um primeiro golo tremendo e sacou do nada um penalty perfeitamente evitável, especialmente para alguém tão habituado a mil batalhas como Alonso. Durante os restantes minutos o homem que deu aos espanhóis a alegria das suas vidas venceu o seu duelo particular com o jogador mais em forma dos merengues em 2014, o croata Modric. Foi uma luta de titãs. Mais do que um duelo Messi-Ronaldo (desta vez, não chegou a haver realmente duelo) o jogo decidiu-se com a superior influência de Iniesta. O modelo de jogador guardiolano a manter de pé as variantes de Martino e o génio individual de Messi.
O Real Madrid conseguiu algo espantoso. Por duas vezes deu a volta a um marcador adverso. E conseguiu perder o jogo.
O que no reinado de Mourinho era impensável, com Ancelotti torna-se habitual. O italiano não ganha ao Barcelona há dez anos. Esta época perdeu ou empatou todos os jogos importantes da liga. Duas derrotas com os catalães, uma derrota e um empate com o vizinho do Manzanares e um empate em San Mamés. Zero vitórias no top four é algo verdadeiramente preocupante. E, ainda assim, os madrilenos dependem de si para ser campeões. A regularidade nos restantes duelos tem servido para a equipa da capital tapar as suas deficiências nos jogos a sério. Ronaldo, depois do mais do que merecido Ballon D´Or (se colocamos a Ribery fora de equação), baixou o seu nível de participação colectiva. Continua a marcar porque não sabe fazer outra coisa. Mas o seu jogo associativo tem decrescido e a equipa ressente-se. Bale, autor de algumas excelentes exibições, foi uma nulidade e notou-se a falta de Jesé, um jogador que podia ter sido fundamental para aproveitar as eternas deficiências defensivas dos blaugrana. Que o Real tenha marcado três golos (podiam ter sido mais) só é possível porque o Barcelona continua a ser uma equipa incapaz de solucionar os seus problemas defensivos. É a grande interrogação para os grandes duelos europeus que se avizinham contra equipas mais organizadas que o Real Madrid.
A péssima exibição de Carvajal (responsável por dois golos) e Marcelo foi coroada com a enésima infantilidade de Sérgio Ramos, que não só cometeu penalty sobre Neymar - independentemente da intensidade do toque e do teatro inevitável do brasileiro - como fê-lo sabendo que a expulsão era a única opção. No final o central (e Ronaldo) queixaram-se amargamente da arbitragem. Não tiveram razão. Se houve algum penalty mal assinalado esse foi o de Ronaldo, uma falta claramente fora da área (isso sim, a Alves faltou o cartão) e que permitiu ao Real colocar-se de novo em vantagem. Undiano Mallenco, errou em várias faltas e na distribuição dos cartões mas nos momentos decisivos não mexeu no resultado. Pelo menos não como Ramos, e o seu erro, e Benzema, a grande sensação da noite.
Se Messi decidiu o jogo, Iniesta pautou o ritmo do encontro, a Benzema ficou o papel de dar emoção à contenda. Apontou dois golos - o segundo a lembrar os dias de glória de Ronaldo Nazário - e foi o dínamo ofensivo mais eficaz do Real Madrid. Quando o retirou, Ancelotti perdeu o jogo. Era questão de minutos. Com Di Maria - o MVP da primeira parte - tinha sido o melhor blanco em campo. Sem ele e com Ronaldo perdido no meio do ataque como falso nove, a equipa perdeu o rumo. O italiano continua a demonstrar lacunas que marcaram toda a sua carreira nos grandes jogos. É um treinador que ganha, começando pelo inevitável caso de orientar equipas que têm essa obrigação. Mas a quantidade de jogos a seu favor que acabaram perdidos dava para escrever um livro. A do passado domingo é apenas mais uma para a lista onde estão o Juventus vs Manchester United de 1999, o Deportivo vs AC Milan de 2004 ou a final de Istambul do ano seguinte.
O Barcelona, numa versão mais pragmática da temporada passada, deu um golpe de autoridade em casa do rival. Colocou-se a um ponto da liderança mas tem pela frente um calendário complicado que inclui um duelo na última ronda com o actual e inesperado líder, o Atletico de Madrid. Será uma reedição dos duelos dos quartos-de-final da Champions League. As duas equipas já se cruzaram três vezes este ano. Nenhuma venceu. Do outro lado da trincheira o Real Madrid assistirá a esse leque de confrontos confiando-se de que a sua maior eficácia com as equipas a quem quintuplica em orçamento seja suficiente para vencer um campeonato que podia ter no bolso mas que não soube ganhar. Ainda.