Enquanto os veteranos espalham classe e uma mobilidade que alguns pensavam perdida na memória, os mais jovens demonstram que estão preparados para dar o salto. Não existe na história do futebol uma sucessão de gerações com tanta qualidade em todos os processos do jogo. Nas posições nucleares, o aparecimento a cada nova geração de um jogador de nível máximo é o sinal mais evidente que a hegemonia da Espanha, para lá dos títulos que possa ou não ganhar, não tem fim à vista.
É fácil fazer as contas para perceber que a dupla campeã da Europa e actual campeã Mundial é, por direito próprio, a máxima favorita das próximas competições internacionais. Se alguns dos seus protagonistas principais já falam em reformar-se, eventualmente depois do Mundial do Brasil, os adeptos espanhóis sentem-se tranquilo. Basta olhar para baixo, para os mais novos, para os que vêm a seguir. Duplos campeões da Europa de sub-21, campeões da Europa de sub-19 e flamantes candidatos a vencer o próximo Mundial da categoria sub-20, ninguém questiona o presente de Espanha. Nem o seu futuro.
Essa forma de hegemonia eterna não é fruto do acaso. Há duas décadas os clubes despertaram. O impacto dos Jogos Olimpicos de 1992 foi imenso na mentalidade espanhola. Ao crescimento económico seguiu-se um crescimento emocional de um povo marcado por décadas de ditadura e uma transição desenhada para agradar a gregos e troianos. Durante essa etapa, o futebol espanhol era o dos clubes, o da luta Real Madrid e Barcelona, mas também o dos símbolos regionais. A selecção era uma amálgama de identidades sem ideias próprias que procurava imitar o que estivesse na moda, fosse a dureza alemã ou o cinismo argentino. Eram os dias da Fúria, uma equipa com alma mas sem talento, com garra mas sem ideias. A tal que chegava a cada competição com o rótulo de eventual surpresa para acabar, inevitavelmente, por falhar nos momentos decisivos. Nos momentos onde é preciso ter uma ideia de jogo a que ser fiel.
O futebol espanhol aprendeu a lição. Desde a federação começou a trabalhar-se no futebol de base. Os clubes foram incentivados a seguir pelo mesmo caminho. Uns fizeram-no com mais afinco que outros. O Barcelona e o Athletic Bilbao foram excelentes exemplos de aproveitamento da formação enquanto que os clubes de Madrid preferiram outra abordagem. O tempo demonstraria quem tinha razão. Mas não foi só no treino e formação de jovens jogadores que se desenhou o futuro dourado do futebol espanhol. A nível nacional, de forma quase transversal, adaptou-se um modelo de jogo similar, um estilo de posse comum, de cultura pelo respeito do adversário e pelo conhecimento táctico das matrizes do jogo. Mais do que formar jogadores, em Espanha formaram-se jovens adultos, com capacidade mental para superar qualquer adversidade. Uma capacidade que faltou a tantos dos protagonistas da etapa da fúria e que nos momentos de maior pressão fez a diferença. O clique ganhador, a assunção de sentir-se superiores na sua forma de jogar, passos fundamentais para transformar o sucesso da base no triunfo da cúpula pirâmide.
Xavi-Fabregas-Thiago.
Iniesta-Mata-Isco.
Busquets-Martinez-Illarramendi.
A sala de máquinas do futebol espanhol é a melhor do mundo no presente. Mas também já a é no futuro imediato e no futuro mais distante. Não existe, a nível internacional, um tridente de jogadores da mesma geração tão capazes de assumir o controlo de um jogo e de pautar o seu ritmo como sucede com três gerações consecutivas de heróis espanhóis. A titularidade da selecção principal de Del Bosque é intocável. São os jogadores que Guardiola reinventou dentro do modelo desenhado entre Cruyff e Aragonés. Mas quando faltarem, os espanhóis sabem que há dois futebolistas por posição preparados para assumir o seu lugar sem que se note minimamente a diferença. Em qualquer selecção do Mundo actual, Thiago-Illarrramendi-Isco seriam titulares. Fosse o Brasil, Itália, Inglaterra, Holanda, Argentina ou Portugal. E no entanto, são apenas a terceira escolha em Espanha porque o génio de Mata, de Fabregas e de Javi Martinez os antecede, por idade, apenas e só. Não há melhor forma de coroar o sucesso de uma ideia do que sentir que está garantido o seu futuro. No caso da Espanha, a próxima década está entregue a futebolistas desenhados para ganhar, mas ganhar à sua maneira.
A selecção de sub-21 joga ao mesmo jogo que a equipa principal, mas fá-lo melhor. Com mais fome, com mais verticalidade, com mais apetite pelo golo. Eles são o que os principais eram em 2008, quando Aragonés acabou o seu projecto de forma única. Pelo meio, uma série de futebolistas que cresceram com essa fome de afirmarem-se internacionalmente e que se encontram entalados entre duas equipas de sonho. Nove jogadores para três posições que, no fundo, são apenas um curto exemplo da extensão da hegemonia espanhola.
Para cada Sérgio Ramos há um Iñigo Martinez. Para cada Arbeloa há um Carvajal ou Montoya. E um Moreno, um Koke, um Muniain ou Rodrigo. E todos esses trabalhadores talentosos como Nacho, Bartra, Herrera, De Marcos, Camacho, Aguirretxe, Parejo, Michu e os génios precoces de Canales, Jesé, Deulofeu ou Oliver. São tantos os nomes individuais que o problema é eleger. Mas aqui, apesar de tudo, não é a individualidade que faz a diferença. É o facto de todos eles pensarem, agirem e jogarem debaixo de uma ideia comum. O ritmo na equipa principal pode ter baixado, a frieza e o cinismo que foram imagem de marca de Del Bosque quando esteve inicialmente no Real Madrid fez-se sentir na África do Sul e na Polónia e na Ucrânia. Mas a qualidade dos jogadores e o valor desse espírito determinado e ofensivo permite pensar que é praticamente impossível não contar com a Espanha com máximo favorito para os próximos cinco grandes torneios internacionais.
Poucas selecções sub-21 jogaram na história como esta versão da selecção espanhola. Capaz, muito provavelmente, de vencer a maioria dos jogos disputados contra selecção principais do planeta futebol. Uma qualidade tal que permite, por momentos, esquecer que a sua antecessora, também campeã europeia, era quase tão boa. E que as suas rivais são a base habitual de projectos desportivos de larga projecção como acontece com Alemanha, Itália ou Holanda. Enquanto em Portugal se descobre, a duras penas, a consequência de abandonar-se o projecto de formação que esteve por base no sucesso dos anos noventa, Espanha demonstra uma vez mais saber qual é o caminho. O do sucesso. Para o qual tem a chave. Uma chave que parece ser de cópia única.
Existem quatro correntes distintas sobre a forma como deve ser desenhada a estrutura de uma selecção nacional. Quatro visões, algumas delas bastantes distanciadas, que contam com as suas virtudes e riscos. São pontos de vista que necessitam também de adaptar-se à realidade local de cada projecto e ás inevitáveis crises geracionais que afectam todas as nações do mundo do futebol. O caso português já viveu em vários desses extremos. Agora continua a subsistir, com Paulo Bento, o mais recente dos modelos, o familiar.
Do grupo fechado de Scolari à liderança dividida no Euro 84. Da equipa forjada com base em dois clubes, em 66, à geração dos melhores que navegavam pelo futebol europeu. A história do futebol português é rica nas variantes de como se desenhou o espírito do chamado Clube Portugal. Já foi coisa de dez jogadores de dois clubes só, para potenciar os laços rotineiros e a influência clubística. Já se jogou ao ritmo de interesses pessoais, procurando colocar os melhores em cada momento. Já se confiou nos melhores jogadores, independentemente do seu estado de forma, simplesmente porque eram muito bons. E agora Portugal revisita o conceito de núcleo fechado, de família, inaugurado por Scolari em 2003.
