Era inevitável. A caverna mediática portuguesa, apostada em viver longe das realidades que fazem Portugal um país mais pequeno ainda do que é, aproveitou a ressaca da humilhação histórica aplicada à selecção de Espanha para crucificar o cadáver já podre de Carlos Queiroz. Sem tocar nos méritos inequivocos da nova equipa técnica, utilizar um feito histórico para esmagar um seleccionador que continua a despertar sentimentos contraditórios é o perfeito exemplo do ajuste de contas à portuguesa.
A sensação que a exibição portuguesa deixou contra a Espanha deixou na boca (e mente) de todos os adeptos lusos foi apenas uma: porque não jogaram assim no Mundial?
A imagem da derrota com a equipa que viria a sagrar-se campeã do Mundo deixou imagens para a história do futebol luso. O discurso enrabietado de Cristiano Ronaldo, o olhar de desalento de Queiroz, as criticas à posteriori pouco oportunas de Deco e as lágrimas de Eduardo. Quatro estados de alma distintos que espelhavam bem o que era Portugal então. Tudo, menos uma equipa. Esse foi talvez a grande diferença entre aquela noite na Cidade do Cabo e a exibição de gala do estádio da Luz. Mais do que mudanças tácticas (houve poucas) e de rostos, a mudança esteve na atitude, talvez o grande problema na gestão de Queiroz. Mas, como sempre, na hora da critica em Portugal há quem tenha sempre pouco descernimento antes de disparar. A situação recebida por Paulo Bento é diametralmente oposta à que viveu Queiroz. O ex-seleccionador podia ter sido despedido no final do Mundial, como sucedeu a tantos outros que falharam os seus objectivos (quais eram, nunca o saberemos). Mas já a sua recepção despertou toda a podridão que sacude o futebol nacional. Com palavras azedas de dirigentes, com artigos feitos à medida na imprensa especializada e com o nariz torcido de todos aqueles que tinham saído beneficiados da politica praticada pelo clã Scolari, chegou Queiroz. Trazia um projecto, que logo se revelou impractivável a médio prazo e nada compaginável com os resultados imediatos que uma selecção que tinha passado a década a viver de altos voos exigia. Queiroz sabia de todos os problemas estruturais do futebol luso. Os mesmos que padecerá Paulo Bento quando a situação assim o justifique. Se o actual seleccionador tem todo o mérito em dar um novo ar à equipa das Quinas, o seu curto mandato de três jogos apanhou Portugal numa situação de pior impossível. E a partir de baixo é sempre mais fácil construir.
Olhando para os dois Portugal-Espanha, com quase meio ano de diferença, percebe-se que há abordagens bem distintas.
Aí Paulo Bento leva a palma. Estudou suficientemente a selecção espanhol (particularmente nos jogos com Holanda e Argentina) para perceber como se neutraliza a campeã do Mundo menos goleadora da história. Numa equipa onde a posse de bola é o credo fundamental o fundamental é recuperá-la. Queiroz não pensou assim. Deixou a Espanha jogar, trocar e brincar como tanto gosta, no miolo luso. Naquela noite Xavi estava tranquilo, Xabi Alonso e Busquets não tinham trabalho e Iniesta e Pedro deambulavam livres. Cinco meses depois nenhum deles conseguiu respirar. A cada bola recebida em área de choque surgia imediatamente um jogador luso na pressão alta para a recuperação e consequente transição ofensiva. Portugal deixou a politica de passe curto e inconsequente (que marcou a supremacia em posse de bola dos espanhóis, sempre bem longe da área) e apostou num jogo de três toques (recuperação, desmarcação, passe).
Se Cristiano Ronaldo e Hugo Almeida foram deixados aos abutres na Cidade do Cabo, na Luz Postiga, Nani e Ronaldo fizeram parte do acordeão que se estendia e esticava conforme a posição da bola. Um jogo vertical, veloz e determinado. Tacticamente o posicionamento no terreno era similar, mas a função do 6 (com Raul Meireles no lugar de um retraído e lesionado Pepe) fez a diferença ao anular o jogo do genial Xavi Hernandez. Foram esses os elementos tácticos que fizeram a diferença e explicam a goleada. Mas que não justificam, de por si, a comparação.
À parte do lógico e importante argumento que é a concentração e ambição espanhola, bem diferente naquela noite do que na Luz, há quem aponte o dedo a Queiroz na eleição dos mundialistas. O ex-técnico realmente cometeu erros de casting. Ricardo Costa, o mais grave, mas também um Deco inexistente futebolisticamente e um Liedson, cujo o processo de naturalização resultou mais da pressão mediática da imprensa lisboeta do que propriamente do talento do dianteiro leonino. Sem Bosingwa e Nani, lesionados, Portugal nunca podia ter aplicado a dose de velocidade do jogo de Quarta-Feira. Danny esteve presente na excelente segunda parte mas na África do Sul o próprio confessou o seu péssimo estado de forma. Ronaldo, nervoso com a pressão de ser o melhor, nunca existiu no Mundial. Agora, com Mourinho a dar-lhe confiança, é de novo um jogador de elite. E que dizer de Moutinho e Postiga, jogadores ostracizados em Alvalade e que agora recuperaram a confiança e a sua melhor forma. Em Junho seriam mais dois, agora fazem a diferença.
Talvez o pecado tenha estado em Carlos Martins, na forma de pensar o jogo. Mas o médio encarnado é tão inconstante como o medo e a sua visão vertical funciona como o lusco-fusco. Exceptuando estes nomes, os mundialistas estavam presentes em corpo e mente na Luz. Talvez no Mundial a mente tivesse ficado noutro sitio.
O fundamental para Portugal é agora continuar o trabalho de recuperação moral e psicológica que Paulo Bento tão bem iniciou. Um conjunto unido, tacticamente bem trabalhado e com um espirito colectivo é o primeiro passo para o sucesso. Os problemas de egos e a falta de algumas opções fundamentais dificultou sempre o trabalho do maldito Queiroz. O seleccionador não passou com glória pelo cargo e a sua saída em nada teve a ver com a sua prestação desportiva e sim com um velho ajuste de contas interno. Mas Paulo Bento, que andou por dentro e tanto criticou o futebol português, sabe que continua sem ter opções (citar Saleiro, Orlando Sá e Nelson Oliveira para o ataque é quase uma anedocta a estas alturas) e que basta uma derrota para a caverna portuguesa soltar os habituais sinais de alarme. Em Portugal nunca há tempo para nada e isso é um dos grandes males da nossa sociedade e do nosso futebol. Paulo Machado, Manuel Fernandes e Rui Patricio saem agora como opções de Bento quando já eram nomes selecionáveis por Queiroz. Limpar o passado não é a melhor forma de preparar o futuro. Mas certamente é a maneira mais certeira de vender jornais. Para alimentar a caverna.
No futebol conta o talento, a intensidade, a disciplina e a dedicação. Mas, acima de tudo, a atitude. Portugal é um país de 8 e 80´s, de depressões incuráveis e de euforias sem controlo. Está no ADN luso. Frente aos melhores do Mundo Portugal foi muito melhor. Em talento, intensidade, disciplina, dedicação. Mas, sobretudo, em atitude. A mesma que falhou na depressão da África do Sul, a mesma que pinta a euforia do dia depois. Uma goleada para a memória. Futura.
Errar é humano, rectificar é de sábios. E Paulo Bento merece, hoje, uma rectificação.
