No futebol os ciclos são habitualmente curtos. A metamorfose e evolução do jogo impedem que uma balança esteja desiquilibrada demasiado tempo a favor de um só clube e todos os factores externos por detrás de um projecto de sucesso começam a vir ao de cima, mais cedo que tarde. O mérito tremendo deste FC Barcelona tem sido, desde o momento da sua eruoção, a capacidade de fintar o inevitável. Agora que caminham a dez pontos do rival directo na Liga e continuam a demonstrar um cansaço fisico e mental anormal noutras épocas, os criticos começam a apertar o cerco. Mas se algum projecto desportivo contemporâneo merece o beneficio da dúvida, esse é sem dúvida o Pep Team.
De certa forma o projecto de Guardiola é vitima da euforia que ajudou a criar.
Quando leio ou ouço expressões como melhor equipa da história pergunto-me até que ponto da história do futebol conhece quem expressa verdades tão absolutas. O primeiro que devem saber é que há muitas histórias dentro da história e que sempre, de época a época, houve uma “melhor equipa de sempre”, eventualmente o lider da sua geração e que, inevitavelmente, entrou em decadência e entregou o testemunho ao próximo. Inglaterra, Escócia, Uruguai, Áustria, a Hungria, Brasil, Alemanha, Holanda, França, Argentina ou Espanha alguma vez tiveram direito a essa distinção. No universo de clubes os anos de ouro da Juventus, Schalke 04, FK Austria e do Arsenal dos anos 30 pareciam insuperáveis até aparecer o Torino dos anos 40, o Honved, Wolverampton, Dynamo Moscow, Barcelona e Real Madrid dos anos 50, Benfica, Milan, Inter, Manchester United na década seguinte, o reinado de Ajax, Bayern Munchen e Liverpool nos 70 e 80 e a erupção do projecto AC Milan de Sacchi a final dos 80. E apenas ficando-me pelos onzes europeus. É certo que desde meados dos anos 90, nunca mais voltou a surgir uma equipa tão constante como este Barça. E para os de memória curta ou jovem idade, isso parece suficiente para esquecer tudo o que existiu antes. Mal deste Mundo que vive e sobrevive no imediato. E mal também de um clube que eleva as suas vitórias ao máximo e deprime-se à primeira pedra que lhes aparece pelo caminho. O Barcelona sempre sofreu desse complexo de inferioridade, esse erro de timing que lhe impediu ganhar uma Champions durante 40 anos, que a impediu sempre de revalidar o troféu (algo que a maioria das equipas supracitadas sim logrou) e que apesar de ter tido equipas extraordinárias (a dos anos 50 pré-Di Stefano, o Dream Team de Cruyff, o projecto de van Gaal liderado por Rivaldo e o de Rijkaard por Ronaldinho) sempre foi um clube alimentado pela inconstância. Talvez por isso os primeiros sinais de descontentamento venham da própria Cidade Condal.
Os dez pontos de atraso para o Real Madrid são consideráveis tendo em conta que em 20 jogos os merengues apenas perderam 8.
Para os blaugrana já não parece importar que nos cinco jogos disputados este ano com os merengues o balanço seja de 3 vitórias e 2 empates, uma Supertaça e a final da Copa del Rey. Se é certo que tanto em Agosto como no jogo da segunda mão da Copa, o clube de José Mourinho foi francamente melhor, também é verdade que o punch blaugrana continua a desiquilibrar a balança. Mas o péssimo registo fora de casa do Barça tem marcado o destino da sua performance em liga e é nesses campos onde os titulos se ganham e se perdem.
As goleadas, o futebol-arte e a constante habilidade de surpreender já só se encontram nos duelos no Camp Nou, onde a equipa se mantém invencivel. O plantel curto começou a fazer passar a factura do cansaço, a má preparação fisica causou uma série de lesões musculares inoportunas e Leo Messi, o jogador que está por cima do próprio técnico, como já assumiu Guardiola, ao não descansar nem nos jogos a brincar – no seu afã competitivo com Ronaldo e Maradona, têm contribuido para a situação actual.
Piqué perdeu o brio que o tornou no melhor central do Mundo e este ano já passou mais jogos de “castigo” na bancada que nos últimos três anos juntos. Pedro, Iniesta, Busquets, Sanchez, Xavi, Puyol reincidem com regularidade em problemas fisicos, quase todos eles musculares. Villa e Afellay estão fora de combate para o resto do ano e os jovens Cuenca, Tello, Robert e Thiago têm sido providenciais, mas incapazes de inverter a tendência. O Barcelona é uma equipa com mais posse, mas com menos acerto, com mais passes e menos remates, com mais consciência das suas limitações – fisicas, sobretudo – e menos soluções. É um projecto que necessita uma súbita reinvenção que dificilmente chegará e que pode prenunciar um fim de ciclo. Isso não significa que o Barça tenha deixado de ser o melhor, porque no seu estilo de jogo continua a roçar constantemente a excelência. Mas é o seu modelo de jogo que começa a encontrar rivais preparados e com outras opções capazes de dar a volta ao enigma. O Liverpool de Paisley, o Milan de Sacchi ou o Ajax de Michels continuaram a ganhar nas suas versões posteriores com Fagan/Dalglish, Capello e Kovacks. Mas a magia de terem sido parte de um momento único foi-se evaporando.
O Barcelona tem jogadores, condições financeiras e, sobretudo, um timoneiro, capaz de repetir triunfos nos próximos anos com regularidade. E os seus adeptos (onde se inclui a sempre facciosa imprensa nacionalista catalã) deviam ser os primeiros em saber que este é um projecto sólido e coerente. Mas o toque de realismo que muitos temem, essa chamada à realidade que todos os projectos, tarde ou cedo recebem, pode inclusive prolongar a sua lista de grandes feitos. O Real Madrid de Di Stefano, o Benfica de Eusébio, o Liverpool de Keegan, o Milan de van Basten, todos eles perderam ligas e Champions durante o seu reinado. Mas todos mantiveram-se fieis ao seu ideário e quando todos imaginavam o seu final, souberam reaparecer. Cabe a Guardiola decidir se vai optar pelo fatalismo blaugrana ou pela matéria que define as equipas verdadeiramente grandes.
O Real Madrid deve toda a sua fama a um só jogo. O primeiro grande épico europeu visto maioritariamente por quem tinha televisor na Europa Ocidental à época. Sessenta anos depois, mais do que nunca, a mitologia futebolistica é definida inexoravelmente pelo poder da televisão e da curta memória que há se transformou no espelho desta sociedade.
Messi é o melhor jogador da história.
Pudera! Cada lance seu é visto em primeiro, segundo, terceiro plano, em movimento, em 3D, a cores e alta definição. Desliguemos agora o modo irónico antes que pensem que falamos a sério. O génio do argentino é único, mas o seu papel na história do jogo deve muito ao poder das novas tecnologias, da era dos twitters, facebooks, HDs e 3Ds.
A televisão, sempre a televisão, define os padrões de qualidade e superioridade de uns sobre os outros. A mitologia moderna não se baseia na palavra escrita ou perdida no tempo. É escrava da imagem. Messi é escravo da sua própria imagem da mesma forma que o Real Madrid ainda sobrevive no inconsciente humano pela força inequivoca das suas camisolas brancas brilhantes naquela tarde em Glasgow. A televisão provocou um antes e depois na sociedade ocidental e o futebol como espelho perfeito do mundo em mutação viu-se inevitavelmente presa à mesma realidade. A memória deixou de fazer sentido se não for acompanhada de um clip de video subido ao You Tube. Hoje não há ninguém que escreva sobre futebol que não se limite a repetir a mesma ladainha que foi vendida com imagens coladas à lapela. Pelé, Maradona, Cruyff e Di Stefano, o quarteto imenso. Real Madrid, Ajax, Liverpool, Milan, Manchester United e Barcelona, as seis equipas mais emblemáticas nos últimos 60 anos. Consequências directas da popularização do espectro televisivo. A memória deixou de ser algo valorizável. Quem a tinha e quem presenciou outros tempos foi morrendo e o seu testemunho recolhido por uma infinita minoria, ostracizada por aqueles que se agarram à imagem como um jesuita à cruz. Os mitos do passado não televisado deixaram de existir, a história foi despromovida à condição de anedoctário e os heróis a cores suplantaram os a preto e branco da mesma forma que os Messi a 3D parecem mais que os Maradona de planos únicos de camara.