O caso português não é singular. Todos os países de topo do futebol mundial passaram, com os seus mais e os seus menos, por todos estes modelos ao longo da sua história. Em Espanha vive-se actualmente o apogeu da ideia que em Portugal existiu com a Geração Dourada. Os melhores jogam, sempre, independentemente de como estão ou de se há novos futebolistas no horizonte. Mas em Espanha também já se bailou ao som dos interesses dos clubes, também já se tentou criar uma família fechada, com Clemente na década de noventa e houve uma época em que, pura e simplesmente, jogavam os que estavam em melhor forma.
Para um seleccionador - e até o nome tem truque, porque seleccionar e treinar não é mesmo e até aos anos oitenta muitas selecções tinham dois profissionais para dois postos distintos - é complicado eleger o modelo a seguir.
Se convocar sempre os jogadores que estão em melhor forma - algo que muitos defendem - corre-se o risco de não ter nunca um núcleo estável porque a forma é, como já se sabe, volátil. No entanto, ter sempre os jogadores na melhor condição física e psicológica pode garantir que a equipa que sobe ao campo está motivada e preparada para todos os desafios. Montar um combinado nacional à volta dos maiores talentos individuais, também gera um problema. Podem ser os melhores, os que mais aportam e melhor entendem o jogo mas, muitas vezes, não estão nas melhores condições e surge o fantasma de jogar por estatuto. O modelo aproxima-se mais ao de um clube, com um núcleo fechado de estrelas e suplentes de luxo, ignorando muitas vezes a principal vantagem de uma selecção: poder ir mais além nas escolhas. Também há os que preferem montar um esquema baseado no sucesso individual de um ou dois clubes, trazer o máximo número de jogadores desses emblemas e complementar a convocatória com talentos individuais. Ganha-se em estabilidade e rotinas, algo que falta no curto espaço de tempo de preparação para os jogos internacionais, mas perde-se em novidade e inovação. Por fim há o modelo mais recente, o de criar um grupo fechado, com jogadores bons e medianos, conscientes todos do seu lugar, onde a competitividade existe mas parte de bases estabelecidas. Onde o treinador é técnico, pai e sargento. Onde os interesses de um grupo se sobrepõem aos individuais mas onde a porta está quase sempre fechada ao resto do mundo. Esse é o modelo português da última década.
Nos anos 60 a selecção das Quinas era formada por jogadores do Benfica e do Sporting, com a ocasional incorporação de futebolistas do Belenenses, FC Porto e Setúbal. De aí passou-se ao período pós-25 de Abril, onde cada clube queria controlar a selecção e para agradar a gregos e troianos convocavam-se individualidades e não se pensava no grupo. Com os meninos de ouro forjou-se um grupo de vinte jogadores que, passasse o que passasse, tinham lugar garantido. Foi esse o cenário que entrou em colapso em 2002, no Mundial do Japão e da Coreia do Sul, quando parte do balneário estalou com o favoritismo atribuído por Oliveira a Baía sobre Ricardo, ao lesionado Figo e a um questionadíssimo Pauleta. Quando chegou Scolari, esse era o monstro que tinha de domar, para triunfar no Europeu.
O brasileiro fez a sua limpeza. Manteve ao seu lado o núcleo duro da selecção dos anos noventa (Figo, Fernando Couto, Rui Costa, Paulo Sousa) mas afastou os mais polémicos Baía, Jorge Costa e o suspenso João Vieira Pinto das suas equações. Com os mais indomáveis Sérgio Conceição e Abel Xavier teve os seus problemas. Para compensar, começou a chamar regularmente jogadores de low profile que fizessem o core da sua família. Chegaram os mais novos (Jorge Andrade, Ricardo Carvalho, Paulo Ferreira, Miguel, Ricardo Quaresma e Cristiano Ronaldo) e os que traziam experiência, como Costinha, Nuno Valente, Maniche. A esses juntou obreiros prontos a obedecer a qualquer ordem mas sem projeção internacional como foram Luis Loureiro e companhia. E chegou Deco, o jogador que quebrou não só o tabu dos naturalizados mas também a ideia de que os jogadores da Geração de Ouro actuavam por decreto. Rui Costa foi a sua vitima colateral.
Scolari criou um núcleo fechado mas aproveitou-se, como Otto Gloria, do trabalho de dois clubes, a juventude das promessas do Sporting e a solidez dos jogadores do FC Porto de Mourinho. Foi essa a sua base durante o seu mandato. Mas sem renovação, sem espaço para a novidade, o grupo estagnou, envelheceu e quando o brasileiro disse adeus, deixou uma equipa sem líder, decadente e com um hábito de trabalho mais similar ao de um exército do que a uma selecção nacional. Queiroz tentou lutar contra esse mundo, abriu a convocatória a outros jogadores, mais jovens, mais promissores, capazes de trazer algo novo, mas nunca conseguiu controlar um balneário saudosista do modelo Scolari, particularmente porque interessava ao homem que representava a maioria dos seus jogadores-chave, Jorge Mendes.
Para isso chegou Paulo Bento. Um treinador razoável, que noutro cenário nunca seria seleccionador e que foi um dos jogadores que sofreu com a nova ordem de Scolari. Mas a quem o papel de sargento assentava bem. Bento herdou uma pool de jogadores muito pior do que a que tinha o brasileiro. Desde o Mundial da Alemanha que a aposta na formação tinha desaparecido, que não havia jogadores para substituir quem tinha partido. Um buraco etário imenso que continua à espera que a geração que actualmente tem entre 17 e 22 anos possa substituir.
Consciente da situação, o seleccionador optou por voltar aos principios mais básicos do scolarismo.
Independentemente da qualidade individual, formou um grupo fechado de vinte jogadores. Boa ou má forma, houvesse ou não melhores jogadores fora do núcleo, esses eram os seus espartanos. Deu o protagonismo mediático à sua estrela individual e rodeou o onze base de suplentes sacados da carteira de Mendes. Muitos deles sem nível para uma selecção, ainda assim decadente, mas que cumpriam os serviços mínimos que se lhes eram exigidos. Isso explica que os Micael, Oliveira, Amorim, Sereno, Zé Castro, Almeida, Eduardo e companhia sejam convocados com regularidade. Os problemas começaram a surgir quando até as opções para o onze se foram reduzindo. Sem jogadores de nível para posições chave como os centrais, médio defensivo, criador de jogo e ataque, o modelo tornou-se obsoleto. Mas nem assim Bento mudou o seu rumo. Manteve-se fiel a um esquema táctico para o qual não tem jogadores e preferiu chamar mais legionários para as posições deficitárias, brutalizando a equipa e tornando-a mais amorfa. Boa para torneios curtos mas um problema sério durante uma temporada onde se exige mais do corpo aos jogadores de topo para estarem frescos nos jogos importantes.
Só nos últimos encontros Bento foi forçado a confrontar-se com a realidade. O seu grupo tinha falhas importantes e escassez de meios. Depois do Euro 2012 começou a aparecer - finalmente - outro perfil de futebolistas. São jogadores que terão de aceitar as regras da família mas que sabem que não têm muita concorrência para o lugar. O descarte de Quaresma, Tiago, Manuel Fernandes, Rolando e Ricardo Carvalho abriu ainda mais as feridas na defesa e no meio-campo. Sereno, Zé Castro, Ricardo Costa, Ruben Micael, Carlos Martins e Varela não são, claramente, a solução. Mas são os homens de confiança. E por isso aparecem em cada lista. O aparecimento progressivo de futebolistas como Vieirinha, Luis Neto, Pizzi ou André Martins é um sinal positivo para o futuro imediato. Pode não ser suficiente para chegar ao Brasil com um plantel coerente e afastado desse espirito autoritário que tão bem caracteriza Bento, um homem que tacticamente é mais um problema que uma solução, mas indica que o futuro tem opções que não podem ser filtradas por não pertencerem a determinado grupo ou agente. Atrás deles vêm os André Almeida, André Gomes, André Santos, Tiago Ilori, Wilson Eduardo, Bruma, Castro, Ricardo, João Mário das selecções jovens mas também outros eternos descartados como Bruno Gama, Paulo Machado, Eliseu, Duda, Antunes ou Vaz Tê, jogadores que podem oferecer mais do que os que vão regularmente à selecção sem pertencer a esse mundo fechado.