Portugal humilhou a selecção espanhola, a meritória campeã do Mundo (afinal ganha sempre quem merece), graças a uma das melhores exibições da década. E tudo fruto de uma clara mudança de atitude do onze luso que não estava para homenagens, cerimónias e parcimónias. Fez o favor à La Roja de estrear o seu novo equipamento com estrelinha incluida apenas para dar-se o gosto de provocar a segunda derrota humilhante em coisa de dois meses para os espanhóis. Depois do 4-1 em Buenos Aires (onde a Espanha foi mais Espanha), nova goleada em Lisboa. Sem espinhas, como a giria popular bem aponta. E num jogo praticamente sem defeitos por parte do onze luso.
O talento e disciplina táctica que havia foi finalmente acompanhado por um jogo de intensidade e dedicação. O ferido onze luso engoliu a equipa espanhola desde o primeiro instante e passou os 90 minutos a digeri-lo com o prazer obrigatório para uma boa mesa. E a culpa não pode ser atribuida aos vizinhos. Vieram com o onze de gala, o mesmo que subiu ao relvado do Soccer City (com Silva no lugar do lesionado Pedro) e manteve a mesma estrutura e filosofia, a que fizeram da equipa espanhola a mais admirada do Mundo nos últimos dois anos. Inesqueciveis para o futebol do país vizinho. Mas o que Portugal fez foi o que nenhuma equipa ainda tinha conseguido. Com autoridade, pressão asfixiante e velocidade na transição ofensiva. A equipa das Quinas fez tudo aquilo que nunca foi feito na África do Sul (e na Áustria/Suiça também). Não empastelou o jogo no miolo, não recuou demasiado e não abdicou de ganhar. Todo o contrário. A mesma táctica, sensivelmente os mesmos interpretes, uma atitude diferente. Foi o que bastou para destroçar os melhores.
O trabalho de Paulo Bento começa também a dar nas vistas pela capacidade de recuperar jogadores dados como perdidos para a equipa das Quinas.
A maça podre de Alvalade, João Moutinho, é talvez hoje o jogador luso mais em forma (exceptuando o caso excepcional de um renascido Cristiano Ronaldo, e em muito aqui a labor é de Mourinho) e mais determinante no onze nacional. O pequeno hobbit que tem pautado o excelente jogo do Futebol Clube do Porto não deixou Xavi, ainda o melhor do Mundo apesar do jogo mais do que cinzento de ontem, pensar. Existir. Reagir. Sufocou o médio catalão e emperrou a máquina espanhola. Carlos Martins, outro recuperado, trouxe a garra que lhe é reconhecida para ajudar a destruir e começar o processo de construção que culminou no seu excelente primeiro golo. No sector mais recuado, Raul Meireles, no lugar onde Pepe nunca fez muito sentido, capaz de patrulhar as movimentações de Iniesta e Silva primeiro, e de Cesc e Cazorla depois. Nesse trio Portugal começou a ganhar o jogo. Anulou a máquina espanhola e deu asas ao jogo rápido e concreto dos lusos. O apoio de João Pereira (outro ressuscitado) e Bosingwa foi determinante para a supremacia no miolo, com Ricardo Carvalho (e depois Pepe) e Bruno Alves muito seguros, concedendo pouco espaço de manobra às movimentações do trio mais avançado dos espanhóis. A boa labor no miolo permitiu o uso da velocidade de um Nani em estado de grçaa e de um Cristiano Ronaldo hiper-motivado. O jogador do Man Utd deu o primeiro aviso antes do recital CR7. Primeiro apontou um dos golos do ano, mal anulado por um fora-de-jogo que existiria se a bola não tivesse já entrada, o que não foi o caso. Ronaldo destroçou Pique e Busquets antes de bater Casillas. Mal o árbitro, aí e sempre, claramente preocupado em evitar uma goleada que mancharia a noite onde se comemorava a boa nota da candidatura Ibérica e a glória dos campeões do Mundo.
Depois, nova maldade imensa ao médio centro do Barcelona, que tentou de tudo para lesionar o português com vista ao derby do próximo dia 29, o jogador do Real Madrid aplicou um remate indefensável que Casillas não podia agarrar e que Martins terminou com mais alma do que outra coisa. Portugal há muito que merecia estar a vencer (Pique tinha tirado já um golo feito na linha de golo) e os espanhóis, em clara inferioridade técnica, acusaram o golpe. Na segunda parte seriam presa fácil para o jogo de transições rápidas instaurado por Bento. Danny (no lugar de Ronaldo), Nani e Moutinho, imenso como sempre, pautaram a goleada. O último dos renascidos, Hélder Postiga, apontou os dois golos seguintes (o primeiro depois de um gesto técnico primoroso) e Hugo Almeida fechou a conta já aos 90, para desespero dos espanhóis que pensavam vir a uma festa de confraternização e que acabaram por sofrer a goleada das suas vidas. Nunca Portugal tinha ganho por tantas a Espanha. Nunca a Espanha tinha sido tão boa selecção. O que faz com que a selecção portuguesa seja, realmente, o quê?
Mais do que humilhar os campeões do Mundo (que começam a sentir o peso da responsabilidade nos ombros), o que ficou foi uma excelente imagem do conjunto luso que destoa dos jogos a sério que têm sido um verdadeiro problema nos últimos cinco anos. Portugal jogou com a atitude e eficácia de uma equipa campeã. Num jogo a feijões. O trabalho de Paulo Bento começa a dar frutos. O lote de selecionáveis tem-se alargado (apesar de continuar a haver algum défice de correcção urgente), as rotinas tácticas estão assimiladas e os problemas de egos parecem ter-se resolvido por magia. O fundamental é transportar essa atitude aos jogos com equipas sem o prestigio da Espanha. Jogos esses que são os que dão apuramentos e finais. Jogos que podem ser ganhos com a espectacularidade da noite passada, mas que têm de ser enfrentados com a mesma atitude e eficácia. Assim se moldam grandes equipas. A de ontem de Portugal foi uma das melhores da última década. Afinal, a esperança é mesmo a última a morrer.
A euforia programada começa a ganhar forma. Duas vitórias obrigatórias e sem glamour transformam-se em êxitos épicos, dignos de coroação à altura. O Portugal de Paulo Bento mudou muito pouco (ou quase nada) o Portugal de Carlos Queiroz. Mas os resultados e, acima de tudo, a pressão mediática, contribuem para uma lavagem de imagem. Num país onde continuam a existir sempre dois pesos e duas medidas, Portugal continua a sua caminhada, com mais sombras do que luzes, rumo a uma prova onde a sua presença é, ou devia ser, inevitável.
Dois triunfos por 3-1 com duas exibições bem diferentes, nunca a passar da mediania, são suficientes. O país já tem o seu salvador da pátria. Todos podem dormir descansados, sem motivos para preocupações. Exageradamente, como tudo neste país, multiplicam-se as declarações de personalidades que secundam a nomeação de Paulo Bento e elogiam a sua gestão nestes dois primeiros jogos quando o próprio e os seus jogadores admitiram que o seleccionador pouco teve a ver com os dois triunfos frente aos rivais nórdicos. Como seria de esperar, com quinze dias de cargo, Paulo Bento tem tanto a ver com as vitórias lusas como Queiroz teve com as derrotas nos jogos em que a equipa foi orientada por Agostinho Oliveira. O ex-seleccionador pagou do seu bolso a sua viagem à Noruega e foi proibido pela própria FPF de comunicar-se com o banco. A mesma FPF que deveria estar interessada, acima das quezilias pessoas, no sucesso da equipa das Quinas e que agora está à morte com o novo técnico. De tal forma que Gilberto Madaíl está pondera recandidatar-se a um cargo que, há um mês atrás, com o espectro da eliminação bem presente, fez questão de anunciar que não lhe interessava. Dois pesos, duas medidas sem dúvida.
Portugal jogou contra a Dinamarca e contra a Islândia com diferenças minimas com base à equipa orientada por Agostinho Oliveira.