Alfredo Di Stefano, génio que chegou ao final da sua carreira quando a televisão estava apenas a dar os primeiros passos, entrou nesse top 4 quase como por gesto de condescendência.
Nenhum jovem de menos de 40 o cita sem ser por pura imitação snob e pretenciosa e nem mesmo Messi ou Maradona, seus conterrâneos, o têm como referência. Nessa tarde ele manobrou à vontade, como sempre, o jogo colectivo do Real Madrid. Marcou um hat-trick (Puskas marcou um poker) e entrou nesse imaginário televisado por pouco. Quem o viu jogar diz dele maravilhas que nem as imagens seriam suficientes para ilustrar vários clips de best of, desses que fizeram das corridas de Ronaldo, das roletas de Zidane, dos bailados de van Basten ou os remates de Cristiano Ronaldo, imagens de marca internacionais. O hispano-argentino, pouco dado a falsas modéstias, no entanto sempre defendeu que ele nunca foi tão bom como Pedernera e Labruna, os mentores de La Maquina, da qual restam poucas imagens em video. Outros sobreviventes de eras pretéritas falaram da aura de grandeza de Sindelaar, Meazza, Friedenreich, Piola, Finney e Hidegkuti como génio tão brilhantes como os Cruyff, Baggio, Romários, Keegans e van Basten que se seguiram. Mas sem video ninguém acredita que o génio fosse algo real quando os relatos radiofónicos ainda eram a excepção, e não a regra. O futebol homérico, inspirado em descrições e metáforas mitológicas, para a maioria dos espectadores e analistas actuais é puro folclore. Não conta, não existe, não faz sentido.
Esses são os mesmos que vivem sem entender que o impacto do Brasil de 70 deve-se tanto ao génio dos seus jogadores como ao facto da camisola amarela estridente ter sido vista, pela primeira vez, em televisores a cores, debaixo do calor asfixiante do meio-dia mexicano. Os mesmos que exaltam o presente e votam no “flavour of the month” por cima de nomes ilustres que nunca viram ou quiseram ver. Os que reduzem a mitologia futebolistica ao poder da televisão e esquecem-se de que o jogo já era centenário quando os aparelhos começaram a invadir os lares da Europa. Acreditar que o génio, a arte, o talento só existem porque passou na televisão é tão néscio como pensar que qualquer tempo pretérito é melhor que o actual. Entre esses dois mundos, essas duas filosofias, encontraremos certamente a virtude. O problema é que muito poucos se dão realmente ao trabalho de a procurar.
Puskas, Czibor e Kockis. Quando se perdem horas a mergulhar nos dias de glórias da Aranycsapat essa santa trindade surge a cada frame, em cada relato, em cada escrito. Mas apesar de geniais e inimitáveis, o trio mágico de magiares pertence realmente a um segundo plano na mitologia da equipa centro-europeia mais emblemática da história. Na cinzenta tarde de 23 de Novembro, no imperial Wembley, a história foi escrita pelo húngaro silencioso, o génio de um homem que jogava como vivia, com o arrojo de um impressionista dos relvados.
Estavam mais de 100 mil pessoas naquela tarde no Wembley, rainha recém-coroada incluida.
Os nervos apoderaram-se da esquadra húngara, habituada aos seus festins goleadores, quando começaram a vislumbrar a imensidão do estádio mais famoso do mundo. No túnel que antecedia a entrada em campo, húngaros e ingleses mediam-se com o olhar. Numa era sem tecnologias de ponta nem se conheciam sequer por fotos, marcavam-se pelos números nas camisolas e pelas sensações que iam in crescendo naqueles momentos de tensão. A sobranceira inglesa era visível e os habituais sorrisos daquele que se sente superior, até no respirar, acabavam por funcionar como uma provocação intencional. No meio da nervoseira, no meio da tensão, a tranquilidade do número 9 era assustadora. Tinha passado horas a falar com o seu mentor, o emocional Gustav Sebes, e sabia qual seria o seu papel naquela tarde. O de protagonista.
Hidegkuti estava destinado a ser uma lenda. Aquele foi, mais do que qualquer outro, o seu dia. O dia em que reinventou futebol.
O jovem extremo do MTK Budapest há muitos anos que era uma referência do futebol magiar do pós-guerra. Como extremo era talentoso e ao serviço do clube da capital tornou-se num dos mais influentes jogadores dos princípios dos anos 50. Mas na selecção nacional, orientada por Sebes, era uma figura secundária porque as alas estavam entregues à dupla Czibor e Kockis e não parecia haver espaço para ele no circulo de estrelas.
Em vésperas das Olimpiadas de 52, Sebes comunicou-lhe que seria suplente de Palotás, o seu colega dianteiro do MTK, e durante os primeiros jogos do torneio, o extremo limitou-se a seguir o jogo do banco. Mas nas meias-finais o seleccionador mudou de ideias e lançou-o frente aos suecos que acabaram trucidados por um 6-1 em que Nandor acabou por ser o protagonista. De tal forma que repetiu a exibição na final (ganha por 2-0 à Jugoslávia) e nunca mais abandonou o onze. O fiel aluno do mentor Marton Bukovi no MTK tornou-se igualmente no homem de confiança de Sebes que preparou, para ele, um lugar especial na história.
Aos 23 segundos de jogo a bola chegou aos pés de Hidegkuti pela primeira vez.
E o Wembley sentiu a diferença. O número 9 recuou no terreno da sua posição inicial e deixou um imenso vazio humano entre ele e a defesa inglesa. Billy Wright e Harry Johnston, os dois centrais escalados por Walter Winterbottom (e considerados então como os melhores do Mundo) ficaram sem saber o que fazer. Se subir no terreno e acompanhar o avançado centro. Ou ficar à espera.
Vinte segundos depois a bola estava nas redes, depois de Hidegkuti, com todo o espaço do mundo devido à hesitação dos centrais, ter rasgado a arrogância imperial britânica com um disparo colocado.
Despertos do choque, os ingleses tentaram reagir. Enquanto Wright ficou de olho em Puskas, o único nome conhecido dos locais, Johnston seguiu Hidedkuti. Mas ao fazê-lo rapidamente deixou atrás o espaço por onde o magiar colocou bola atrás de bola e por onde apareceram os velozes Czibor e Kocskis, quase num mano a mano com o guarda-redes inglês, Gil Merrick Num só movimento em campo Sebes - e o seu pupilo - tinham destroçado por completo 20 anos de WM, a mutação táctica de Herbert Chapman que moldou o futebol inglês e tornou-se no santo e senha do jogo britânico. Não foi a primeira vez que os ingleses foram colocados em cheque. Mas foi a definitiva.
O modelo de jogo europeu seguiu fiel ao ideário de Jimmy Hogan, o pai do futebol continental, e ao seu 2-3-5. Os russos do Dynamo Moskva já tinham ensaiado a sua versão de jogo de toque horizontal na sua visita a Highbury e tanto o Wunderteam austríaco como o Der Blau Elf alemão tinham demonstrado, nos anos 30, que o WM não era uma vaca sagrada no universo táctico.
Mas Hidegkuti levou as coisas para outro patamar. À medida que Johnston se ia dando conta que era incapaz de aguentar o ritmo louco de um jogador à solta, sem posição fixa, o magiar foi tendo mais tempo a bola nos pés. Começou a jogar com os alas, começou a criar superioridade no meio-campo e, sobretudo, começou a encontrar espaços para ele mesmo tentar o golo. Aos 60 minutos de jogo já tinha completado o seu primeiro hat-trick com a camisola encarnada. Mais importante que isso, a sua movimentação no campo tinha permitido criar os espaços para Puskas apontar outros dois tentos, num dos quais depois de destroçar o implacável mas impotente Wright com um primoroso gesto técnico só ao alcance dos génios. Os ingleses mal tocaram a bola mas, mesmo assim, ainda apontaram três golos antes dos húngaros fecharem a contagem com um disparo sem piedade de Bozkik. No final dos 90 minutos todos tinham a sensação de que tinham assistido à história em directo.
A metamorfose do Aranycsapat centrou-se na figura de Hidegkuti como nunca um técnico tinha utilizado um jogador como ferramenta táctica.