Com pouco mais de 50 jogadores de nível aceitável por onde escolher - consequência de uma péssima gestão federativa e dos clubes com o qual Scolari pactuou e da qual Paulo Bento não tem culpa imediata - é normal que as opções para os jogos decisivos de qualificação para o Mundial sejam reduzidas. Partindo do principio que, salvo lesão, os nomes fortes estarão presentes, quer tenham condições físicas e psicológicas para os duelos ou não, as vagas diminuem. É fácil perceber que nem há um modelo de clube suficientemente forte para sustentar a selecção, nem uma geração de ouro que permita esquecer a ideia de que não é necessário ter demasiadas opções para resolver os problemas. Bento tem como alternativa forjar uma selecção no Outono com os que estejam realmente bem ou manter-se fiel ao seu espírito de grupo. O ideal seria criar um compromisso entre ambas mas isso exige diplomacia, liderança e saber adaptar o sistema táctico aos recursos disponíveis, algo de que o seleccionador nacional ainda não demonstrou capacidade para ser capaz de realizar.
Um possível Portugal 23 para o Outono baseado apenas na qualidade individual, na aportação colectiva e no espírito colectivo (sem ter em conta, naturalmente, lesões e um estado de forma deficiente).
Guarda-Redes - Rui Patricio, Beto
Defesas Laterais - João Pereira, Silvio, Fábio Coentrão
Defesas Centrias - Pepe, Luis Neto, Bruno Alves, Tiago Ilori
Médio Defensivo - Custódio, Miguel Veloso, André Almeida
Médios Interiores - João Moutinho, André Martins, Paulo Machado, Bruno Gama
Extremos - Cristiano Ronaldo, Nani, Vierinha, Bruma
Avançados - Hélder Postiga, Pizzi, Edér
Alternativas (Raul Meireles, André Santos, Danny, Ricardo, Ruben Amorim, André Gomes, Antunes, Mika, Duda, Eliseu, Josué)
A via crucis é inevitável. Há uma certa melancolia em cada fase de apuramento para uma competição internacional da selecção de futebol portuguesa. Um olhar preso nos tropeções do passado, um sufoco moral que obriga a um país tão mau em contas tenha de se valer da matemática até ao suspiro derradeiro. Tudo porque, o caminho do sucesso elimina os rastos do caminho certo, e Portugal continua a querer subsistir entre a elite do futebol à base de resultados e não de ideias. Até que os resultados faltem. Depois, o abismo...
Digam que Portugal é uma equipa que joga mal, e a primeira resposta será sempre a do adepto que cita de memória os pódios conseguidos nos torneios internacionais dos últimos anos. Digam que Portugal não tem uma boa equipa técnica, e lembrar-se-ão de dizer maravilhas de Scolari, Paulo Bento e (quiçá) Queiroz, lembrando vitórias pretéritas e esse espírito de sargentinho (não sargentão) de que o português tanto gosta. Digam que Portugal tem um plantel curto, um plantel sem demasiada qualidade, e lembrar-se-ão imediatamente de Cristiano Ronaldo, João Moutinho, Nani e Pepe para justificar tudo o resto. Digam algo negativo sobre Portugal e a sua prestação habitual nas fases de qualificação e a única resposta que vão ouvir é a habitual, a mesma que um individuo como José Mourinho não teve receio de proclamara aos céus algo do estilo "que se lixe a qualificação, o que importa é estar e depois já se vê". E como, para muitos, Portugal se tem visto bem, aqui afinal não há um só problema que tratar.
Claro que isso é o que jogadores, técnicos e dirigentes querem que as pessoas pensem.
Evidentemente que é falso. Demasiado falso para o mais crédulo acreditar e no entanto, não se imaginam quantos crédulos existem. Portugal, é verdade, tem um registo em provas internacionais bastante bom para um país de 10 milhões de habitantes. Mas está mais do que provado que a correlação económica e social, só por si, não garante títulos. Na última década Portugal perdeu um Europeu em casa contra a Grécia. Caiu nas meias-finais de um Mundial contra a França, tendo deixado pelo caminho a Holanda e Inglaterra. Caiu num Europeu com a Alemanha e num Mundial e Europeu com a campeã, Espanha. Não parece, à partida, um mau registo. A diferença está em ver como se chegou até lá e, sobretudo, como se caiu. Em ambos os casos a resposta é fácil: sem ideias, sem futebol e sem um colectivo. O que faz toda a diferença.
A Portugal falta-lhe hoje o mesmo que faltava há cinco anos. Não mudou nada nesse aspecto.
É uma selecção com uma base de escolhas extremamente reduzidas que se agrava ainda mais pela mentalidade redutora e classicista do dirigente/técnico/adepto português que associa os jogadores de maior renome, os mais caros ou mais bem pagos, com os mais idóneos para jogar pelo país. Não é assim. No jogo de Israel, o obtuso Paulo Bento usou todos os nomes que tinha à sua disposição. Esqueceu-se de que o trabalho dele é utilizar jogadores. Em campo estavam atletas fisicamente em má forma física e anímica. Jogadores que jogam a outra coisa, a outro ritmo. Jogadores que não têm condições para serem titulares absolutos com a selecção e que no entanto, jogo atrás de jogo, aí estão.
Jogadores como João Pereira, Bruno Alves, Miguel Veloso, Raul Meireles, Varela e Hélder Postiga, para por caras e nomes.
Nomes, membros da "família Bento" com carta branca para fazerem o que quiserem em campo, que nada questiona a sua titularidade ao jogo seguinte. Quando Vierinha, um jogador sem pedigree público, entrou em campo as sensações da equipa mudaram logo. E mudaram porque utilizar um jogador fora do esquema fechado de Bento obrigou forçosamente Portugal a lidar com o seu mais grave problema, a falta de ideias e conceitos tácticos.
Paulo Bento é um péssimo treinador no aspecto táctico. É fechado, redutor e insiste regularmente no mesmo modelo, mostrando uma incapacidade atroz em ler os jogos e a readaptar-se. Rodeia-se dos jogadores que ele entende que melhor aplicam a sua filosofia e espera que depois seja a individualidade a fazer a diferença. É um técnico primário e sempre será. Essa é outra das razões porque é seleccionador.
Portugal não reagiu tacticamente ao empate israelita e muito menos ao segundo golo, desperdiçando uma vantagem conseguida, segundo o treinador "demasiado cedo", como se estivesse assumir que mentalmente é incapaz de manter uma equipa motivada num campo onde era imperioso ganhar. É uma conversa que já se ouviu com Bento no passado, nada de novo. Só a entrada de Vierinha e Hugo Almeida - tarde demais - obrigou Portugal a mudar o desenho, a deixar o 4-3-3 para apostar num 4-4-2, com Postiga por detrás de Almeida e Ronaldo como número 10 - ao ponto a que chegou o futebol português - e dois médios interiores abrindo as alas para a subida dos laterais, algo que não se viu durante todo o período de tempo em que funcionou o 4-3-3 clássico. Sem essas ideias, Portugal é uma equipa plana, demasiado pendente do jogo transicional que favorece tanto Cristiano Ronaldo mas que prejudica todos os outros. Um jogo que só funcionou no Europeu contra uma Holanda partida em duas. Contra a Dinamarca e República Checa teve muitos problemas em impor-se e frente à Espanha foi o que se viu.
Sem jogadores e sem treinador, o raro é que uma selecção consiga algo. E o pior é quando esse treinador é incapaz de incutir aos jogadores adrenalina. Portugal joga as fases de qualificação a um ritmo sonolento, obrigado, como quem tem de despertar-se todos os dias de madrugada para encarar oito horas de árdua jornada laboral. Não há tensão competitiva, querer, dinamismo físico e pressão menta que salve esta equipa. Nem Ronaldo, tão voraz no Real Madrid, consegue valer a sua braçadeira. A equipa joga a passo, linhas distantes, e quando qualquer rival coloca um pouco mais de velocidade no seu jogo - viu-se com a Rússia, a Irlanda do Norte e com Israel - o barco vai ao fundo. Se já é mau que os jogadores escolhidos não sejam os idóneos e que o treinador seja um problema, não a solução, que essa dupla ainda cumpra o seu trabalho quase como queixando-se é demais. Tarde ou cedo a realidade acabará por bater à porta.