João Pereira rendeu Miguel e Silvio, as duas opções nos primeiros jogos, e fez duas exibições sem encher o olho, não comprometendo mas também não entusiasmando. Um posto que deverá pertencer a Bosingwa, quando recuperado, e que foi uma peça nuclear (pela sua ausência) durante todo o 2010, Mundial incluido. Pepe recuou para central e mostrou-se uns furos acima do que Ricardo Carvalho, desastroso nos dois encontros. Como Eduardo, a anos-luz da imagem que deixou no Mundial. No meio-campo surgiu João Moutinho, peça nuclear no FC Porto de Villas-Boas e com uma forma fisica e mental que não tinha em Junho passado. Carlos Martins completou o triângulo com Raul Meireles numa escolha feita para ganhar a galeria. O médio do Benfica é, à largos anos, um jogador sem estatuto de selecção. Suplente habitual no clube encarnado, ganhou protagonismo com os problemas fisicos de Aimar e pelo simples facto de ser dos poucos atletas portugueses do campeão nacional. Paulo Bento, o homem que o dispensou no Sporting por entender (e bem) que Carlos Martins rende menos do que deve, quis mostrar que é o seleccionador de todos. Entregou o posto a um jogador transparente que durante 180 minutos foi um holograma. Nada de novo portanto. Foi em Nani e Cristiano Ronaldo que se viram as principais diferenças com respeito aos dois primeiros jogos. Se Hugo Almeida continua a ser a prova viva de que Portugal e o golo é um casamento conflictivo, os dois extremos exibiram-se uns furos bem acima do habitual. Nani matou o jogo com a Dinamarca. Ronaldo ajudou a resolver o duelo na Islândia. Determinantes como se lhes pede sempre. E que só agora, finalmente, cumprem. Em dois jogos cuja a vitória era, independentemente do seleccionador, o objectivo minimo. E que, mesmo assim, foram conseguidas depois de muito sofrimento. No Dragão foi preciso dois erros infantis da defesa dinamarquesa (que até foi a pior equipa europeia do último Mundial, para quem se esqueceu já). Na Islândia, uma selecção que alinhou sem seis titulares que foram ajudar os sub-21 a estrearem-se no Europeu da categoria, sofreu-se e muito. Depois do golo e da pressão dos nórdicos, acabou por ser Raul Meireles a disparar contra a crise, tal como na Bósnia há um ano atrás. Quem ainda se lembra? Bolas que entram e bolas que saem, no fim está aí a diferença. A qualidade de jogo continua a ser a mesma, demasiado mediocre para uma selecção de alto nível.
No entanto a fálacia está aí e quem quer agarra-a como pode. Queiroz perdeu, logo não serve (mesmo tendo estado afastado dos dois polémicos jogos inaugurais pela própria FPF). Bento ganhou, logicamente é o maior. Mesmo que jogue igual, conte exactamente com os mesmos jogadores e continue a deixar em evidência os problemas estruturais da selecção. Os dois anos de vacas magras do mandato de Queiroz saldaram-se com um Mundial em que Portugal foi nono e uma série de ameaças à estrutura dirigente do futebol português que despoletaram a execução sem piedade do técnico. Neste conto da carochinha, enterrado pela imprensa e pelos opinion-makers, Queiroz será sempre o lobo mau do futebol luso, odiado por dirigentes, jogadores, jornalistas, bloggers e adeptos. Paulo Bento é o novo caçador, o homem que "empolga a nação" a altos voos com jogos mediocres e vitórias sofriveis e de serviços minimos. Portugal continua igual, a precisar de vencer todos os jogos. Continua sem criativo, sem ponta-de-lança e com muitas dúvidas lá atrás. Os mesmos problemas, os mesmos resultados, dois técnicos diferentes. Dois pesos, duas medidas. Até Junho tudo seguirá igual. São assim os contos infantis por cá...
"Já sou seleccionador!". Uma frase dita, talvez, com o seu quê de incredulidade. Compreensível. Imaginar Paulo Bento como novo seleccionador nacional é um sério exercício à compreensão da estrutura débil que sustenta o periclitante futebol português.
Consumado o golpe de estado, a rei morto, rei posto. Paulo Bento assinou, cobrará bem menos, terá menos responsabilidades e chega quando mais ninguém queria. Melhor inicio, impossível. Certamente.
O antigo internacional regressa à selecção portuguesa, depois de ter saído deixando uma fraca figura na mitica meia-final do Euro 2000 onde acabou por entrar no lote de suspensos pela UEFA (junto com Nuno Gomes e Abel Xavier). Representante menor da "Geração de Ouro", como jogador foi um médio centro útil que vagueou pelo agora agónico Oviedo e que acabou no ressuscitado Sporting. Clube onde ficou, ligado à formação, onde se doutorou com o mérito de vencer com umas condições invejáveis para um país onde formar passou a ser palavra maldita. Promovido de surpresa à equipa principal, depois de um ano em que tudo se pôde ganhar e tudo se perdeu em Alvalade, começou um mandato de quatro anos aliado à supremacia interna do FC Porto. Incapaz de superar Co Adriaanse primeiro e Jesualdo Ferreira depois, contentou-se com quatro vice-campeonatos consecutivos, algo inédito no historial luso. Uma taça aqui, outra acolá, desastres europeus e vários problemas de balneário e com as estruturas arbitrais marcaram profundamente o final da sua passagem por Alvalade. Deixou de ser "forever" para passar a "prescindível", pagando o preço de estar num clube suícida. Saiu pela porta pequena e ficou à espera. Da lotaria. Da inesperada lotaria chamada Selecção.
Nem conciliador, nem disciplinador, nem empolgante, nem um génio da táctica.
Paulo Bento não reúne qualquer das caracteristicas fundamentais para suceder a Carlos Queiroz. Nem uma, quanto mais as (desejáveis) quatro.
A sua passagem pelo Sporting mostrou um técnico muito similar ao jogador. Conflictivo, constantemente em guerra contra o comité de arbitragem e a Liga de Futebol, foi suspenso e admoestado mais do que uma vez. Incapaz de deitar água na fervura, levantou os animos dos adeptos leoninos contra os rivais directos. Agora será o seleccionador de 10 milhões de adeptos. Nenhum deles entusiasmado com a sua chegada, conscientes de que foi uma escolha por eliminação. Sem dinheiro para um estrangeiro de renome, sem a possibilidade de usar a carta de efeito chamada Mourinho, a FPF escolheu o "desempregado" com mais reputação, passando ao lado dos veteranos (Manuel José, Jaime Pacheco, Manuel Cajuda) e optando por seguir o modelo, tão em voga nos últimos anos, de eleger como técnico um homem sem experiência. Fê-lo o Brasil com Dunga, a Holanda com van Basten, a Alemanha com Klinsmann e a Argentina com Maradona. Todos eles figuram mediáticas no seu país, ao contrário do português que chega ao cargo mais cobiçado com quatro anos como técnico principal. Nada mais.
Um técnico que traz fama de disciplinador mas que está longe de o ser. Castigar o elo mais fraco não é ser disciplinador, é ser oportunista. Foi esse o tratamento dado por Paulo Bento a Purovic, Vukcevic, Izmailov e Stoikjovic, os recém-chegados, trazidos pela direcção com o seu aval, que competiam directamente com os seus rebentos. Na hora de resolver problemas internos graves, Paulo Bento errou. Mais do que uma vez, como se viu à posteriori com o caso "Sá Pinto vs Liedson" e as acusações à volta de João Moutinho, incompreensiveis no próprio balneário leonino.