As suas características de jogo, a excelente visão aliada a um ritmo possante, tornavam-no no falso nove ideal. 60 anos antes de Guardiola decidir que Leo Messi tinha tudo para romper com o ideário da defesa de 4, o húngaro redefiniu uma posição, até então considerada sagrada.
A Hungria de Sebes apresentou-se em Wembley com um falso 2-3-5. Na realidade o quinteto ofensivo resumia-se a dois extremos (Czibor e Budai), dois avançados interiores (Puskas e Kockis) e um quinto homem que funcionava como um Joker, ora equilibrando o meio-campo, ora criando superioridade no ataque, sem posição fixa, procurando o espaço dos extremos, combinando com os interiores e, acima de tudo, sempre com um olhar nas redes rivais.
Do 2-3-5 Sebes começou a idear os princípios que se converteriam rapidamente nos que moldariam o Futebol Total holandês apostando num 2-3-3-2 extremamente equilibrado, apto tanto para defender como para atacar como um colectivo. Com os extremos bem abertos, os interiores mais recuados no terreno - permitindo o recuar de dois médios laterais para a defesa - e um falso nove a jogar entre linhas numa posição que nos anos seguintes seria celebrizada por Di Stefano, Pelé, Eusébio, Charlton ou Cruyff. E hoje, como não, o génio de Messi.
Pela primeira vez em largos anos a táctica foi o elemento diferencial na história do jogo. O 2-3-3-2 húngaro, encarnado como ninguém por Hidegkuti, deitou a base para o 4-2-4 brasileiro, o 4-4-2 britânico e o 3-4-3 holandês. De tal forma foi o impacto do modelo de jogo hungaro que seis meses depois, no Nepstadion de Budapeste, os magiares confirmaram a superioridade da sua ideia goleando, outra vez, e por uns claros 7-1, a armada inglesa. A vitória em Wembley só surpreendeu os isolacionistas ingleses e quando os húngaros chegaram à Suiça, para disputar o Mundial, ninguém apostava noutro cavalo ganhador. Hidegkuti, como sempre, foi fundamental, apontando quatro golos ao longo do torneio - e realizando sete assistências - incluindo o decisivo tento nas tensas meias-finais contra o campeão Uruguai. Mas na final os alemães - goleados por 8-3 na fase de grupos - tinham aprendido a lição. Sempre que o mágico número 9 recebia a bola, naquela chuvosa tarde de Berna, o meio-campo (e não os defesas) apertava uma marcação à zona pouco usual para a época. O futebol dos húngaros ressentiu-se e o Milagre de Berna significou o fim da hegemonia húngara. No final do torneio o clima de crispação em Budapeste e a avançada idade da maioria dos jogadores da equipa, já a entrar na casa dos 30, deixou evidente que os melhores dias tinham passado. Dois anos depois, e aproveitando uma digressão pelo estrangeiro, a maioria dos jogadores da Aranycsapat desertou para Espanha e Itália. O seu maestro no relvado foi a excepção. Preferiu manter-se ao lado da família do que aceitar os convites que chegavam de Madrid, Barcelona e Milão, onde brilharam alguns dos seus colegas de selecção.
De menino pobre num dos bairros sociais de Budapeste a ícone nacional, a vida de Hidegkuti transformou-se outra vez quando levou a sua inteligência no terreno de jogo para o banco de suplente. Começou em pequenos clubes locais, longe do olhar atento das autoridades da federação - que nunca perdoaram à sua mágica geração a debacle de Berna - e acabou por brilhar na Fiorentina, vencendo em 1961 a primeira edição da Taça das Taças. Depois da experiência italiana voltou à Hungria e levou o modesto Gyori ETO da segunda divisão ao titulo nacional e - mais importante ainda - à meia-final da Taça dos Campeões Europeus com um conjunto sem estrelas e que só caiu diante do Benfica de Eusébio e companhia. Uma década depois, farto da intromissão das autoridades governamentais na gestão desportiva húngara, o mítico Nandor conseguiu um passaporte para viajar até ao Egipto onde se tornou no pai do moderno futebol faraónico, aplicando a base do 5-3-2 que ainda hoje é santo e senha no futebol local e que se tornou no modelo que levou a selecção egípcia a dominar o futebol continental na última década. Uma última lição de um homem que mudou a história do futebol debaixo do nariz dos mesmos homens que se vangloriavam do seu invento.
Não deixa de ser curioso (ou preocupante) a infima quantidade de obras escritas que se debruçam sobre um desporto mais que centenário e um fenómeno global que hoje, mais do que nunca, é uma ferramente fundamental para perceber o Mundo. No entanto, entre as (insuficientes) grandes obras que versam sobre a magia que desprende o beautiful game não há um só livro que possa sequer ombrear com aquele que corre o sério risco de se tornar numa verdadeira biblia sagrada do jogo. Com Inverting the Pyramid o inglês Jonathan Wilson conseguiu muito mais do que um livro. Transformou a alma do futebol e plasmou-a no papel como da Vinci reinventou a pintura e Borges permitiu a todos sonhar um pouco mais...
Conta Jonathan Wilson que a ideia para Inverting the Pyramid surgiu num bar do Bairro Alto em Lisboa depois de uma acalorada discussão com os adeptos ingleses que acompanhou para presenciar o França-Inglaterra do Euro 2004. O jogo que definiu a classe dos gauleses e a falta de punch da Inglaterra de Erikson deixou o jovem escriba a reflectir sobre a verdadeira essência do jogo que o tinha capturado desde pequenos na cinzenta Sunderland. Colocou mãos à obra e como Tolstoi ou Miguel Ângelo, desafiou todas as leis.
Inverting the Pyramid é mais do que um livro, é um ser com vida própria.
Wilson analisa a evolução moral e estética do jogo através das suas metamorfoses tácticas. O titulo faz referência à mutação vivida do 2-3-5 do futebol desorganizado de principios de século ao 5-3-2 que algumas equipas, nomeadamente a Argentina de Billardo, aplicaram nos últimos anos como último recurso evolutivo num jogo que se dedicou a encontrar formas de anular a falta de ordem dos seus primórdios. Mas se essa mutação, factual e indismentível, é a base do trabalho, é no miolo das páginas que se encontra a verdadeira importância de uma obra que vale mais do que um manual de bolso para qualquer treinador de bancada.
A táctica, disposição das peças no tabuleiro, é o pretexto ideal para mergulhar nos ritmos, na evolução fisica e mental, na abordagem dos aspectos psicológicos e na emergência de nomes que a história preferiu esquecer, reciclando-se como lhe convém. O autor, hoje o consagrado colunista do The Guardian e editor do projecto online The Blizzard, utiliza a sua prosa eximia para chegar ao osso do esqueleto futebolistico quando a maioria dos autores se ficam pela superficie. Herrera, Michels, Lobanovsky, Cruyff e Chapman todos conhecem. Maslov, Zubeldía, Arkadiev ou Hogan nem por isso. E é nessas almas que o autor encarna a evolução real do jogo. Essa mutação em que a táctica foi forçada a acompanhar a sociedade contemporânea.
É dificil não ler Wilson - nesta ou outras obras - e não entender que ele é, hoje, provavelmente o autor mais esclarecido sobre os moldes em que se move e moveu o jogo durante o último século. A compreensão táctica é fascinante e certeira mas o estudo histórico e social transforma-se no verdadeiro vector da obra. Desde os dias em que os ingleses ainda exportavam o seu modelo de jogo até à formação de uma cultura intelectual futebolistica no centro de Europa que encontrou caminho rumo à América Latina e potenciou uma nova alma, mais genuina, somos convidados a conhecer épocas, personagens, momentos irrepetiveis.
O enfoque é dado, com naturalidade, aos elementos mais preponderantes do jogo de hoje. O pressing, erradamente atribuido ao Lobanovsky, o futebol total que a maioria dos estudiosos ainda acreditam ser obra e graça de Michels, o futebol directo da escola inglesa vs o futebol de passe da escola europeia, uma divisão que remonta a muito antes do que se possa imaginar e, inevitavelmente, a filosofia do não há nada mais a inventar de que tantos técnicos modernos se queixam.