Portugal já sabe que o primeiro lugar do grupo é uma impossibilidade, se não matemática pelo menos moral. E que o segundo será um mano a mano intenso até ao fim, sobretudo com o jogo do Estádio da Luz contra a equipa israelita a fazer a diferença. Depois vem o play-off, mais um consecutivo, o terceiro. A mim importa-me pouco que Portugal chegue a uma competição internacional via play-off ou como primeiro do grupo, se tiver demonstrado em campo ser uma equipa, bem treinada, com jogadores comprometidos, com uma convocatória que respeite a qualidade e não o estatuto. O problema é que isso nunca acontece e o cenário vai-se repetindo e os problemas ficam sem resolver-se e assim continuarão até que a selecção falhe uma ou duas provas internacionais consecutivas e entre, como outros país, numa espiral autodestrutiva. Aí tudo o que for escrito aqui será relembrado, mas sem um futebol de formação de qualidade e com figuras individuais como Cristiano Ronaldo cada vez mais escassas na nossa fábrica de futebolistas, talvez seja tarde demais.
Houve uma altura que a imprensa portuguesa tentava vender a ideia de que a selecção portuguesa era a equipa de todos. Dos adeptos de todos os clubes, de todos os movimentos políticos, sociais, de dissidentes e apoiantes do regime, de todos os que sentiam Portugal, por cima das suas convicções pessoais. Nunca funcionou muito bem essa fórmula mas agora vive-se o extremo oposto. De ser uma selecção de 10 milhões, Portugal passou a ser o clube de um só homem.
A convocatória de André Gomes por Paulo Bento é apenas mais um prego no caixão dos que acreditam ainda no conceito de meritocracia em Portugal.
Porque se há algo que move as decisões do seleccionador - o trabalho do "treinador" Paulo Bento, deixo para outro momento - é tudo menos o mérito pessoal que estava por detrás da ideia de combinados nacionais. Quando os conjuntos internacionais se começaram a medir, muitas vezes não representavam o melhor de um país. Os problemas de transportes, o amadorismo e os interesses políticos levavam a criar selecções quase plasmadas directamente de clubes ou cidades. Em Portugal e no resto do Mundo, o mal não foi só nosso. Mas com a evolução do jogo, rapidamente ficou claro que a grande vantagem do futebol de selecções face ao futebol de clubes era a possibilidade de ver numa só equipa os melhores, os mais bem preparados ou que mais méritos lograram durante um período desportivo a jogar em conjunto. Durante a década de 60 a melhor defesa de Portugal - a do Sporting - jogava com o melhor ataque - o do Benfica - sem grandes escândalos porque era realmente dificil encontrar individualidades nos restantes clubes capazes de se sobrepor ao génio individual e à harmonia colectiva desses dez jogadores de campo. O resultado foi um terceiro lugar no Mundial de 1966.
A partir dos anos 70 ficou claro que a selecção se tinha transformado em mais um palco de batalha entre os clubes. Da convocatória de oito jogadores do FC Porto para um amigável em Vigo, com manifestação em Campanhã e um "palhaço" metido ao barulho, para acabar no quadrunvirato do Euro 84, onde se rodavam jogadores para agradar a cada cor clubística, acabando em Saltillo, um feito que comprometeu o futuro daquela que talvez foi a mais bem preparada geração de jogadores até à época, o futebol da selecção nacional perdeu essa capacidade de convocação do espírito popular. O despontar da Geração de Ouro - transformada rapidamente numa geração de emigrantes - podia ter invertido essa tendência mas depois apareceu Scolari, o conceito de família, e a selecção nacional transformou-se no clube Portugal. Hoje é o clube Jorge M.
Durante os últimos anos é confrangedor ver o lote de convocados de Portugal para jogos amigáveis, jogos de qualificação e torneios internacionais. Nunca vão os melhores, nunca vão os jogadores em melhor forma, vão sempre os catorze que entram na cabeça do treinador da selecção e os outros oito que o seleccionador - um Dr. Jekyll/Mr Hyde com penteado especial - convoca para agradecer a quem o colocou no posto. A quem faz negócio com o futuro de uma selecção que, sem se saber muito bem como, tem-se mantido na elite futebolística. Naturalmente, não são esses seis ou oito jogadores que contribuem para esses resultados. Esses estão lá, sem jogar, sem comprometer, mas com o cachet pessoal a subir, as comissões de venda e renovação a disparar e os milhões a entrarem sempre nos mesmos bolsos.
A prática não é nova e num país tão corrupto como o Brasil levou à demissão de um selecionador. Na Argentina é normal cada seleccionador provar 60 jogadores por mandato, como se houvesse tanto talento nas pampas. O negócio do futebol instalou-se caprichosamente no mundo das selecções e Portugal pode ter poucos jogadores de elites, mas tem o melhor dos negociadores. André Gomes sabe-o bem.
Para o jogo de hoje, o médio do SL Benfica está convocado. Poderá fazer a sua estreia como internacional. Seguramente tem um grande futuro pela frente. Pelo menos enquanto tiver o agente certo. Nem precisa de ter de esforçar-se e jogar. O seu amigo Nélson Oliveira seguramente lhe explicará que ser suplente no último classificado de um campeonato nunca foi impedimento para ir picar o ponto à selecção. Desde que tenha o agente certo. O futebol da selecção portuguesa passou a ser uma questão do agente certo. Nem mais, nem menos.
Na convocatória para um amigável de Paulo Bento - que diz que não existe muita qualidade no futebol português e que por isso convoca sempre os mesmos jogadores...onde a qualidade não é propriamente algo abundante - estão jogadores como os citados André Gomes (oito jogos na época), Nélson Oliveira (suplente raramente utilizado do Depor), Miguel Lopes (recém-aterrado em Alvalade, depois de pouco ter jogado pelo FC Porto), Sereno (o elo fraco da defesa do Valladolid), os poucos utilizados Beto e Eduardo e Bruno Alves e Danny (em plena paragem de campeonato russo). Curiosamente, todos jogadores com laços com uma só empresa de representação, a mesma que - no momento da inoportuna lesão de Micael - ajudou o seleccionador a convencer que era melhor alternativa do que jogadores que têm muitos mais minutos nas pernas como Hugo Viana ou Manuel Fernandes.
A mensagem é clara. Não importa o que vales ou quanto jogas, apenas quem te representa. Ninguém exclui a possibilidade de nas próximas convocatórias jogadores como Tozé, Fábio Martins, João Carlos, Bruma, Diogo Rosado, André Almeida ou Luisinho sejam chamados à selecção se assinarem os contratos certos a tempo. Que mais importa que o rival seja Israel, que está imediatamente à frente de Portugal na corrida ao play-off do Mundial de 2014? Se afinal, convocam-se 22 e jogam catorze, o importante é fazer amigos.
E claro, os jogadores do Paços de Ferreira, Estoril Praia, Vitória de Guimarães e apátridas que renegaram da grandeza do maior empresário da história do futebol, podem esquecer as quinas ao peito. Por muitos golos que marquem, assistências que dêem, kilómetros que corram, a selecção é cada vez mais um clube fechado, com quota de membro paga por uma mesma agência. A mesma que ajudou a comprar a nova casa do André Gomes, a mesma que mantém o discurso agradecido da imprensa subserviente sobre o génio ofensivo de Nélson Oliveira (quando quem joga são Pizzi e Bruno Gama) e a mesma que ajudou a transformar a selecção de todos no clube de um só.