O seu perfil como técnico é, além do mais, baixo. Muito baixo. Ridicularizado vezes sem conta pelo seu vocabulário (escasso), Paulo Bento tentou passar a imagem de um técnico que trabalha com tranquilidade, mas o que deixa à mostra é um homem incapaz de lidar com a pressão dos holofotes sem perder o controlo. Não tem o gene motivador que manteve durante tanto tempo a popularidade de Scolari em alta, nem sequer é um homem que provoca a força do balneário como foi António Oliveira. Tem um perfil similar ao de Humberto Coelho, técnico contestado pelos jogadores desde o primeiro dia e que já estava despedido antes do Euro 2000, pela própria Federação que, na altura, não teve de inventar um processo para evitar problemas maiores.
Por fim, Paulo Bento é, acima de tudo, um técnico limitado. Tacticamente. Durante o seu mandato de quatro anos em Alvalade nunca se soltou do eterno 4-4-2 em forma de losango, mesmo quando o sistema táctico estava ultrapassado, por demais conhecido dos rivais e quando o plantel sugeria outras opções. Num país habituado em excesso ao 4-3-3 (extremos como Varela, agora no FC Porto, não cabiam nas contas de Bento), a sua obsessão pelo 4-4-2 será um dilema de dificil resolução. Um verdadeiro, ou vai ou racha.
Paulo Bento sabe que é a última escolha. Sabe que é impopular. E sabe que não é um grande treinador. Tem consciência de que é preciso algo similar a um milagre para Portugal evitar cair no play-off, onde tudo pode passar. E que corre o risco de ser o treinador associado ao primeiro falhanço desportivo de Portugal desde 1998. Mesmo assim aceitou capitanear um navio cheio de buracos. A ânsia superou a razão. O navio é seu. Mas poucos acreditam que chegue a terra firme.
O circo montado á volta da possibilidade de José Mourinho orientar a selecção portuguesa traz, uma vez mais, o selo inigualável de Gilberto Madaíl. O presidente da FPF não percebeu que a expulsão forçada de Carlos Queiroz também era, indirectamente, um cartão vermelho á sua politica directiva e procurou agarrar-se ao prestigio do mais consagrado técnico mundial para sobreviver. Acabou por multiplicar um problema de fácil solução. O resultado da equação é o enésime ridiculo do seu mandato.
Inédito talvez na história do desporto-rei. O convite que nunca chegou a suceder de Madaíl a Mourinho (e ao Real Madrid) para que o setubalense orientasse dois jogos - dois jogos chave - de Portugal na corrida a um Europeu que se vê cada vez mais distante roça o épico do disparate. Mina automaticamente o prestigio de qualquer um que venha a seguir ao inigualável Mourinho. Se esse é Paulo Bento, um técnico sem prestigio nenhum que soube acumular apenas segundos lugares durante os seus quatro anos como técnico principal, a situação é ainda mais confrangedora. Portugal perde - se é que alguma vez podia ter ganho - a possibilidade de ser orientado pelo técnico mais capaz do Mundo, num biscate de uma semana, e acaba por ter de se contentar com um técnico mediocre e sem o respeito que tantos já criticavam a Carlos Queiroz de não ter no meio futebolistico e junto dos adeptos. Porque se Scolari emergiu em 2002 como o "salvador da pátria", desfeita pelo erro em repetir aposta em Joaquim Oliveira, perdão, António, numa situação igualmente dramática como agora se adivinha (mas sem Geração de Ouro para resolver em campo os problemas do banco), pedia-se um golpe de efeito. Mourinho seria esse golpe?
Certamente, mas nunca num exercício a recibos verdes sem cobrança, por muito louvável que o seu patriotismo tenha emergido para contrariar a turba de comentadores que olha com desprezo aquele que mais fez pelo futebol português cá dentro e lá fora. Optar por um modelo como o que se viu na Austrália e Rússia de Guud Hiddink poderia ser uma realidade, não estive The Special One num clube glutão e incapaz de perceber, como o técnico, que as paragens no calendário para os compromissos das selecções são um calvário para um treinador que fica com meia dúzia de miudos para orientar. Mourinho teria razão em ficar desesperado com o egoismo do Real Madrid. Mas se a FPF nunca o realmente convidou...
Gilberto Madaíl, como bom português que é, com ou sem bigode, gosta de se eternizar no cargo.
Depois do Euro 2008 e da saída de Scolari quis reinventar-se chamando para o cargo o homem que iria revitalizar o morto (homícidio em primeiro grau) futebol de formação luso. Saiu-lhe mal a jogada. Queiroz é um mal amado incompreendido em Portugal, a equipa nunca o respeito e aqueles que ainda se lembram da primeira passagem do técnico pela equipa das Quinas receberam-no com as garras afiadas. Era um caso com final previsivel antecipado por um esquema que só em Portugal vingaria. Como vingou.
O presidente que tanto finca pé fez no técnico está agora num beco sem saída. Portugal corre o sério risco de, pela primeira vez desde 1998, falhar uma prova internacional. E a sua posturua durante o caso Queiroz tira igualmente pontos á dupla candidatura ibérica para a organização de um Mundial onde, realmente, Portugal só faria figura de corpo presente, sem sequer ter direito a jogos que mereçam a pena ser vistos. Recorrer a José Mourinho - que já tantas vezes falou sobre o seu interesse em ser seleccionador luso - foi provavelmente o golpe mais baixo do presidente federativo. Baixo para os adeptos, que durante horas sonharam com o seu particular salvador da pátria, para depois terem de se contentar com uma qualquer segunda escolha (pior ainda se essa escolha é Paulo Bento). Baixo para o Real Madrid, que há poucos meses apostou mundos e fundos no técnico português e durante esta semana não foi tido nem achado no esquema delirante da FPF e de Jorge Mendes, omnipresente dentro e fora do balneário do conjunto português. E, acima de tudo, baixo para o próprio Mourinho ao colocá-lo numa situação impossível. Dizer que não ao seu país era algo que Mourinho nem queria nem podia fazer, ele que sempre se viu como o técnico capaz de superar a fasquia de Scolari: vencer. Dizer que sim a Portugal significava desrespeitar um clube que apostou forte nele e que vive uma etapa de crescimento que necessita concentração máxima por parte do seu mentor. A opinião público madrileña, liderada pela inefável Marca de Eduardo Inda tratou rapidamente de colocar a opinião mediática contra o técnico e a federação lusa, o que já de si dificulta a labor de um treinador que ainda desperta reações extremas nos adeptos. Ao mesmo tempo colocou a direcção do Real Madrid num beco sem saída, incapaz de poder confirmar ou desmentir algo que, realmente, nunca sucedeu. Madaíl e Portugal no seu melhor.
Mourinho tem razão, não há grandes incompatibilidades entre ser-se seleccionador e técnico. Ele que orienta três jogadores titulares dos lusos, que conhece como ninguém o futebol português e os portugueses que actuam lá fora (incluindo o esquadrão espanhol). Ele que seria o elemento motivacional que o descreditado futebol luso necessita. Mas a hora - que chegará - ainda não é esta, particularmente porque, uma vez mais, na FPF não se souberam fazer as coisas. Madaíl esquece-se que a forma trapaçeira e rasteira de trabalhar em Portugal choca com um certo profissionalismo que vigora para lá de Vilar Formoso. Portugal e a sua selecção bateram fundo, uma vez mais. Oito anos depois do descalabor de 2002 Gilberto Madaíl continua igual a si próprio. Infelizmente, o futebol português também.
Na crónica ao estado depressiva da selecção lusa, o jornalista do Público, Hugo Daniel Sousa, comparou com precisão o actual estado da equipa das Quinas com o quadro "O Grito" de Edward Munch. Um estádio de psicose interna que caminha a passos largos para o precipicio. Mais do que resultados, o que está em causa é toda a estruturação do futebol português que começa a pagar agora pecados capitais muito antigos.