Na evolução táctica do futebol o profissionalismo, a gritante melhoria das condições de treino, da alimentação e do próprio papel do jogador dentro de um desporto que passou do proletariado e colégios britânicos para as multinacionais e organismos internacionais há espaço para os acertos e os erros, as metamorfoses e e os passos atrás. Da magia de uma táctica que dependia sobretudo do individuo (como o Brasil de 70) para a cerebralidade de outra (como o Dynamo de Lobanovsky) que quase deixa de contar com o peso do individuo face ao poder colectivo, entendemos o porquê de ser tão legitimo falar de "futebóis" em lugar de "futebol".
Wilson desmonta teorias antigas, credos vigentes e fantasias assumidas por todos como realidades e demonstra que o jogo é hoje tão diverso como foi no passado e que as suas respectivas evoluções foram mais producto do momento do que, propriamente, inventos individuais absolutos. O futebol como modalidade social e colectiva ganha mais preponderância do que nunca numa obra que utiliza o individuo (e o seu génio) apenas como veículo narrativo, como se fosse a veia que faz circular o sangue por todo o corpo.
Ler Inverting the Pyramid é mais do que aprender o que levou o Brasil a imitar um 4-3-3 que já se utilizava anos antes na União Soviética ou pensar que a Inglaterra, o país que mais se agarrou à ideia dos extremos clássicos foi também o primeiro que acabou com eles de forma inequivoca. É olhar para o mapa mundi e saber ler como o único desporto que é capaz de parar o Mundo por completo cresceu, ganhou pernas e aprendeu a andar sozinho. A obra de Wilson, resumo perfeito do que é sentir as palpitações de uma qualquer final nos derradeiros instantes, agarra pelas entranhas o leitor e não o larga até que este chegue à conclusão que Sócrates estava certo. Cem anos depois continuamos a presumir muito e a saber muito pouco sobre o beautiful game...
Foram só três jogos, a frivolidade de 270 minutos. Mas foram suficientes para transformar a pacata vida de um dos mais históricos e modestos clubes ingleses num corropio mediático sem igual. Durante o Outono de 1975 o melhor jogador britânico de sempre parou em Stockport antes de arrancar a sua peregrinação americana. Foram só três jogos, mas o adeus de George Best ao futebol inglês por ali nunca será esquecido.
19 minutos. Não precisou de mais.
A bola escorreu pelo terreno de jogo até lhe chegar aos pés, lá bem no flanco esquerdo. Um drible e um desarme e a bola para canto. O terceiro provocado por Best. O terceiro marcado por Best. Mas desta vez a estratégia funcionou. O irlandês tinha tentado uma e outra vez colocar a bola directa na baliza. À terceira foi de vez. E o delirio tomou conta de Edgeley.
George Best chegou ao Stockport County com 29 anos. Era já seguramente o melhor jogador britânico da história. Mas também era um jogador acabado, a anos-luz dos seus dias de glória um pouco mais a norte, em Manchester. Do jovem que tinha chegado com apenas 15 anos da Irlanda depois de Bob Bishop, o olheiro de confiança de sir Matt Busby o ter acordado a meio da noite para falar-lhe de um génio, pouco sobrava. Best jogou dez anos no Manchester United e fez parte da celebre Holy Trinity com Law e Charlton que ajudou a redefinir o clube, especialmente depois do desastre de Munique. O jovem, que tinha apenas 10 anos quando o amaldiçado avião com os Busby Babes se despenhou em Munique, tinha-se transformado numa lenda viva, no primeiro sex-symbol e icone de moda associado ao beautiful game. Best foi para o futebol o que os Beatles foram para a música. Mas tal como a banda de Lennon e companhia, os seus momentos de glória ficaram presos à década de 60. Desde a sua estreia como profissional em 1963, com 17 anos, até ao seu triste e ágrio adeus, em conflicto directo com Tommy Docherty, uma década depois, Best ganhou tudo o que havia para ganhar. A final de Wembley contra o Benfica, com um golo seu a desbloquear o encontro no prolongamento, confirmou-o como o mais genial dos futebolistas europeus de então. Mas foi também o inicio do seu fim.
De regresso a casa a geração de veteranos de Busby, incluindo o próprio treinador, sentira ter cumprido uma promessa, um dever com os mortos de Munique. Best queria mais, queria continuar a vencer, establecer uma ditadura europeia como tinha visto fazer os jogadores do Real Madrid. Mas nem Charlton, nem Law, nem Stiles nem Busby tinham forças para ir mais além. Durante cinco anos o clube não voltou a vencer um único troféu e Best entregou-se à noite, às mulheres e, sobretudo, ao alcool.
Quando chegou a Stockport County ainda era um jogador na flor de idade. Mas o corpo já não o acompanhava e a mente, essa, parecia sempre estar noutro lado. Minuto 55. Um sprint louco de mais de trinta metros em que para trás vão ficando seis jogadores do Swansea e a bola novamente nas redes contrárias. "Simply the Best" podia ler-se em vários cartazes feitos à mão pelas adolescentes loucas pela estrela cadente. Cadente mas capaz de arrastar multidões. Aos habituais 2 mil espectadores semanais do clube juntaram-se 10 mil mais só para ver o irlandês. Nesses primeiros 90 minutos o festival acabou com um majestoso gesto acrobático que levou à êxtase os adeptos locais.
Esse foi o primeiro de três jogos de Best pelo clube.
Depois de dois empréstimos pelo Manchester United, com quem o irlandês tinha cortado qualquer relação, a experiência em Stockport foi um prelúdio do que viria a seguir. Sem clube o astro foi persuadido pelo técnico do conjunto local, Roy Chapman, a assinar com o Stockport um contrato de jogo a jogo, muito na moda então no futebol inglês junto dos jogadores mais veteranos. Quinze dias depois (Best só alinhava nos jogos em casa o que significava um profundo lucro para as arcas do modesto clube) o irlandês voltou a ser decisivo ao apontar, num pontapé de bicicleta, o golo do empate a 2 no duelo contra o Derby County. Antes do Natal, a 22 de Dezembro, o derradeiro encontro de azul e branco contra o Stunthorp. Vitória por 1-0, sem golo de Best desta vez, mas com um par de arrancadas fenomenais que eram a sua imagem de marca. Ao voltar a casa provavelmente os adeptos esperavam reencontrar-se com Best no Boxing Day mas o irlandês voltou a ter uma recaída natalicia e o clube preferiu não arriscar a pagar somas astronómicas por jogo se o rendimento estava em causa. Best jogou então outros três jogos na sua Irlanda natal pelo Cork City antes de partir para os Estados Unidos onde se tornou num dos maiores idolos da MLS ao serviço do Los Angeles Aztecs, Fort Lauderdale Strikers e San Jose Earthquakes. Uma experiência intercalada por um ano e meio ao serviço do Fulham londrino onde os seus problemas com o alcool e as drogas tornaram-se ainda mais evidentes. A carreira do génio irlandês já estava acabada quando chegou a Stockport mas prolongou-se ainda mais por uma década. O clube azul e branco lutou pela salvação até ao último dia. No final a vitória frente ao Swansea, com esse hat-trick de Best, foi fundamental porque ambos os clubes acabaram empatados em pontos e a diferença entre ambos acabou por ser esse encontro a finais de Novembro. Com marca do génio.
Depois da sua morte, em 2005, o mundo começou a reconciliar-se com o fenómeno de Best. Muito antes que Cristiano Ronaldo, David Beckham ou até mesmo Eric Cantona, o irlandês de Belfast foi o primeiro jogador simbólico do Manchester United a unir futebol, moda, sex-appeal e irreverência debaixo de uma só camisola, a mitica número 7. Se Charlton era o preferido do técnico, Law o homem que desbloqueava os jogos mais dificeis, a magia estava toda nas botas de um jogador que podia ter sido o maior futebolista da história, talvez noutro tempo, noutro lugar, noutra era...
Desde aquela tarde quente de 1958 que o futebol argentino vive numa encruzilhada moral sem solução à vista. O fantasma de La Nuestra continua omnipresente a cada mandato e nem profetas e messias são capazes de criar uma sensação de continuidade e estilo no jogo da albiceleste. A Argentina sofreu na carne a ousadia de Zubeldía e Billardo e a utopia de Menotti e Bielsa mas os hinchas das pampas continuam sem saber a que joga a sua amada Albi.