O triunfo do Benfica com golos de dois portugueses que têm sido actores mais do que secundários nos planos de Jorge Jesus reabre a questão de qual é o verdadeiro problema do futebol nacional. Jorge Jesus e os restantes técnicos das equipas de topo pode funcionar como uma boa resposta, particularmente quando afirma sem complexos, mais do que a sua habitual incapacidade comunicativa, que este tipo de jogadores para a prova nacional "vai dando". Um atestado de incompetência ao futebolista português que não deve surpreender. Há uma década que os jogadores nacionais são tratados assim.
Ao mesmo Gil Vicente que foi uma das revelações da passada temporada, graças ao brilhante trabalho de Paulo Alves, o FC Porto não conseguiu vencer com uma equipa que ainda tinha Hulk.
Esse mesmo conjunto de Barcelos acabou derrotado, sem grandes problemas, por um 3-0 contundente com dois marcadores surpresas. Não foram nem Rodrigo nem Cardozo, nem Nolito ou Gaitán. Os golos de Luisinho e André Gomes não foram fruto da casualidade. Pela primeira vez na época, talvez pela primeira vez desde que relançou a carreira de Fábio Coentrão, Jorge Jesus apostou em jogadores portugueses de perfil baixo e obteve lucros. Dois jogadores que, sem ser mediáticos, estiveram à altura das circunstâncias num terreno complicado de visitar e que responderam com golos e qualidade de jogo, algo que tem faltado a uma equipa que não termina de se encontrar. Jesus não se decide pelo modelo de jogo a seguir, depois da saída de Witsel, e muito menos pelo onze titular. Uma rotação constante e talvez excessiva que não permite encontrar um ritmo colectivo comum, talvez consequência dos erros das épocas passadas, épocas em que o Benfica esgotava o balão de oxigénio até metade da época e depois revelava-se incapaz de cumprir os objectivos. Afinal de contas, em três épocas, o técnico tem apenas um título de liga para presumir depois de ter contratado quase meia centena de jogadores.
Jesus, que é um conhecedor profundo da realidade do futebol português, habituado a viver até há bem pouco tempo no universo dos clubes que lutam para sobreviver, deveria ser o primeiro a saber a avaliar a real capacidade de um jogador nacional. No entanto, salvo Fábio Coentrão, a sua gestão como treinador do Benfica levou o último clube a contratar um estrangeiro entre os grandes a deixar de alinhar com portugueses provocando em algum momento da sua gestão a saída de Nélson Oliveira, Carlos Martins, Hugo Vieira, Mika, Ruben Amorim, Eduardo, César Peixoto, Nuno Gomes ou David Simão. Para o seu lugar, dezenas de jogadores estrangeiros com perfil suspeito que, na maioria dos casos, não passam seguramente para a posteridade do livro de honra do clube.
Jesus não é diferente da maioria dos treinadores portugueses. André Villas-Boas, Vitor Pereira, Domingos Paciência ou Jesualdo Ferreira, para centrar-nos nas figuras de topo, não foram propriamente amigos do jogador português, relegando-os demasiadas vezes para um segundo plano mediático e desportivo injustificado. Como consequência dessa realidade, hoje a liga portuguesa continua a ser um oásis de oportunidades para as jovens promessas que procuram, como outros jovens do país, sucesso noutras paragens. Os casos de Bruno Gama, Paulo Machado, Vieirinha, Salvador Agra, João Freitas, Danilo Pereira estão aí e não há nenhum plantel de um grande português que possa presumir de ter, nos seus 25 jogadores, atletas melhores e mais bem preparados do que estes para ter um papel importante na equipa. Agora e amanhã.
Se Jesus não acredita que André Gomes, Luisinho, André Almeida ou Miguel Rosa têm um real potencial de futuro mas encontra-o em Melgarejo, Ola John, Enzo Perez ou Bruno César, parece claro que a realidade dificilmente mudará nos próximos anos.
As equipas B têm dado os primeiros passos para recuperar o tempo perdido e começam a ver-se as diferenças entre a gestão do Sporting, forçado tantas vezes a recorrer à prata da casa (apesar da última gestão presidencial ter mudado a política, para pior), que lidera a Liga Orangina, para a do FC Porto, que há muitos anos que deixou de procurar manter o espírito do dragão em casa e procura nos negócios sul-americanos lucro para manter a estrutura gigantesca criada à volta da sua SAD viva. O Benfica, encontra-se no meio, com jogadores de potencial para explorar mas com um treinador, que apesar do apoio da imprensa, tem-se mostrado incapaz em três anos de o fazer com jogadores nacionais potenciando a sua inevitável saída para outras partes.
Num exercício oportunista de pura retórica, poderia formar-se um onze de jogadores nacionais só com futebolistas lusos descartados ou sem tempo de jogo entre os três grandes para descobrir que Mika, Luisinho, Tiago Ilori, Tiago Ferreira, Nuno Reis, João Mário, Sérgio Oliveira, André Gomes, André Almeida, Bruma, Hugo Vieira, Castro, Nélson Oliveira, Adrien, André Martins ou Ricardo Esgaio estão aí, à espera da sua oportunidade.
Em 1991, quando Portugal venceu o seu segundo Mundial de sub-20, numa tarde inesquecível para o futebol português, a maioria dos jogadores presentes no estádio da Luz já tinha disputado minutos com a primeira equipa do seu clube. Uma época de crise que forçou os clubes a virar-se para a prata da casa. Antes da lei Bosman, antes da liberalização do mercado, sim, mas com um olho agudo numa geração de jogadores que teve oportunidade de mostrar o que valia. Nem todos chegaram longe, muitos ficaram logo pelo caminho e uns tornaram-se Luis Figo e Rui Costa e outros Paulo Alves e Fernando Brassard. Mas o facto de terem tido a oportunidade significou que a base do sucesso da Geração de Ouro se fez à base de minutos nas pernas em jogos competitivos, não de retóricas falsas e oportunistas.
Os realmente bons emigraram cedo, os que tiveram nível para permanecer nos clubes de topo fizeram parte da história da liga portuguesa na década seguinte e houve, inevitavelmente, aqueles que a história esqueceu. Se a situação não se alterar rapidamente, esta lista hipotética de 16 jogadores, uma equipa na sua essência, pode seguir esse caminho.
Jesus teve o mérito de colocar os jogadores em campo mas retirou-se a si mesmo o prazer do sucesso ao criticar o seu real valor e - com ele - o valor da liga portuguesa que é, no fundo - apesar de na sua cabeça o Benfica ser um candidato a vencer a Champions League - o seu objectivo real. Aquele que tem falhado nos últimos anos apesar de ter tido todas as condições para fazer bem melhor. As suas palavras, honestas na sua essência, não deixam de espelhar o que se passa nas entranhas do futebol de um país que teve uma selecção finalista num Mundial de sub-20 para agora não contar com nenhum jogador dessa equipa como, e já nem dizemos titular, suplente regular nas suas formações de topo. Enquanto o Braga se "nacionaliza", com jogadores nacionais descartados pelos grandes (Viana, Amorim, Micael, Coelho, Beto), os grandes mergulham no mercado para procurar soluções que encontrariam mais baratas dentro de portas. Mas sem paciência, sem tempo e sem vontade de remar com um objectivo comum (basta ver o número de jogadores estrangeiros nas equipas B, especialmente na do FC Porto), há pouco mais que se possa fazer.
Portugal, que sobrevive com a mesma geração há largos anos sem poder apresentar alternativas válidas, sofre com a cegueira dos dirigentes e técnicos dos seus principais clubes. Há uma geração de futebolistas que, com minutos nas pernas, como demonstra Pizzi na Corunha, pode dar um salto qualitativo importante que permite uma renovação sustentada à medida que os Moutinho, Ronaldo, Pepe e companhia se comecem a aproximar da idade limite. Nomes com potencial não faltam e aos 16 citados poderiam juntar-se mais uma dezena de jogadores espalhados pelo estrangeiro ou por equipas portugueses de menor perfil. Falta confiança, faltam jogos, faltam erros, faltam momentos que definem carreiras para inverter a tendência. Os golos e exibições de Luisinho ou André Gomes são uma boa notícia para quem acredita que nada está perdido. As palavras de Jesus uma arma útil para os pessimistas que pensam que, apesar da qualidade, o futebolista português está condenado ao ostracismo. Tal e qual como o país e as suas gentes.