Na mesma semana em que o Sindicato de Jogadores divulga um estudo que se limita a confirmar uma realidade que tem mais de uma década, a expressão máxima do futebol nacional, a selecção AA, completou a sua pior jornada internacional de apuramento em largos anos. Um ponto conquistado contra duas equipas acessíveis para um conjunto que aspira a tudo é um retrocesso aos dias da calculadora aberta desde as primeiras rondas. Um cenário do qual Portugal não se vai livrar tão cedo. Em Novembro a equipa das Quinas pode estar praticamente fora do próximo Europeu de Futebol caso não consiga inverter o suícidio colectivo entre o empate disparatado face ao Chipre e a derrota cinzenta na Noruega. Um encontro com o rival directo (aparentemente) e um duelo na fria e perigosa Islândia serão fulcrais (já) para determinar o futuro de Portugal. Falhar a primeira prova internacional em 12 anos (e seis edições, entre Europeus e Mundiais) seria o culminar efectivo do final da era de ouro do futebol nacional. Uma realidade há muito acabada mas que imprensa, equipa federativa e corpo técnico teimam em querer eternizar sem que estejam reunidas as condições para que Portugal se possa sentir como uma equipa de primeiro plano internacional como foi, legitimamente, durante a última década, onde atingiu uma final e duas semi-finais de provas internacionais, num registo apenas superado na Europa pela Alemanha e igualado pela Holanda. As derrotas na fase de apuramento são apenas o espelho de uma realidade podre, negra e aparentemente sem solução que tem vindo a minar o futebol português à vários anos. A caça às bruxas levantada contra Carlos Queiroz, precisamente o homem contratado para inverter o processo, depois da "vaca" ter deixado de dar leite, é mais um sinal de que as perspectivas de futuro continuam a ser uma miragem para os principais agentes desportivos lusos.
Portugal é um país vendedor que compra em demasia.
Nos últimos anos os jogadores portugueses têm abandonado a liga nacional em busca de melhor sorte. Às vendas milionárias logradas essencialmente por FC Porto e SL Benfica (e em menor dimensão, Sporting), juntam-se os jogadores de pequena expressão que procuram em países como a Roménia, Suiça, Chipre, Noruega, Escócia, Rússia ou Holanda as oportunidades que os clubes locais não estão dispostos a conceder. Essa razia está acompanhada pelo aumento impressionante da importação de jogadores, muitas vezes de valor inferior, que transformou a liga portuguesa na terceira da Europa com mais estrangeiros, numa percentagem superior à metade. O plantel dos grandes é o exemplo perfeito dessa dicotomia mas até mesmo os clubes conhecidos pelo seu passado na formação há muito que abandonaram a politica do producto interno. Outros, históricos, pagaram caro esse erro caindo em falência ou agonizando em ligas inferiores, um destino que está hoje em dia ao alcance de qualquer clube português, face à incapacidade destes (e da Liga) de gerar receitas.
A redução de equipas da Liga Zon/Sagres para 16 (acompanhada pela Liga Orangina) e o anunciado final da III Divisão, não trouxe nenhuma alteração visivel à competitividade interna, a cair a pique nos últimos 10 anos. Os jogadores portugueses de formação são obrigados a ganhar experiência em equipas com tipologia defensiva e sem ambição, perdendo a oportunidade de actuar nos principais clubes e provas, ao contrário do que sucede com as suas congéneres europeias. Sem espaço nos seus clubes de origem, presos a um campeonato mediocre, a sua evolução estagna quando deveria florescer. Portugal há mais de uma década que abandonou o futuro, a partir do momento em que fechou as portas aos seus próprios jogadores, uma politica seguida pela Federação, pelos principais clubes e pelas equipas técnicas de Humberto Coelho a António Oliveira passando por Luis Filipe Scolari. Essa realidade, aliada ao pequeno campo de recrutação que um país de 10 milhões de pessoas oferece, abriu caminho às naturalizações express e à falta de opções de nível para a selecção principal. Na catastrófica dupla ronda internacional, Agostinho Oliveira utilizou vários elementos que nem sequer são utilizados nos seus clubes, chamando apenas oito jogadores a actuar na liga nacional. Muito pouco. Espelho de uma ideia de "piloto automático" de um projecto suícida capaz de interpor interesses pessoais à qualificação lusa para o próximo Campeonato da Europa.
Sem margem de manobra para o presente, o principal labor da FPF deveria ser preparar o futuro.
Bem recentes são os exemplos do suícidio desportivo de uma das grandes potências dos anos 80, a Bélgica. País de curta dimensão, a Bélgica foi figura omnipresente nos grandes torneios internacionais de 1980 a 2002. Desde então caiu na terceira divisão europeia tendo recorrido anos a fio a jogadores veteraníssimos face à incapacidade dos clubes e da respectiva federação de renovar os quadros competitivos. Actualmente a geração jovem belga é uma das mais quotadas do futebol europeu e apesar de ter uma dificil missão em apurar-se num grupo que inclui Alemanha e Turquia, todos são unânimes em considerar os belgas como uma força a ter em consideração nos próximos anos.
A própria Holanda, rainha dos anos 70, teve o seu hiato desportivo de uma década entre a final de 1978 e a conquista do Euro 1988. Tempo de pausa para preparar o futuro que chegou sob a forma de van Basten, Gullit, Rijkaard, Koeman e companhia. No caso português a questão é ainda mais critica porque o final da Geração de Ouro, há muito confirmado, só foi protelado pelo final tardio da Geração Mourinho, onde podemos incluir Ricardo Carvalho, Bruno Alves, Raul Meireles ou Hugo Almeida, todos a cruzar perigosamente a fronteira dos 30. Em dez anos, com as pontuais excepções da formação sportinguista (Cristiano Ronaldo, Nani, Miguel Veloso, João Moutinho, Yannick Djaló) os clubes grandes estancaram em dar novos jogadores ao país e os clubes de média e pequena dimensão desapareceram do mapa. As gerações de 2004 (os Postiga, Lourenço, Zé Castro e companhia) e de 2008 (Bruno Gama, Helder Barbosa, Vieirinha, Manuel Fernandes), são exemplos do falhanço dessa politica. Sem margem de solução imediata.
E no meio de toda esta problemática (a que podiamos juntar a ausência de infra-estruturas para a FPF como uma Cidade Desportiva, a falta de receitas e apoio do público das ligas profissionais e a falta de limitação de jogadores estrangeiros) a equipa federativa e o governo luso preferem tapar o sol com a cabeça de um seleccionador com dois anos de serviço que incluem o cumprimento de todos os serviços minimos esperados nesta circunstância. Uma ironia que preocupa pelo facto de ser um sinal claro de que o futuro será tão negro como o presente.
Queiroz não é um génio da táctica e seria certamente melhor coordenador das selecções (algo que não existiu sequer durante os 15 anos da sua ausência) do que seleccionador. Mas esperar que seja outro técnico a mudar o rumo, quando os problemas são puramente estruturais, é um grave atentado à inteligência do adepto e contribuinte português. Paulo Bento, Manuel Cajuda, Luis Aragonés ou Luis Filipe Scolari não são melhores treinadores do que o actual seleccionador. Nem têm escondido um contentor de jovens e talentosos jogadores lusos capazes de crescer e comer o Mundo. Basta pensar que a superior Espanha que há dois anos domina o futebol internacional é resultado de uma aposta séria de 10 anos na formação e estruturação de um país habituado a desiludir. Nada é imediato. E nada se resolve com uma destituição que, a acontecer, deveria ser acompanhada com uma limpeza geral de todo o projecto federativo, caducado quando a aposta num projecto de quatro anos se desfaz com um insulto e uma derrota face à campeã mundial. Portugal precisa de um projecto com futuro, tentando no presente cumprir objectivos minimos que garantam uma presença regular nas provas internacionais. Mais, é impossível. Mais, é utópico. Mais, é o Conto do Vigário.