Na ditadura da sorte pouco há a fazer.
Um penalty acabou com o billardismo quando este já cheirava a mofo. Outro penalty impediu Pekerman de escapar com vida a um dos jogos mais tristes de que há memória da albiceleste. E outro penalty, o de Tevez, acabou pacientemente com o sofrimentos dos hinchas argentinos. Porque, como o abate de um animal moribundo, esta equipa da Argentina precisava que a deixassem partir em paz. A derrota menos dolorosa permitiu a Messi sair aplaudido, a Sergio Batista continuar com o posto e aos argentinos a continuarem a sua própria via crucis moral. Nem no seu próprio torneio se livram desse fantasma de mais de 50 anos.
A sociedade argentina é, por defeito, a mais freudiana de todas as sociedades. Um dos mais belos e mais fascinantes países do mundo, a Argentina é também um quebra-cabeças sem solução, um desenho de Mafalda sem resposta. E o seu futebol está deitado no divã da moralidade há meio século. Passa da depressão à euforia de forma vertiginosa e muitas vezes encontramo-lo submergido num estado quase catatónico. Passou do estupor moral da brutalidade à admiração colectiva de um futebol que se assumia de esquerda e de todos. Conceitos misturados como só os argentinos são capazes. De tudo, menos de responder a essa imensa dúvida moral e existencial que os azota há tanto tempo. A invenção do Cinco, esse sacrificado jogador que a partir de então teve de carregar o peso da organização da selecção encontrou o oposto na glorificação do Enganche, do Diez, o artista, o último pantomino. Uma posição que só existe, de forma pura, no vocabulário futebolístico das pampas desde os dias de Onega até à morte lenta e dolorosa do mítico Riquelme. Nesse Mundial de 1966 a Argentina descobriu o 5 (Rattin) e o 10 (Onega) mas, sobretudo, percebeu que o sistema e o individuo viviam (e viveriam) uma relação de amor ódio. 40 anos depois na Alemanha verificou-se, uma vez mais, o mesmo confronto moral. Pekerman vencia, estava perto de eliminar a anfitriã, e no momento da dúvida preferiu retirar o 10 (Riquelme) e lançar um segundo 5 (Cambiasso) para acompanhar o titular (Mascherano). Foi o confirmar da morte do sistema histórico que Maradona enterrou ao tentar transformar Lionel Messi num falso Enganche, e que Batista confirmou ao lançar o genial Javier Pastore para o anonimato do banco. Com uma equipa partida os argentinos olhavam para o herdeiro de Onega, Ardilles e Riquelme e desesperavam. A que joga realmente a Argentina?
15 de Junho de 1958. O dia que mudou o rosto do futebol argentino. Ponto final.
Nessa gloriosa tarde de sol o mito de La Nuestra chegou ao fim debaixo de uma estrepitosa goleada (6-1) imposta pela modesta Checoslováquia. Os argentinos chegaram à Suécia como campeões continentais, sem os seus "angeles de cara negra" mas com a sensação de superioridade que habitualmente destrói as grandes equipas. Foi o seu pior Mundial de sempre, rematado naquela tarde por um combinado checo que nem se apurou para a fase seguinte. Quando voltaram a casa os jogadores argentinos sofreram humilhação após humilhação e o país renegou a herança cultural da Nuestra, a mentalidade de futebol de ataque que arrancou na década de 20 e que se manteve vigente durante quase três décadas.
Com o final da era de ouro chegou a época das trevas. Osvaldo Zubeldía transformou-se no Fausto do futebol argentino. Vendeu a alma ao diabo, moldou o seu Estudiantes de la Plata numa máquina de vencer e destroçou por completo o ideário artístico dos albicelestes. Definiu o 4-4-2 como táctica base, com o 5 e 10 no miolo como elementos chave na balança mas, sobretudo, deu ao jogo dos argentinos esse carácter de dureza e violência que ainda hoje subsiste. As alfinetadas dos defesas, as entradas dos médios centros e a falta de escrúpulos dos dianteiros valeram vitórias mas, sobretudo, criaram escola. A Argentina nunca mais se esqueceu que há uma forma feia de ganhar e mesmo quando surgiu o Hurácan de Menotti, o profeta da beleza, houve quem renegasse do ideário ofensivo e socialista do mítico técnico de Rosário. Menotti, génio como poucos, defendeu um regresso às origens mas pelo caminho pescou em Zubeldía algumas das ideias que mudaram o rosto, definitivamente, do futebol albiceleste. A sua selecção de 1978 era uma verdadeira mistura entre o talento (e com Maradona de fora, bem longe do ideário corajoso do Brasil de 58 entregue a outro menino genial, Pelé) e a força bruta. Um ideário que podia ser socialista mas que se integrou à perfeição no ritmo dictatorial de Videla, nos treinos intensos, nas vitaminas tomadas até à exaustão e nas vitórias polémicas que levaram a equipa da casa até ao seu primeiro titulo Mundial.
Menotti devolveu o orgulho estético aos argentinos mas nunca soube retirar essa picardia zubeldiana. O fracasso do Mundial de 82, com Maradona perdido no esquema do seleccionador da mesma forma que Messi não se encontra cómodo hoje, abriu portas a uma nova mutação genético, um regresso a um passado recente. Com Billardo chegou a cara mais suja do jogo da albiceleste, o lado mais provocador e violento do verdadeiro herdeiro de Zubeldía. O homem que inventou o 3-5-2 transformou o jogo numa batalha, os seus jogadores em legionários e o seu maior talento individual, num guerreiro de proporções mitológicas. Maradona não venceu sozinho o Mundial de 1986 porque ao seu lado havia uma máquina bem oleada para o proteger, mas foi o único que soube transmitir um pouco de perfume futebolístico a um país que perdia rapidamente qualquer traço de conexão com o futebol arte que sempre se aplaudiu na cancha. Quatro anos depois a Argentina foi ainda mais violenta e ainda mais decepcionante, agora que Maradona, também ele, tinha perdido a sua faceta artística. Billardo foi-se mas Basile continuou o seu legado e nem Bielsa, esse louco, soube romper com o malefício ideológico. O seu 3-5-2 era diferente do utilizado pelo Narigón, entregue à classe dos seus melhores artistas, mas até estes tinham perdido a magia. Quando Riquelme, desaparecido em Berlim, foi substituído e no seu lugar não entrou Saviola nem Messi (nenhum deles um Enganche puro) percebeu-se que a Argentina tinha chegado a uma encruzilhada final.
Desde então o problema deixou de ser o sistema táctico (que passou do 4-2-3-1 ao 4-1-3-2 ao 4-3-3), do lote de jogadores ou do seleccionador de turno. Batista não sabe a que joga a sua Argentina tanto como qualquer hincha. É um problema mental que asfixia o futebol de um país perdido em mil e um problemas do qual o futebol é apenas mero espelho. Contar com a suma individualidade, como é Messi, não é suficiente porque há muito que para os argentinos, ao contrário dos brasileiros, o sistema se tornou mais importante do que o homem. Quando enterrou o espírito da La Nuestra a Argentina enterrou os seus Messis se estes não se vissem rodeados de um esquema que atirasse para o campo a garra, violência e determinação dessa era pós-zubeldiana. Ardilles encontrou-o em 1978, nesse acosso constante que foi o Mundial videliano, e Maradona sentiu-o a cada passo que dava pelos relvados do México. Hoje sem sistema, sem rumo e, sobretudo, sem saber a que joga, a Argentina continua a ser uma presa fácil. O futebol da individualidade há muito que sucumbiu ao futebol colectivo. Messi sabe-o melhor que ninguém porque o seu melhor rosto vê-se quando joga na equipa que melhor sabe trabalhar o espírito corporativo do jogo. A sul do rio La Plata a longa sessão no divã continuará, talvez por mais 100 anos de solidão...
Nas sondagens e listados oficiais sobre os grandes treinadores da história ele nunca aparece. Não surpreende. O desconhecimento na era da globalização é maior do que possa imaginar e o nome de Maslov continua a ser um mistério para muitos. O homem que definiu o futebol contemporâneo morreu sem nunca ter passado pelo passeio da fama, mas 50 anos depois o seu legado é cada vez mais evidente. Talvez nunca tenha havido um treinador tão influente na história do jogo...