De Portugal já ninguém se surpreende no "planeta futebol" que acabe tropeçando nos jogos de qualificação mais fáceis. Não é uma sina, como os mais supersticiosos podem pensar, mas sim reflexo de uma selecção que funciona melhor como "underdog", em elemento de bunker mental e num futebol de reacção. Os resultados superlativos do último Europeu deixam claro que o problema de jogo continua a agravar-se nos jogos mais menosprezados na mente de técnicos e jogadores pela absoluta falta de mentalidade competitiva que está por detrás do sucesso de qualquer equipa ganhadora.
Se perder em Moscovo é um mau resultado, porque uma qualificação num grupo destas características quase sempre é um mano a mano, empatar em casa com a Irlanda do Norte é voltar às calculadoras precoces, ao sentimento de pequenez que transmite a selecção portuguesa longe dos grandes palcos. Empatar num jogo de qualificação não é um fenómeno anormal. Mas o empate de Portugal tem pouco a ver com o épico 4-4 do Alemanha e Suécia ou o agónico 1-1 do Espanha vs França.
Primeiro porque estes foram duelos entre rivais directos, algo que a Irlanda do Norte jamais será. E depois porque, sobretudo, não é novidade. Qualificação atrás de qualificação, desde 2004, que Portugal tropeça com os mais inesperados rivais e obriga-se a si mesma a fazer cálculos com os dedos, como um miúdo da primária, para sonhar com grandes gestas. Há três anos um jornal português publicou na capa, depois de um resultado similar, "Adeus África". Portugal acabou por se qualificar. Tem-no feito de forma consecutiva desde 2000 para todos os grandes torneios, um feito histórico. Mas sempre com essa dose de sofrimento que nos reduz à condição de pequenez futebolística aos olhos do Mundo.
A presença de Cristiano Ronaldo, como antes de Luis Figo, Deco e Rui Costa, dá a Portugal uma aura de importância aos olhos do Mundo mas quem está dentro do Mundo do futebol sabe que, em fases de qualificação, o comportamento da equipa das Quinas assemelha-se sempre mais ao de uma selecção de segundo nível a quem o cartaz de cabeça de série nunca funciona muito bem.
Portugal não sabe competir como favorito. Não sabe pensar e organizar o jogo, ditar os tempos e os modos em que o rival é forçado a jogar. Deixa-se levar sempre pela corrente, pelos humores do adversário e acaba sempre por ter de reagir quando se lhe exige controlo e acção. Esteve a perder com o modesto Luxemburgo, com a Rússia e com a Irlanda do Norte e na soma dos três jogos conseguiu quatro pontos contra os nove dos russos. Não que a equipa de leste seja uma superpotência, apesar de ter todas as condições para vir a sê-lo nos próximos anos, a começar pelo seleccionador, um competitivo nato chamado Fabio Capello. Mas nestes duelos a condição de superioridade técnica, evidente, conta menos que a vontade de vencer e o savoir faire que sempre faltou a Portugal. Nos sprints finais a mentalidade dos jogadores e técnicos é alterada pelas urgências e os play-offs transformam-se numa cruzada de sofrimento rumo à glória. Fica bem à selecção esse espírito épico mas desnecessário se as coisas fossem bem feitas desde a raiz. Ninguém dúvida agora que recuperar seis pontos a esta Rússia é missão quase impossível e que os duelos contra Israel serão fundamentais para garantir o lugar no terceiro play-off consecutivo.
O fenómeno é extensível a vários mandatos de seleccionadores e a vários jogadores que é difícil repartir culpas com facilidade.
Trata-se, sobretudo, da falta de gene ganhador da selecção lusa, aquela que pior ratio histórico tem em grandes provas internacionais, a única que nunca venceu um torneio apesar de quatro semi-finais e uma final disputadas. Num país de 10 milhões isso poderia até ser um êxito, e de certa forma é-o, se não se desse o facto de países mais pequenos tivessem ultrapassado essa realidade sócio-económica precisamente por possuir o killer-instinct que sempre falha quando Portugal sobe ao terreno de jogo.
A equipa das Quinas jogou com a Irlanda do Norte da mesma forma que joga sempre quando não tem de temer o rival.
Desconcentrada, tímida, sem vontade de competir. Uma sensação de falsa superioridade moral que acredita que a bola acabará por entrar porque nós somos quem somos e eles só são quem são. A história está cheia de exemplos de rivais como os irlandeses que fizeram a Portugal o que a equipa lusa costuma fazer às selecções grandes nos torneios onde realmente brilha. Nessas provas, o espirito de bunker formado nas concentrações, a sensação de nunca ser favorito e partir sem pressão, é suficiente para deixar ver outro rosto de Portugal. Em 2004 os nervos puderam com a estreia num Europeu que estávamos fadados a ganhar. Em 2006, num dos grupos mais acessiveis da história, ninguém deslumbrou nos jogos iniciais e quatro anos depois Portugal voltou a ter dificuldades em afirmar-se como uma selecção a respeitar. Para não falar no medo com que se jogou com Brasil, Espanha e Alemanha nos torneios seguintes. Mudam os técnicos, mantêm-se os problemas emocionais.
Tacticamente este Portugal é igual ao do último Europeu, mas sem a pressão e critério que desaparecem quando a cabeça não acompanha. Ronaldo não brilha tanto nestes jogos talvez porque sabe que não há tantos olhos em cima, tantos votos por contar. Nani desaparece ainda mais no buraco negro em que se está a transformar a sua carreira e a defesa desliga de forma colectiva abrindo espaços e deixando Patricio exposto ao mais inesperado dos rivais. O golo irlandês não foi muito diferente do golo russo e a falta de reacção foi idêntico. Num país sem um lote de jogadores de qualidade para escolher até as baixas de Coentrão e Meireles se notam, especialmente quando o seleccionador aposta na versão de "sargentão" e na sua família e prefere excluir Eliseu e Paulo Machado, jogadores que aportariam muito mais do que Miguel Lopes e Ruben Micael. Sem um goleador, especialmente porque o jogador das 100 internacionalizações tem um ratio goleador monumentalmente inferior com a sua selecção do que com os seus clubes, e sem um pensador de jogo, que João Moutinho voltou a provar ser incapaz de ser, a coluna vertebral da selecção desfaz-se com tremenda facilidade e deixa as suas fragilidades expostas á mais cínica e oportunista das selecções.
Esse velho fado dificilmente mudará no futuro se não houver uma profunda mudança de mentalidade a nível geral no futebol português, similar às produzidas em França, Espanha e Alemanha, países que estão agora a capitalizar as metamorfoses internas da última década ao nível de todos os escalões do seu futebol. Portugal terá de jogar contra o tempo e provavelmente vencerá com solvência os duelos com Israel e numa boa noite pode até mesmo bater os russos em casa, particularmente se jogar com a mesma atitude que tanta falta lhe faz nos jogos que realmente importam. Mas dificilmente se livrará de um novo play-off para chegar de novo ao Brasil sem a aura de favorita como tanto gosta. Depois, será a altura dos seleccionadores e jogadores que se mostraram incapazes de competir contra selecções dos últimos escalões do futebol europeu reclamar o protagonismo e grandeza nos resultados. Ídolos de pés de barro.
Sai Leandro Damião, entra Kaká. Uma mudança que provoca um verdadeiro terramoto táctico no jogo ofensivo do Brasil de Mano Menezes. Uma mudança que aproxima o escrete canarinho da sua herança histórica, defensora do conceito de falso 9 muito antes do futebol actual sequer ter sonhado com tamanha "inovação". Este Brasil ainda apresenta falhas importantes para ser considerado favorito no terreno de jogo a vencer o seu Mundial. Mas se a experiência da última semana se tornar em realidade, o concerto de classe e futebol dos brasileiros está garantido para o próximo Campeonato do Mundo.
Circula a bola com fluidez. Move-se de lado a lado do campo.