Na terra onde o tango ganhou forma e feitio, a selecção argentina bailou sobre a equipa campeã do Mundo com uma voracidade digna de qualquer marinheiro carpido das secas ruas de La Boca. Um diapasão musical iluminado por um Sargento Messi e a sua banda de Corações Solitários, capaz de orquestrar um jogo digno de roçar os limites perfeição. Como qualquer álbum dos The Beatles.
Messi teve, finalmente, "a little help from his friends" e deixou Vicente Del Bosque a suspirar por um "A Day in Life" enquanto que a aficcion espanhola certamente sentiu que estava sob o efeito de um qualquer "Lucy in the Sky With Diamonds". A hinchada argentina, que lotou por completo o imenso Monumental, sentiu a vida começava a ficar "Getting Better" a cada segundo de jogo. A orquestra funcionou à perfeição, a Argentina renasceu. E do outro lado ninguém suspeitava que estava a equipa campeã Mundial, apanágio do jogo belo do último biénio desportivo.
Sem a loucura de Maradona, esse profeta do desiquilibrio, e diante dos seus próprios adeptos, sedentos de sangue - o dos rivais ou, em última instância, o seu - o conjunto comandado por Sergio Batista afinou os acordes e aplicou-se num concerto inesquecível. Digno de entrar na história do futebol da albiceleste, pouco habituada a dar recitais de tamanha classe depois de anos de desprestigio internacional e desenganos inoportunos. O 4-3-2-1 que Batista montou na recepção à toda-poderosa Espanha, em pouco se parecia à ambiciosa aventura maradoniana que terminou aos pés da fria e rápida Alemanha, impedindo o duelo hispânico nas meias-finais do último Mundial. Os regressados Banega e Cambiasso deram o critério que faltava ao miolo argentino e a experiência de Zanetti frustrou o jogo pelos flancos da bem organizada Espanha. E à frente havia Messi, finalmente havia Messi.
O número 10 argentino realizou aquela que é, até hoje, a sua melhor exibição com a camisola do seu país ao peito.
O estádio do River Plate levantou-se para aplaudir o pequeno grande génio, ao minuto 88 (pouco antes tinha falhado um golo que teria consumado a humilhação espanhola), um verdadeiro Sgt Pepper´s capaz de organizar sozinho uma banda de talentosos solistas que, por uma vez, souberam actuar em conjunto com harmonia e paixão. Leo foi demoníaco na forma como desmembrou um meio-campo espanhol a quem só faltou Xavi (durante a primeira parte, rendido por Fabregas), mas que foi incapaz de o travar. O primeiro golo, um hino aos talentos do argentino, foi o exemplo de como o extremo é capaz de se transformar num tornado em movimento, verdadeiramente imparável. O segundo, com o selo de Gonzalo Higuain, confirmou o mérito da aposta do seleccionador da albiceleste em Carlitos Tevez. Descaído para o lado esquerdo do tridente ofensivo, o avançado do Manchester City encarnou a garra mágica da música bailada pelos argentinos. Um rift de guitarra para o primeiro golo de Messi. Um solo de breves instantes para o tento de Higuain e um grito de explosão capaz de arrebentar com qualquer cenário quando Pepe Reina (que parece sempre falhar nos momentos chave, que o digam os adeptos do Liverpool) tropeçou no imenso esférico e permitiu à Argentina marcar o terceiro golo com meia hora de jogo.
Uma meia-hora demoníaca em que os espanhóis se limitaram a ouvir a música que tocava no palco, aplaudindo timidamente. Se a Argentina até abrandou na segunda parte - com a Espanha, forçosamente, a procurar maquilhar o resultado com um quarteto ofensivo composto por Navas, Pedro, Llorente e Cazorla, com Xavi já com a batuta nas mãos - a verdade é que, tal como no maravilhoso álbum de 1966 que arranca furioso nos primeiros vinte minutos e depois abranda com uns suaves Within You Without You, Whem I´m Sixty Four - uma bela homenagem à longevidade de Zanetti e Heinze - e Lovely Rita, o final é imenso. A entrada de Aguero e D´Alessandro dá outra raiva ao ataque argentino que entre ambos - com o apoio do lateral-esquerdo - criam o quarto tento da equipa da casa.
A Espanha até tinha reduzido, por intremédio de Llorente, que rendeu David Villa ao intervalo. Mas nunca existiu realmente, asfixiada pela pressão argentina e pelo ritmo diabólico dos Beatles de Buenos Aires.
Del Bosque alinhou uma equipa onde só Nacho Monreal não ostentava o titulo de campeão do Mundo. Silva, Fabregas, Iniesta, Villa, Busquets e Xabi Alonso compunham o sexteto ofensivo, mas o conjunto espanhol esteve muito longe daquilo que é capaz. Houve três bolas nos ferros, é certo, e alguma dinâmica ofensiva bem orquestrada no segundo tempo, especialmente quando Navas e Pedro abriram o jogo, até então demasiado afunilado pelo eixo central. Mas sem qualquer resultado prático, a não ser um tento de consolação que impediu uma humilhação maior.
Se o festival de futebol argentino se assemelhou em tudo ao mítico álbum da banda de Liverpool, o jogo da super-favorita Espanha (que aproveitou para fazer campanha de charme para a candidatura mundialista) parecia-se mais a Between the Buttons, o álbum contemporâneo de uns Rolling Stones ainda demasiado verdes para aguentar o ritmo alucinante da "Beatlemania". Se o traço de génio está lá - como estava nesse desvio de rota de "Suas Satânicas Majestades" - e o passado não se apaga, a verdade é que ficaram os primeiros sinais de alarme numa equipa que em dois anos ganhou tudo mas que nunca teve, realmente, de se medir a adversários na máxima força fisica e psicológica. Num terreno adverso, contra uma equipa motivadíssima, a Espanha encolheu-se cedo e demorou a esticar o seu futebol que rapidamente abandonou o preciosismo do toque lateral para uma maior verticalidade apontada nos solos de guitarra de Pedro e Navas, quais Keith Richards solitários numa banda mergulhada numa piscina de dúvidas e tropeções inesperados. Até porque a Between Buttons se seguiu Their Satanic Majesties Request, um flop ainda maior, e um periodo de incertezas que só acabaram com a morte de Brian Jones e o arranque de um novo ciclo musical com a dupla Richards-Jaggers já ao comando. A Espanha de ontem mostrou esses traços de grandeza que só se encontram em faixas perdidas no coração de albúns sem chama.
O triunfo musical dos argentinos é uma nota positiva com vista à próxima Copa América, especialmente porque demonstra que o génio que é Leo Messi começa a encontrar o seu espaço no futebol menos associativo e mais solidário do conjunto argentino. A sua demoníaca velocidade, aplicada sem piedade, será a grande arma de Batista para atacar o dominio continental, uma vez mais. Do outro lado do Oceano, a equipa espanhola lamberá tranquilamente as feridas de uma humilhação inesperada. Têm o tempo do seu lado para preparar uma renovação tranquila, com um apuramento facilitado rumo a um Europeu repleto de selecções, também elas, com as suas particulares psicoses musicais para resolver.
A debacle de Guimarães não surpreende quem antevia já o naufrágio de uma selecção que hoje existe apenas no nome. Não bastaram as criticas e dissidências após o último Mundial. O hara-kiri incompreensível da FPF na sua insaciável perseguição a Carlos Queiroz ajudou a aumentar o clima de instabilidade numa equipa das quinas onde ninguém sabe como será o dia de amanhã.
Não foi a primeira vez que Portugal cedeu pontos com um rival acessível.