A última vez dói sempre mais. A de Viktor Maslov como treinador do Dynamo Kiev deve ter doido mais ainda.
Narra Jonathan Wilson no seu essencial Inverting the Pyramid, que o técnico moscovito foi despedido no hotel de concentração do Dynamo Kiev aquando de uma viagem a Moscovo para defrontar o Spartak local. No final do jogo a equipa saiu do estádio num autocarro rumo ao aeroporto. Ninguém falava. A meio caminho o autocarro parou diante de uma estação de metro. Maslov foi convidado a sair. Baixou pesarosamente as escadas e acenou aos seus jogadores. Chorou. Nunca o tinham visto chorar.
A cena é real e significou um ponto final na carreira do mais influente treinador do futebol moderno ao serviço do clube que serviu de balão de ensaio para os seus esquemas futebolísticos. Maslov ainda viria a vencer uma Taça da URSS com o Torpedo de Moscovo, dois anos depois, e um campeonato com os underdogs arménios Ararat Yerevan, mas a saúde débil já o minava por dentro. Em 1976 morreu na mais absoluta mediocridade e ninguém se lembrou dele durante anos até que alguns estudiosos começaram a analisar o jogo de trás para a frente e descobriram que este treinador a quem os jogadores chamavam carinhosamente de "Avôzinho", como é tão comum na Rússia a quem se tem um imenso respeito, tinha sido o mentor das grandes metamorfoses tácticas do beautiful game.
Maslov era, de certa forma, o oposto moral e emocional do seu sucessor em Kiev, o mítico Valery Lobanovsky. O que o ucraniano fez, partindo do principio cientifico, já Maslov o fazia, partindo do sentido comum que sempre orientou a sua carreira. Um técnico diferente a todos os niveis, o moscovita era conhecido por ser um dos entusiastas do modelo de auto-gestão. Consultava os jogadores para tudo e por várias vezes viu o capitão de equipa recusar que um jogador fosse substituído quando ele já tinha indicado ao suplente que se preparasse para entrar. Anos mais tarde, depois das acusações de falta de disciplina, os seus próprios jogadores vieram a público defendê-lo. Tratava-se apenas de uma mensagem que a equipa em campo recebia e respondia com a tranquilidade de que o jogo se ia resolver com os onze titulares. E sempre foi assim. Os seus registos em Kiev foram históricos e apesar da influência que detinha junto do Partido Comunista Ucraniano - que lhe permitia, entre outras coisas, recrutar vários jogadores de clubes mais pequenos com benefícios estatais - a forma como montou uma equipa capaz de desafiar o poder moscovita transformou para sempre o futebol soviético e estabeleceu as bases do que viria a ser o longevo mandato de Lobanovsky.
Pressing. Marcação à Zona. 4-4-2.
Palavras chave no vocabulário futebolístico de hoje mas que só existem no vocabulário desportivo a partir do momento em que Maslov as passa de um ideário em papel para o terreno de jogo. Durante os dez anos que medeiam a sua viagem ao Mundial da Suécia de 1958 e o zénite da sua equipa de Kiev, o técnico colocou em prática os conceitos que hoje fazem parte da bíblia de qualquer treinador.
Quando começou a treinar o Torpedo de Moscovo (na altura liderado pela estrela soviética Eduard Streltsov) decidiu aplicar o ideário táctico que viu na espantosa equipa do Brasil de Zezé Moreira. Entendendo, como poucos na altura, que o sucesso brasileiro dependeu, mais do que Garrincha, Pelé e Vavá, no jogo de Didi e no posicionamento de Zagallo. Ao voltar a Moscovo começou a ensaiar um jogo de toque no meio campo abandonando progressivamente o ritmo vertiginoso do WM. O 4-2-4 foi o seu primeiro sistema táctico - um caso de precocidade na Europa - mas foi, sobretudo, o seu conceito de pressing, que revolucionou por completo a sua forma de analisar o jogo. Observando o espaço que os defensores deixavam a Streltsov, Garrincha ou Kopa, começou a trabalhar o treino de pressão. O seu quarteto defensivo, mais do que esperar pelos rivais, tinha instruções de avançar sobre eles, reduzindo o tempo de manobra do contrário. Com isso melhorou significativamente os registos de golos sofridos do conjunto moscovita, antecipando em muitas ocasiões oportunidades claras de golo. O seu sistema de pressing provocou um aceleramento do jogo e obrigou, por outro lado, a ter um meio-campo capaz de temporizar e controlar os registos de posse de bola com discrição. Maslov procurou durante toda a sua carreira a versão soviética de Didi, o homem que parava o jogo do Brasil quando todos aceleravam. No duro e rígido futebol soviético a sua missão era complicada e essa mutação táctica levou muitas vezes a situações em que a sua defesa se via forçosamente descompensada.
Em 1964, depois de oito anos em Moscovo, aceitou o desafio de orientar o Dynamo de Kiev ucraniano. Aí encontrou as armas que precisava para colocar em prática o sistema que vinha idealizando há muito. Para tal teve de livrar-se de algumas das estrelas da companhia (entre as quais o aclamado Valery Lobanovsky) e a principio a sua presença sofreu com a eterna desconfiança dos ucranianos face a um treinador que tinha feito toda a sua vida desportiva em Moscovo. Mas rapidamente a relação entre técnico e equipa atingiu níveis de imensa cumplicidade e quando Maslov começou a mexer as peças do xadrez, a equipa seguiu-o entusiasticamente. No seu primeiro ano abandonou o 4-2-4 brasileiro e inventou o que hoje conhecemos como 4-4-2. Dois anos antes dos Wingless Wonders de Alf Ramsey, o russo abdicou do jogo de alas, a quem acusava de não terem critério para funcionar no jogo colectivo, e colocou um playmaker puro (o seu Didi) atrás do duo de pontas de lança com três homens no apoio directo atrás de si. Para aprofundar ainda mais o seu sistema de pressing (que apurava com sessões de treino intensas, inusuais à época) começou a desenvolver um sistema de marcação à zona que obrigava os jogadores a estarem atentos ao espaço e não ao homem. Quando um jogador passava pelo seu marcador, para evitar um desgaste físico desnecessário e um desajuste táctico, este simplesmente deixava-o para o homem seguinte. A conjugação do pressing a meio campo, do trabalho de marcação implacável e, sobretudo, da temporização do jogo com a bola no pé, encurtando o espaço, Maslov definiu os conceitos que Rinus Michels adaptaria no seu Ajax e que entrariam no vocabulário comum como "Futebol Total". Com o seu Dynamo Kiev logrou os melhores registos, vencendo duas ligas soviéticas e desafiando os potentados europeus, apesar de ter caído, no seu melhor ano, frente ao Celtic de Glasgow que se sagraria campeão europeu depois de um duplo encontro intenso.
Se na marcação à zona o conceito foi emprestado (e aperfeiçoado do exemplo brasileiro) já a pressão alta e o 4-4-2 são exclusivos absolutos do homem que não foi entendido pelo seu tempo mas que, a médio prazo, abriu o caminho para a evolução táctica que o futebol iria forçosamente seguir. O ritmo de jogo e a ocupação dos espaço, hoje verdadeiro obsessão, era algo tido como supérfluo até que Maslov entendeu todo o seu potencial. A sua influência só se pode comparar a Jimmy Hogan e Herbert Chapman, definidores dos modelos de jogo continentais e britânicos nos anos 20. Enquanto o mundo se debate entre Mourinho e Guardiola, Sacchi e Cruyff, Menotti e Michels, Ramsey, Shankly, Busby e companhia, a verdade é que todos eles são um pouco melhor treinadores porque um dia o "Avôzinho" decidiu inventar o futebol moderno!
Faltavam poucos segundos para acabar. Um livre envenenado de Danny Murphy encontrou a cabeça de Geli, perdido no meio de tantos jogadores. Não é assim que costumam acabar os contos de fadas mas foi assim que chegou a fim a final europeia mais empolgado da última década. Dez anos depois o Deportivo de Alavés milita na 2º B espanhola. Não é assim que costumam acabar os contos de fadas. Mas ninguém duvida que a história dos alaveses é digna de uma fábula futebolística.
A boa noticia para os adeptos do Alavés é que o pior parece ter passado.