Sem posições fixas, sem ataduras tácticas visíveis a olho nu (porque elas estão sempre lá), o quarteto ofensivo brasileiro desdobra-se com naturalidade, talvez lembrando-se de outras eras, de outras histórias, de um futebol que foi perdendo com a sua progressiva europeização. Em 1990 Carpeggiani chocou o Mundo apresentando um 3-5-2 calcado ao modelo argentino tão em voga na América Latina e o Brasil desiludiu como nunca. Quatro anos depois o músculo substituiu o talento, os buldozzers jogaram no lugar dos pintores e a eficácia do único génio irreverente fez a diferença e o Mundial chegou, 24 anos depois. Em França, Zagallo procurou aproximar-se mais ao modelo europeu mas cedendo alguma criatividade ao seu ataque e o titulo ficou a um pequeno passo para os brasileiros e um imenso salto para Ronaldo. O homem que apareceu, quatro anos depois, para ajustar contas com a história numa equipa que jogava num 3-5-2 que só era viável porque Roberto Carlos e Cafú são tão inimitáveis como os três R´s da frente. Para os dois Mundiais seguintes passou-se do 8 (um ataque só de avançados e sem trabalho de meio-campo) ao 80 (uma equipa sem alma de ataque que apostava tudo no músculo do miolo). Nenhum dos projectos resultou. Mais do que isso, nenhum destes modelos tinha sequer similaridades à escola brasileira. À dos três Mundiais, entre 1958 e 1970, à do Brasil de Telé Santana, à que acreditava no papel do individuo dentro do colectivo como elemento realmente diferenciador na hora da verdade.
Talvez este seja um ponto de inflexão.
O Brasil que renegou da sua condição parece interessado em redescobrir-se. Talvez porque jogará o Mundial em casa e tem contas para ajustar. Nenhuma selecção grande que teve recebido alguma vez um Mundial falhou em vencê-lo. Uruguai em 1930, Itália em 1938, Inglaterra em 1966, Alemanha em 1974, Argentina quatro anos depois e França em 1998. Os brasileiros são a única grande nação que falhou em casa na hora da verdade. Nunca nenhum país que tenha recebido por duas vezes um Mundial, salvo o México, viveu duas derrotas do anfitrião. Esse é um peso sério para os ombros de Menezes. Especialmente se desiludir não só no resultado mas, sobretudo, no terreno de jogo.
O falso 9 é uma falsa questão, uma invenção tão antiga como os mágicos magiares de princípios da década de 50.
Não foi uma invenção actual, espanhola ou blaugrana, e ninguém a levou ao nível de lenda como a selecção brasileira de 1970. A de Zagallo, o homem por detrás da metamorfose do 4-2-4 para o 4-3-3 e o homem que tem igualmente o crédito de ter inventado o 4-2-3-1 no Mundial do México. A diferença é que esse um, esse elemento avançado diferenciador, Tostão, actuava no terreno de jogo como um mais do tridente que o precedia composto por Jairzinho, Rivelino e o imenso Pelé. Nenhum dos quatro jogava numa posição fixa e alternavam regularmente posições na linha ofensiva. Jairzinho foi o melhor marcador do escrete, apontando em todos os jogos, um feito histórico, aparecendo tantas vezes no espaço que a movimentação de Tostão deixava para os colegas. A consagração dessa selecção, uma das melhores e mais excitantes da história, foi também a consagração de um modelo sem amarras tácticas que muitos pensavam ser possível só no Brasil.
Doze anos depois o Brasil de Telé Santana tentou emular o mesmo ideário, num 4-2-2-2 em que os quatro da frente trocavam de posição de forma constante, com a maioria dos golos a ser marcados pelos médios ofensivos e não pelos dianteiros. Mas a ausência de um título pesou na imagem que deixou no futuro e à medida que o futebol se metia em corsets tácticos vários, a ideia perdeu-se no tempo até que Pep Guardiola, primeiro, e Del Bosque, depois, a aplicaram com sucesso no futebol espanhol.
Kaká foi a pedra basilar no modelo de Menezes que recupera essa herança.
Até agora o seleccionador tinha procurado jogar quase sempre com uma figura de ataque, habitualmente Leandro Damião. Mas a verdade é que ao Brasil falta-lhe essa figura de goleador com que a história tem abençoado os brasileiros nas grandes gestas desportivas. Talvez com essa consciência, talvez porque a herança táctica brasileira pedia algo especial, Menezes decidiu reunir os seus jogadores mais criativos e distribui-los pela linha de ataque sem posições fixas.
A movimentação de Hulk, Neymar, Kaká e Óscar é o grande quebra-cabeça das defesas contrárias. Jogam no espaço, pedem a bola, movem-se e descolocam os rivais com a precisão de um relógio. Apoiam-se no imenso trabalho físico e táctico da dupla Ramires-Paulinho, herdeiros dessa memória de carregadores de piano do passado, e pintam o seu futebol de forma tranquila e cúmplice. Quando saem, é para dar lugar a outros interpretes da mesma sinfonia, a Lucas Moura, a Giuliano, a Thiago Neves e só, ocasionalmente, ao caça-golos Damião.
Menezes pode avançar com uma linha de individualidades com que talvez só o futebol espanhol e alemão possa competir. Pode dar-se ao luxo de abdicar de um renascido Ronaldinho Gaúcho. Pode esquecer-se até de Jadson ou Willian. Para não falar de Paulo "Ganso" Henriques, que parece ter perdido definitivamente este comboio. De certa forma conta com as condições perfeitas para montar uma orquestra deste estilo. Dois laterais ofensivos - Alves e Marcelo - dois centrais de garantias - Thiago e David Luiz - e um meio-campo tacticamente impecável. Os jogos mais recentes, frente a dois rivais asiáticos, deixaram a nu alguma falta de coordenação entre o ataque e a defesa e talvez por isso o seleccionador brasileiro tenha guardado sempre as substituições para os momentos finais. Para ganhar o grupo, o onze, a equipa que os pode levar ao hexacampeonato do Mundo.
De certa forma, a este Brasil falta-lhe a estrela planetária (que Neymar ainda não é) que tem a Argentina, o espírito coral da selecção alemã e a classe superlativa da equipa espanhola, aqueles que são os reais favoritos a vencer o próximo Mundial. Mas a um ano e meio de arrancar o torneio, Menezes tem tempo para trabalhar a sua ideia. Ter encontrado com o modelo ideal é o primeiro passo. A partir daí a herança histórica brasileira e o talento genuíno dos seus interpretes terá de fazer o resto para fazer dessa condição de favorito emocional o primeiro passo para um torneio para a posteridade.
Espanha bateu o recorde de posse de bola num só jogo. 80%, um número que seria assustador não fosse habitual ver as exibições da Roja em números que não dormem tão longe como isso do novo recorde obtido. Foi em Tiblissi. Foi com a Geórgia. E terminou com uma apertada vitória a 1, com um golo a cinco minutos do fim. Espanha sente a bola como nenhuma selecção do Mundo. Por isso sente-se e transforma-se numa equipa quase invencível. Mas ter sempre a bola não significa vencer sempre e as vitórias pela mínima transformaram-se, mais do que numa imagem de marca, num suspiro de ansiedade que gera nos seus adeptos o jogo rendilhado dos espanhóis.
Há quem prefira um futebol intenso, rápido, de trocas sucessivas de golpes. De lances, de oportunidades, de golos. De muitos golos.
Quem goste de um modelo mais britânico, mais parecido a um combate de boxe onde ambos os lutadores se olham nos olhos, sem medo, e desferrem murros sem piedade até que, seja por pontos seja por k.o., vença. Essa é a escola original, aquela que mais perto se encontra da verdadeira origem do futebol moderno. Um futebol que privilegia os golos por cima de tudo, que os valoriza a eles e aos seus autores por cima de todos os outros. Um futebol de acção, de emoção, de suspense, de intensidade.