Houve os miticos empates com Malta, Azerbeijão, Arménia e afins, alguns deles conseguidos por "ilustres" seleccionadores do combinado nacional. Mas nem o Chipre está nesse patamar, nem o resultado de sexta-feira deixa uma imagem tão surpreendente. Os cipriotas, afinal de contas, têm melhorado muito o seu pedigree internacional. A nivel de clubes estrearam-se na passada edição europeia na Champions League e a própria selecção revelou-se um osso duro de roer para Itália e Irlanda, os seus rivais directos no apuramento para o último Campeonato do Mundo. A imagem romântica de uma débil equipa mediterrânica deixou de fazer sentido. O Chipre é uma selecção competitiva e preparada para a alta roda. E o Mundo do futebol hoje já não admite a minima falha. Que o diga a reformatada França de Laurent Blanc, que diante de 75 mil expectantes gauleses baqueou diante da Bielorrúsia, uma equipa bem ao nível da formação cipriota.
No entanto, o grande problema de Portugal foi...Portugal.
Uma equipa que aponta 4 golos - particularmente quando é uma equipa reconhecida internacionalmente pela sua inépcia diante das redes contrárias - e sofre outros tantos é, claramente, o maior inimigo de si mesma. E não apenas porque a equipa lusa foi a segunda menos batida do último Mundial. Mas também porque foi um conjunto emocionalmente distante, partido. Ausente. Como seria de prever.
Só um lirico pode imaginar que uma selecção nacional, particularmente no arranque de uma época com vários jogadores ainda sem minutos nas pernas e rotinas competitivas, no estado de auto-destruição que vive a portuguesa pode ambicionar a mais. Vencer a dupla ronda europeia seria a grande surpresa numa equipa assumidamente em "piloto automático".
A FPF temeu em despedir Carlos Queiroz quando era a hora, para os detractores do actual seleccionador. Numa avaliação de performance, se a prestação na África do Sul tivesse sido tão negra, o técnico seria inevitavelmente substituido. Mas tanto a equipa técnica como a federação concordaram, tacitamente, que os objectivos minimos estavam cumpridos e que reeditar uma meia-final não era mais que um sonho, um feeling que não se concretizou. Fechado esse ponto, e com a expectativa de uma séria renovação geracional (que Queiroz não pode fazer durante a campanha prévia, a quente), a questão parecia solucionada. Longe disso.
Nos últimos meses temos assistido a um mini-Saltillo, uma triste reedição do episódio mais funesto da história da FPF com alguns participantes repetentes. Despedir Carlos Queiroz passou a ser o objectivo comum de entidades governativas e federativas, mesmo correndo o risco de hipotecar a presença de Portugal na sua séptima prova internacional consecutiva. A suspensão do seleccionador e as seguintes sanções, aplicadas com o único propósito de lograr uma rescisão com justa causa (e sem os 2 milhões de euros de indmenização a que o técnico teria direito) tornaram-se no eixo central da vida da selecção. Os naturais abandonos internacionais de Simão e Paulo Ferreira foram transformados em casos de rebelião, o silêncio prolongado do (ainda) capitão nacional ganhou contornos de tabu à portuguesa e a nomeação de Oliveira como seleccionador interino abriu as portas à ideia de uma clara sucessão futura. Afinal, só Portugal parte para esta campanha sem seleccionador. O resto é somar 2+2.
Se a convocatória a meias entre Queiroz e Oliveira já deixou a entender por onde caminha a renovação lusa (Silvio, Djaló e os regressados Nani, Quaresma, Varela e Micael) também deixa claro que os problemas estruturais de Portugal continuarão, seja qual for o seleccionador. A ausência de um ponta-de-lança ou de um criador de jogo será um assunto bem mais sério do que o posto do homem que coordena o futebol internacional. A mudança de Queiroz, quase inevitável, garantirá o triunfo do status quo federativo e até poderá proporcionar um regresso ao scolarismo ou uma abertura ibérico ao aragonismo. Mas não deixará de ser incapaz de arrancar Portugal da mediania europeia, onde se encontra, tranquilamente. Sem espirito competitivo, sem noção de conjunto, equipa ou grupo, Portugal joga em Oslo a sua sobrevivência mental, mais do que os três preciosos pontos. O apuramento é longo e permite deslizes. Mas o que não admite são equipas sem estofo competitivo. Sem sentido profissional. E aí é que está o problema português. Mas a culpa, é do Queiroz!
Pediu uma vez que o deixassem sonhar mas a memória atraiçoou-o e reservou-lhe um final que não se merecia. José Torres, o eterno "Bom Gigante", figura chave do futebol luso, faleceu hoje aos 71 anos, depois de uma longa e perdida luta contra o Alzheimer. Passou pela era dourada do futebol luso como uma das suas máximas estrelas acabando por testemunhar o final de um dos maiores pesadelos da história do futebol português.
Uns recordarão o Torres técnico, e as suas esperançosas declarações previas à viagem de Estugarda que garantiu o histórico regresso de Portugal a um Mundial. Outros lembram-se dele no primeiro Campeonato do Mundo de Portugal, dos seus golos, assistências e gestos técnicos primorosos. Em qualquer caso, Torres foi uma figura impar.
O ponta de lança que o SL Benfica contratou em 1959 ao Torres Novas fez parte da equipa encarnada que dominou por completo o futebol português nos anos 60. A sua altura (media 2 metros e 3 cm) garantiu-lhe o apelido que o eternizaria, mas a verdade é que durante três anos foi presença mais assidua na equipa de reservas do que no onze tipo daa equipa treinada por Bella Guttman. Depois do triunfo europeu de Berna, Torres passou a ser figura chave na estrutura ofensiva encarnada, rendendo a pouco e pouco o histórico José Águas. Ao lado de Eusébio, António Simões e José Augusto, compôs a mágica dianteira que venceu seis ligas nacionais em oito anos e chegou a três finais da Taça dos Campeões Europeus, todas perdidas. Na sua primeira época como titular absoluto apontou 26 golos, o que lhe valeu então a Bota de Prata, prémio que não voltaria a vencer apesar de ter estado perto dos números atingidos pelo seu parceiro de ataque, Eusébio.
Em 1963 Torres foi pela primeira vez chamado à selecção nacional, onde rapidamente reeditou o quarteto ofensivo que maravilhava o estádio da Luz. Com essa linha atacante Portugal chegou a Inglaterra e tornou-se no conjunto revelação do torneio. Durante a prova Torres sagrar-se-ia como o segundo melhor marcador da equipa portuguesa, com 3 golos, só atrás de Eusébio. No final da década de 60, com as chegadas de Toni e Artur Jorge, começou a revolução geracional que ditaria o final da etapa do "Bom Gigante" na Luz. Determinado a demonstrar a sua valia, o dianteiro rumou ao Vitória de Setúbal, então orientado por Fernando Vaz.
Em 1971 chegou ao Sado onde disputou quatro épocas com os sadinos, conseguindo aí as suas últimas convocatórias para a equipa das Quinas, despedindo-se num Portugal-Bulgária de 1973, curiosamente no mesmo dia que os seus eternos parceiros, Simões e Eusébio. Depois da aventura em Setúbal, Torres retirou-se definitivamente do futebol ao serviço do Estoril-Praia, em 1980. Aí arrancou igualmente a sua carreira como treinador principal.