A equipa de Vitória, capital do País Vasco, está no pote de clubes que irá lutar pela promoção à Liga Adelante, a segunda divisão do país vizinho. Há muito tempo que os alaveses andam perdidos nessa floresta de equipas caídas em desgraça. O seu caso tem uma explicação muito simples, nefastamente comum. Um pretenso milionário ucraniano, Dimitri Pitterman, comprou o clube e desfez o projecto em fanicos. Ficou apenas a memória do futebol de elite. E daquela noite em Dortmund. A noite de um 16 de Maio. Há dez anos atrás.
Numa equipa sem estrelas, que rapidamente seria desmembrada pelo poder de atracção do dinheiro fácil, ninguém esperava uma noite assim. Os jogadores do Alavés sabiam-se outsiders e apenas queriam dar a cara, responder ao orgulho dos adeptos que os acompanharam na sua caminhada europeia. O grande momento, a grande gesta tinha ficado para trás, numa fria noite de 22 de Fevereiro. O San Siro, cheio, testemunhou como o anónimo Alavés batia por 0-2 o poderoso Internazionale, uma semana depois de aguentar um 3-3 em casa. Jordi Cruyff, ao minuto 78, abriu a contagem que Tomic fechou 10 minutos depois para desespero de Marcello Lippi, Christian Vieri e companhia.
Mané, técnico modesto e com aquele espírito guerreiro de antes quebrar que torcer que moldou a escola vasca, nunca esperou a resposta dos seus jogadores depois do grande jogo do Inter em Vitória. Esta era uma equipa onde a estrela, pelo apelido, era Jordi Cruyff. Muitos jogadores espanhóis com largos anos de futebol secundário nas pernas formavam o esqueleto do conjunto. Num 5-3-2 que apostava profundamente no contragolpe, a segurança defensiva de Karmona e Tellez era fundamental. Os dois centrais, decisivos nos lances de bola parada, formavam o esqueleto. Mas era a velocidade do romeno Contra, a qualidade de passe de Desio e o instinto goleador de Javi Moreno que chamavam à atenção. Antes daquele duelo com o Internazionale a equipa tinha eliminado dois conjuntos noruegueses (Lillestrom e Rosenborg) e nas rondas seguintes bateu o igualmente modesto Rayo Vallecano e o Kaiserlautern alemão. Dois anos depois de ser promovido à Liga espanhola, o Aláves estava numa final europeia.
Olhando para trás, é fácil perceber o milagre do conjunto basco.
O espírito de equipa, a natureza dos rivais e a clara aposta do clube na prova da UEFA, o escaparate perfeito para fazer alguns milhões no defeso, funcionou como catalisador. Mané criou um forte sentido colectivo nos jogadores que saiam a jantar juntos com as famílias todas as semanas, comiam “pintxos” tradicionais em pleno balneário e que sentiam que partilhavam tanto as agruras como os elogios. A maioria da equipa tinha subido de divisão dois anos antes, incluindo o técnico. Os poucos que chegavam de forma ao Mendizorrozza integravam-se sem problemas e no final de contas foi esse espírito que permitiu ao clube dar a cara diante do poderoso Liverpool.
A equipa de Gerard Houllier chegava à sua primeira final pós-Heysel com uma das suas mais espantosas gerações. Tinham batido com autoridade o Barcelona, FC Porto e a AS Roma. Contavam com a estrela europeia de moda, Michael Owen, mas também Robbie Fowler, Steven Gerrard, Jamie Carragher, Danny Murphy, Gary MacAllister, Dietmar Hamman e Emile Heskey. Eram favoritos e sabiam-no. Mas não esperavam uma resistência de proporções épicas. Naquela tarde noite no Westfallenstadion a vitória do Liverpool ficou ofuscada pela exibição do modesto Deportivo. Os golos de Babbel, Gerrard, MacAllister, Owen encontravam sempre resposta. Ivan Alonso, Javi Moreno e Jordi Cruyff, no minuto 89, teimavam em amargar a festa dos reds. A tensão começava a tomar conta do banco do Liverpool e os alaveses acreditavam que um milagre, um milagre futebolístico, estava prestes a tornar-se realidade. A três minutos do fim o conto de fadas acabou na cabeça de Geli, nesse desvio para as redes de Herrera e nesse desalento que dura há dez anos. O Alavés esteve perto de fazer história. Sem entender muito bem como, acabou realmente por fazê-la, à sua maneira.
Depois dessa noite épica o mundo nunca mais se esqueceu dos vitorianos. Mas a sorte abandonou o Deportivo com aquele cabeceamento. Dois anos depois o conjunto foi despromovido à 2º Divisão. Voltaria no ano seguinte mas a gestão criminal do ucraniano Pitterman levou a instituição à falência e ao calabouço da 3º Divisão. A pouco e pouco o modesto clube começa a erguer-se. Mas faça o que fizer, sempre que o nome apareça numa noticia em qualquer recanto do mundo, a única imagem que nos saltará à cabeça é a dessa noite onde o futebol foi mais futebol do que nunca e em que ficou claro que os contos de fadas às vezes não acabam como queremos. Mas nunca deixam de ser mágicos.
O rei Kenny escolheu-o pessoalmente como sucessor e durante algumas temporadas parecia claro que estava ungido para tornar-se numa lenda viva do futebol inglês. Mas a decadência do Liverpool e o naufrágio do Newcastle passaram factura e pouco a pouco a Old Albion começou a esquecer-se de um dos maiores génios da sua longa história, um pássaro chamado Peter.
Quando Dalglish trocou o relvado de Anfield pelo mesmo banco por onde andaram Fagan, Paisley e Shankly tornou-se claro que faltava uma referência no ataque dos Reds. Não havia alternativas no balneário para render aquele que foi, muito provavelmente, o mais completo jogador da história do clube. E muitos acreditavam que nem fora de Anfield o consagrado "King" Kenny poderia fazer o mesmo que Paisley logrou com ele quando Keegan partiu para Hamburgo no final dos anos 70. Mas foi precisamente ao lado da velha glória que Dalglish descobriu o seu homem. O Newcastle tinha acabado de subir de divisão e na equipa do Norte pontificava um jovem de 22 anos que já tinha andado pelo Canadá e por Old Trafford, sem fazer muito barulho. Dalglish ficou com ele debaixo de olho durante duas temporadas e quando percebeu que a coisa era séria (e que a concorrência apertava) apostou forte. E ganhou.
Peter Beardsley assinou pelo Liverpool a 14 de Julho de 1987. Uma data difícil de esquecer.
Foi um recorde e levantou dúvidas. Afinal a grandeza do clube de Anfield não se podia encaixar no pequeno projecto regional que era, ainda, o Newcastle. E apesar de já ser internacional (Beardsley esteve na equipa mundialista de 86), o pequeno avançado estava longe de ser uma estrela. Mas não chegou só. Na mesma semana o técnico, desejoso de repetir o titulo ganho na sua primeira temporada como treinador-jogador, apresentou John Barnes e John Aldridge que formariam um dos trios de ataque mais letais da história do futebol moderno. Sem Dalglish e Rush havia suspeitas que a equipa não estaria ao mesmo nível. Os números provaram outra coisa.
Beardsley rapidamente explodiu e tornou-se num dos ídolos da velha Kop.
O seu estilo de jogo, incisivo, técnico e com um potente disparo, foi deixando marcas jornada após jornada. O entendimento com o gigante Aldridge e o supersónico Barnes deram uma profundidade de campo a um conjunto que pode ser visto como um dos mais completos da história do beautiful game. Ninguém imaginava ao principio mas o ritmo demoníaco daquele conjunto Red nascia, muitas vezes, do cérebro de xadrez de Beardsley. A equipa esteve perto da dobradinha mas naquela mítica final frente ao Crazy Gang do sempre criticado Wimbledon a oportunidade de fazer história esfumou-se. Beardsley emergiu claramente como o rosto vivo da nova geração de internacionais ingleses, a viverem ainda o lastre do afastamento das competições europeias. Tornou-se impossível medir o sucesso do conjunto de Dalglish com outras equipas de elite da época, como o Madrid de Butrageño, o Milan de Sacchi, o FC Porto de Artur Jorge, o PSV de Hiddink e o Napoli de Maradona. Mas em Inglaterra a superioridade era inquestionável. Só as lesões (de Rush), os desastres (de Hillsborough, momento que marcou talvez o final da era Red) e o mais puro azar (sob a forma do pontapé de Michael Thomas no último minuto do Liverpool vs Arsenal de 1989) permitiram que o titulo escapasse ao conjunto de Beardsley. Mas, mesmo com a derrota, a sua aura mágica aumentava e na final da FA Cup frente ao eterno rival, o Everton de Howard Kendall, mais uma vez "Beardsie" foi fundamental. Era o principio do fim da história de amor.
Com o regresso de Rush e o adeus de Aldridge, o escocês Dalglish abdicou do espectacular 4-3-3 por um 4-4-2 mais convencional e Beardsley foi perdendo espaço para deambular pelo terreno de jogo. Começou a ver mais jogos desde o banco e sem oportunidades de brilhar na Europa (a suspensão do Liverpool prolongou-se até 1992) o peso da frustração era claro. A explosão mediática à volta de Gascoine também não ajudou. No final de 1991 trocou Anfield Road por Goodison Park. Os adeptos da Kop, em lugar de apupar o traidor, aplaudiram-no de pé no seu regresso. Ele era há muito uma lenda viva.
O final da carreira de Beardsley, depois da passagem pelo Everton, significou um regresso às origens. Keegan recuperou-o para o seu novo Newcastle ao lado de Ginola, Ferdinand, Cole, Shearer e Asprilla e apesar da idade não permitir as mesmas espantosas corridas pelo miolo, o seu estilo ajudou a definir a magia de uma das equipas mais admiradas da década de 90. O Newcastle não venceu um único troféu mas entrou no coração dos adeptos que puderam, por uma última vez, admirar o talento do pássaro rebelde do Tyneside. Quase esquecido, Beardsley ganhou a pulso o estatuto de jogador legendário. Friamente olhando para números, romanticamente deixando-se seduzir pelos movimentos surdos no tapete verde, é difícil encontrar um jogador inglês ao seu nível nos últimos 30 anos. Beardsley foi o génio de quem os ingleses aparentemente se esqueceram...
A muitos surpreende a vitoriosa campanha europeia do Schalke 04 de Raul e companhia. Mas apesar de ser a primeira semifinal da Champions League na história do clube, houve uma época em que os mineiros de Gelsenkirchen faziam parte da nata europeia. Nos anos 30 o futebol espectáculo do Schalke ajudou a definir as bases do futebol alemão do pós-guerra e transformou os seus heróis em ícones da resistência do povo germânico.
Chamaram-lhe "Schalker Kreisel".
E definiu o estilo de futebol de toque que começava a ganhar cada vez mais adeptos no centro da Europa. O estilo de jogo de combinação - primitivo comparado com os padrões de hoje mas enormemente avançado para a época - que se foi forjando na equipa do Schalke nos anos 20 marcou um antes e um depois na história do futebol alemão. Até então o país tinha vivida à sombra de um futebol rápido e de contacto, praticado iminentemente pelas equipas do sul.
Kurt Otto moldou uma equipa feita só com jogadores da casa, muitos deles mineiros e filhos de mineiros da cidade industrial de Gelsenkirchen. Uma equipa que procurava a troca de bola em lugar das habituais cavalgadas rumo à área contrária. E que encontrou no talentoso Fritz Szepan e Ernst Kuzorra, os seus grandes interpretes. Filhos de emigrantes polacos, como tantos outros na cidade, as duas grandes estrelas do futebol alemão do pré-guerra, talvez os jogadores europeus mais completos da sua época - a par de Meazza e Sindelaar - Szepan e Kuzorra deram um brilho especial o jogo de toque dos azuis reais. A equipa começou a crescer em meados dos anos 20, com a chancela do presidente Fritz Unkel, um dos grandes impulsionadores do projecto local. Rapidamente passaram a dominar a Gauliga, a liga da zona do Rhur, a mais forte das ligas regionais alemãs. Uma série de contratempos foram adiando o esperado titulo inaugural do Schalke.
Aliado ao sucesso do clube ficou o nascimento do mítico Glückauf-Kampfbahn, um dos estádios mais frenéticos do futebol teutónico durante largas décadas. O público local transformou os jogos em casa do Schalke em meros trâmites (o clube não perdeu um jogo em casa nos 11 anos seguintes até ao irromper da guerra) e rapidamente a equipa começou a disputar as finais nacionais. Em 1929, um ano depois da inauguração do estádio, chegou o primeiro titulo regional. Mas foi preciso esperar cinco anos até o domínio do futebol do oeste se transformasse em domínio nacional.
Quando tudo indicava que o maravilhoso futebol do Schalke 04 ia terminar com o a supremacia do Stuttgart e Nuremberga, a liga alemã surgiu em cena e baniu o clube durante um ano. O motivo? O pagamento de salários elevados aos seus melhores jogadores, algo impensável num país que lidava tão mal com o conceito do profissionalismo que só nos anos 60 a Bundesliga foi oficialmente fundada como uma liga profissional. Quase 30 anos depois das restantes grandes competições europeias. Por essa altura a Alemanha já tinha até um titulo mundial ganho por falsos amadores. Como eram todos os elementos do Schalke 04.
Por isso só em 1934 a equipa pode finalmente desfrutar do seu primeiro campeonato. Uma época inesquecivel em que ao génio de Szepan e Kuzorra se juntaram outros elementos chave. A final disputada em Berlim confirmou o génio de Bornemann na defesa, Zajons e Urban nas alas e Rothard no eixo do ataque. O Schalke venceu por 2-1 o Nuremberg mas esteve a perder por 1-0. Parecia que a malapata ia seguir quando Szepan, como só ele sabia fazer, marcou o primeiro e inventou o segundo em apenas dois minutos. Os dois que faltavam para o jogo chegar ao fim.
O triunfo iniciou uma saga de vitórias praticamente incontestáveis até ao arranque da II Guerra Mundial. No ano seguinte a vitima foi o Stuttgart, derrotado num festival de golos por 6-4. Por essa altura o técnico já era Hans Schmidt, sucessor do genial Otto e fiel continuador da sua filosofia de jogo curto de toque e desmarcação, algo que se tornara já na moda europeia graças à popularidade do Wunderteam austríaco de Hugo Meisl. Depois do hiato em 1936, dois novos títulos nacionais consecutivos e um dominio que se prolongou até 1941, ultimo ano das competições oficiais antes da entrada na fase determinante da guerra. Durante toda a década o Schalke manteve-se fiel não só ao seu estilo futebolistico mas também à sua filosofia local. O clube protegeu muitos dos seus jogadores judeus durante a perseguição do regime nazi e ajudou os seus melhores jogadores a evitarem a temida frente oriental ao serviço do exército. Muitos deles serviram em bases aéreas em solo alemão, privilegio de poucos. O final da era de glória do Schalke significou um parêntesis na evolução do próprio futebol alemão. O clube tinha sido a base ideológica do jogo teutónico apesar das reservas do seleccionador Otto Nerz que não apreciava o estilo relaxado e de toque de Szepan e Kuzorra. O segundo foi afastado da selecção sem apelo nem agravo. O primeiro viveu uma década de altos e baixos. Mas estava em campo no dia em que a Alemanha se apaixonou pelo seu jogo. Em Breslau, num desafio contra a Dinamarca, o polémico Nerz finalmente alinhou os seus melhores jogadores, incluindo a espinha dorsal do Schalke 04. A equipa venceu por 8-0 - a sua maior vitória até então - e o onze que marcou o verdadeiro inicio da Mannschaft ficou conhecido como Breslau Elf.
Com o pós-guerra o Schalke 04 entrou num periodo de crise da qual nunca recuperou totalmente. Voltou a vencer, uma vez mais, o titulo alemão mas quando a Bundesliga finalmente arrancou o clube começou a perder-se pelos postos do meio da tabela. Depois da surpreendente vitória da Taça UEFA, em 1998, o conjunto alemão volta a estar nas bocas do mundo. Muitos lembram-se já do Bayer Leverkusen. Em 2002 também disputou a meia-final com o Manchester United e do outro lado havia um Barcelona vs Real Madrid. Muita coincidência. Sob o espirito do Schalker Kreisel, sonhar está permitido.