Orientou o Estrela da Amadora, Varzim e Boavista antes de ser chamado, surpreendentemente, em 1984 para o cargo de seleccionador nacional. A Federação Portuguesa de Futebol procurava um técnico de baixo perfil depois dos graves problemas vividos pelo quadriuvirato composto por Toni, Morais, José Augusto e Cabrita durante o Europeu de França. A escolha do simpático Torres tinha como principal propósito, desanuviar as tensas relações entre a FPF e os jogadores, e entre os atletas do Benfica e FC Porto. Um trabalho nada fácil que teve de ser compaginado com a dura qualificação para o Mundial de 1986. Depois de vários resultados adversos, Portugal beneficiou da sorte, com a derrota da Suécia diante da Checoslováquia o que levou o técnico a proferir a célebre frase "deixem-me sonhar" à partida para Estugarda. Portugal precisava de ganhar à já apurada RF Alemanha e assim o fez, com um remate monumental de Carlos Manuel. Conseguido o apuramento, voltaram os problemas. Em Fevereiro de 1986 começa a gestar-se o que viria a ser a base do caso Saltillo, circunstância em que o seleccionador nunca soube impor a sua voz. Falhou como o mediador que a FPF e os jogadores precisavam e falhou depois no terreno de jogo. Após a vitória inaugural contra a Inglaterra, num jogo em que Portugal foi claramente inferior, e das declarações explosivas de Paulo Futre, o seleccionador perdeu o controlo da situação e Portugal viu-se superado por Polónia e Marrocos. À chegada a Lisboa a equipa federativa não lhe perdoou a falta de apoio no conflito com os jogadores e Torres foi despedido.
A partir daí a sua carreira tornou-se errática até que abandonou, definitivamente, o futebol quando lhe foi diagnosticado um principio de Alzheimer que marcou profundamente os seus últimos anos de vida. A morte de um dos melhores pontas-de-lança do futebol marca assim o dia que deveria significar um renascimento da equipa nacional por quem tanto lutou. Quanto a José Torres, o jogador e o técnico, há muito que garantiu o imortal lugar na história do nosso futebol. Como poucos lograram antes dele.
Ficou para a história como o número 1 da etapa mais bem sucedida da história do futebol luso. Aposta pessoal de um seleccionador polémico, Ricardo Pereira foi sempre um guarda-redes capaz de despertar ódios e paixões. Três anos depois do inicio da sua aventura espanhola, o homem que parava penaltys sem luvas caiu no abismo do esquecimento. Já não há lugar para ele no mundo do futebol.
A noticia surpreende poucos.
Quem seguiu a decepcionante campanha do Bétis da passada época, cedo percebeu que Ricardo estava destinado a não voltar a pisar o relvado do Benito Villamarin, ainda conhecido actualmente pelo nome do seu último e polémico presidente, Ruiz de Lopera. O guardião português foi um dos investimentos mais caros da equipa andaluza há três temporadas, mas revelou-se igualmente um dos maiores fiascos do clube bético. A porta da saída ficou aberta mas ninguém mostrou interesse em arriscar uma contratação repleta de riscos. Altos riscos. Inevitavelmente, o mercado fechou e com ele o fim da aventura no Bétis de Ricardo Pereira. Em 25 vagas livres, nenhuma sobrou para o guardião. O jogador está, actualmente, no limbo desportivo. De onde talvez nunca mais volte a sair.
A polémica à volta de Ricardo em Sevilla ganhou contornos bem similares aqueles que marcaram a carreira do guarda-redes em Portugal. A intermitência das suas exibições, oscilando entre o genial e o deprimente, rapidamente dividiu as bancadas verde e brancas de Sevilla. Até que a queda na Liga Adelante ditou a sentença final para Ricardo. Os adeptos nunca mais o perdoariam, os treinadores raramente voltariam a correr o risco de lhe entregar as redes do clube bético. Nem a última etapa com Luis Filipe Scolari ao mando salvou a sua reputação. Os seus erros frente à Alemanha nos Quartos de Final do Europeu de 2008 fecharam as poucas portas que ainda se podiam abrir para um homem habituado a desafiar o inevitável.
Ricardo conheceu os seus primeiros dias de glória no histórico Boavista de Jaime Pacheco.
Natural do Montijo (nasceu em Janeiro de 1976), o guardião começou a carreira no clube local antes de se transferir para o Boavista, onde surgiu como a terceira opção durante dois anos. O final da carreira do histórico Alfredo abriu-lhe a oportunidade de estrear-se, em Fevereiro de 1997, como titular dos axadrezados. Conservou o posto e tornou-se elemento chave da equipa boavisteira que disputou em 1998/99 o titulo ao FC Porto. Com Pedro Emanuel, Petit, Martelinho, Sanchez e Jorge Silva tornou-se o esteio da equipa que dois anos depois faria história ao sagrar-se, pela primeira vez, campeã nacional. Ricardo foi o guardião menos batido da época e a sua voz de comando na área tornou-o automaticamente num dos guarda-redes mais quotados da liga lusa. A chamada à selecção nacional surgiu em 2001, pela mão de António Oliveira. O seleccionador levou o guardião ao Mundial da Coreia do Sul e Japão como titular, mas um jogo inesquecível frente à China do até então lesionado Vitor Baía, fez o técnico mudar de ideias. Baía seria o titular durante a campanha, Ricardo teria de esperar. O final da prova significou também o final da carreira do portista na equipa das Quinas. Agostinho Oliveira, primeiro, e logo Luis Filipe Scolari, recusaram-se a convocar o portista, que nos dois anos seguintes seria duplamente coroado pela UEFA como o melhor guardião europeu, e Ricardo assumiu o posto de titular. Iria mantê-lo durante seis anos, sem nunca chegar a convencer plenamente os criticos e adeptos.
Dele fazem parte alguns dos momentos mais memoráveis da história do futebol luso, mas também algumas das noites mais desastradas. Já ao serviço do Sporting, para onde se transfere, não sem polémica, em 2003, o guarda-redes mostra a sua cara e cruz durante o Europeu de 2004. Ao máximo nivel contra Espanha e Rússia, Ricardo torna-se no herói do duelo frente à Inglaterra, travando dois penaltys britânicos - o último dos quais sem luvas, num gesto heróico - e apontando ele o penalty ganhador. Uma das suas especialidades que o tornaram numa celebridade europeia. Uma semana depois, no entanto, um erro de precipitação permitiria a Angelos Charisteas confirmar a surpresa, o titulo europeu grego, e lançaram nuvens sobre o futuro de Ricardo na selecção. Scolari manteve-se inflexível. Nem Baía, nem mais tarde Quim, conseguiram chegar ao posto de titular durante as campanhas do Mundial de 2006 (onde voltou a brilhar na marca das grandes penalidades frente aos ingleses, para depois ser o principal responsável da derrota com a Alemanha no último jogo) e no Euro 2008, onde voltou a mostrar o seu lado mais negro.
Por essa altura já Ricardo actuava na liga espanhola, onde a sua chegada tinha despertado muito interesse. O péssimo ano de estreia, aliado à despromoção do histórico Bétis e à sua má performance no Europeu de futebol foram o principio do fim. Carlos Queiroz, o novo seleccionador, riscou o guardião da lista (apostando primeiro em Quim e logo em Eduardo) apesar de o manter em várias pré-convocatórias. E em Sevilla os técnicos que se foram sucedendo deixaram de confiar no luso. Até à chegada de Pepe Mel, técnico recrutado ao Rayo Vallecano que tomou a imediata decisão de prescindir do homem que defendia penaltys sem luvas. Sem lugar em Sevilla, sem lugar em Portugal, sem lugar na Europa, aos 34 anos a carreira de Ricardo vive à beira do abismo. Poucos se recordam das suas memoráveis exibições durante as campanhas europeias do Boavista. O final da carreira daquele que foi, talvez, o mais polémico guarda-redes internacional português (chegou às 75 internacionalizações) pode estar perto do fim. Só o seu sangue-frio em momentos de alto risco nos permite duvidar. Haverá espaço para a ressurreição do anti-herói português?