E no entanto esses adeptos vivem dias negros, dias em que o futebol de ataque e contra-ataque, de troca de golpes, tem-se visto suplantado pelo futebol de posse. O futebol em que a bola, e não as balizas, é protagonista. O futebol onde a bola é minha e de mais ninguém, onde a equipa descansa com a bola nos pés, em trocas de bola controladas, em longos momentos de possessão, um futebol onde as oportunidades se contam pelos dedos das mãos mas, quando surgem, parecem inevitáveis. E, sobretudo, um futebol onde o golo parece um complemento e não um fim, um complemento que tarde ou cedo chegará, inevitavelmente. Um futebol que deriva sobretudo da abordagem centro-europeia, dessa que se divorciou das origens, primeiro com a Escócia e mais tarde com os escoceses que viajaram por esse mundo fora e encontraram sobretudo na bacia do Danúbio, espaço para explicar as suas ideias. Esse é o futebol dos dias de hoje, o futebol mais admirado e, sobretudo, o mais titulado.
É o futebol de Espanha, de uma selecção que aprendeu a fazer da bola a sua arma, e da posse a sua grande filosofia. 80% de posse de bola significa, mais do que os outros 20% possam significar, uma asfixia absoluta. Um futebol monólogo que vence troféus com uma regularidade histórica ao mesmo tempo que perde adeptos entre os neutrais que se deixam levar pela ilusão da emoção.
A bola é para o jogador espanhol uma continuação da chuteira.
Ao contrário da maioria dos futebolistas, o espanhol não quer desprender-se da bola da mesma forma que não quer jogar descalço apesar de, na maioria dos casos, se o fizesse nem se notaria a diferença. A bola trata por tu jogadores internacionais respeitados em todo o planeta de Xavi a Iniesta, passando por Silva, Cazorla ou Fabregas. Mas vejam um jogo da liga do país vizinho e entendam como para Isco, Thiago, Iturraspe, De Marcos, Gabi e Beñat, sem esse protagonismo mediático, a sentem da mesma forma, com a mesma paixão, com a mesma inevitável sensação de familiaridade.
O jogo da selecção espanhola tem sobretudo uma falha que o separa da mais absoluta perfeição. A eficácia. Contando com homens que sabem criar, planear e sonhar com os melhores assaltos, o estranho é ver a equipa espanhola assaltar com regularidade as redes contrárias. Se na final do Euro 2012 os italianos sofrerem uma humilhação igual à de 1970, com os mesmos golos à mistura, a verdade é que em torneios de prestigio internacional o jogo da equipa espanhola se mede pela falta de eficácia dos seus dianteiros.
A questão não está em vencer por 1-0 apenas porque é suficiente. Um 1-0 nunca o é e grandes equipas descobriram que os deuses de futebol não permitem em demasia que se jogue tanto no limite. A derrota com a Suiça, em 2010, e o sofrimento com a Croácia, em 2012, são bons exemplos dessa realidade.
Espanha sabe que dificilmente sofrerá golos. Não porque tem o melhor guarda-redes do mundo (e o melhor suplente), nem uma das melhores linhas defensivas do planeta. Sabe porque tem a bola, porque não a perde, porque o rival tem entre 20 a 30% de posse num jogo e isso significa que as oportunidades serão escassas e estão, quase sempre, debaixo controlo. Casillas não sofre golos num jogo oficial há seis encontros. Quase nada. Aragonés e Del Bosque sabiam o mesmo que Hogan e Sebes já ensinavam há tantos anos atrás: a bola é tua, o jogo é teu, o resultado eventualmente também o será.
Mas o que continua a marcar distâncias entre esta Espanha e as grandes equipas da história está no outro lado. Se no meio-campo (onde está a esmagadora maioria dessa posse de bola, uma posse de controlo, de descanso, de artimanha) dificilmente houve na história uma equipa com o mesmo à vontade desta selecção, na área Espanha continua a ser uma selecção dubitativa, uma selecção sem esse killer-instinct que se tornou na trademark de outras das suas rivais nesse hall of fame futebolístico.
Espanha continua a aparentar ser uma selecção invencível, sobretudo porque faz da defesa a sua virtude, sem ter necessidade de defender em excesso. É uma selecção que se define exclusivamente pela bola que conduz como ninguém. Mas como é uma selecção de bola e não de baliza, Espanha também tem criado um complexo de angustia nos seus adeptos, habituados a sofrer em demasia até ao momento final em que surge o golo, habituados a esperar levantar-se da cadeira uma vez em cada 90 minutos. Falta ao futebol da Roja aproveitar ainda mais as poucas oportunidades que gera, com autoridade, para aproximar-se um pouco mais desse Olimpo futebolístico, deixando de ser uma selecção de bola para passar a ser uma selecção da bola.
Arranca a fase de qualificação para o Mundial de 2014 na zona europeia. Com o resto do mundo em etapas mais avançadas, os europeus começam o sprint maratoniano que abre as portas a um torneio que ninguém quer perder. Portugal repete como cabeça de série e como máximo favorito a marcar um lugar antes de tempo nesse reencontro lusófono com Vera Cruz. Um caminho traiçoeiro e que procura saber se a equipa das Quinas aprendeu a meter-se por desvios perigosos.
Desde 2006 que Portugal não consegue vencer o seu grupo de apuramento e nas últimas duas ocasiões falhou mesmo a qualificação directa para um grande torneio internacional.
No entanto, nas provas em que acaba sempre por chegar, a performance acaba por superar a maioria das equipas que manejam com mais tranquilidade e eficácia a fase de qualificação. Dirão os adeptos que preferem sofrer antes para desfrutar depois, mas o problema não está nem na prestação final nem na angústia que significa decidir um ano de trabalho num jogo de ida e volta. Se em 2008 o segundo lugar do grupo, ganho pela Polónia, serviu pelas contas que evitaram que os segundos fossem forçados a mergulhar num play-off, a partir daí Portugal por duas vezes encontrou a Bósnia no caminho para a África do Sul e Ucrânia.
Sempre partindo como cabeça de série, consequência da brilhante trajectória da última década e meia, o conjunto das Quinas encontra sérios problemas em exibir-se de acordo com o prestigio acumulado em fases de apuramento. É uma velha doença do futebol português que durante 32 anos marcou presença apenas em quatro provas internacionais tropeçando sempre na fase prévia por este ou aquele motivo. Desde o França 98, e dessa maldita expulsão de Rui Costa na Alemanha, a equipa das Quinas nunca falhou um grande torneio mas isso não significa que não tenha deixado para os últimos dias a confirmação do bilhete de avião.
Paulo Bento mostrou no último Europeu que é capaz, num microcosmos particular, de criar um grupo motivado, disciplinado tacticamente e preparado para saber sofrer. A prestação de Portugal superou todas as expectativas e o terceiro posto, medalha de bronze merecidíssima, foi um prémio a essa postura profissional que tantas vezes falhou no passado. No entanto, os problemas crónicos do futebol português não desaparecem por um bom torneio de Verão, e notam-se sempre mais nas longas viagens por esse continente fora e nesse pulso com os clubes mais poderosos do continente do que propriamente em Mundiais e Europeus.
Bento sabe que tem um grupo traiçoeiro.
Na teoria o apuramento directo tem de ser assumido desde o primeiro dia, sob pena de Portugal continuar a cair nesse eterno fado de vitimização que tão bem cai na pele lusa. Portugal não é só a melhor equipa entre as seis do grupo como é também aquela que parece mais preparada para chegar comodamente ao Brasil.
Está a anos-luz do futebol duro e intenso dos irlandeses de Belfast e arredores, dos homens de Israel e, evidentemente, de luxamburgueses e azerbeijanos. No duelo directo com a Rússia, uma potência por direito próprio, Portugal tem a vantagem de ser um projecto em desenvolvimento avançado enquanto que os russos apostam forte não em 2014 mas sim no seu próprio torneio de 2018. Para isso contrataram Fabio Capello, um homem duro que fará progressivamente a triagem da geração que falhou na Polónia estrepitosamente e que dará passo a uma nova vaga de promessas que estão ainda a dar os primeiros passos como internacionais.
Portugal, pelo contrário, não apresentará mudanças face aos últimos anos. Por um lado é um aspecto positivo porque garante ao técnico que a sua "família", como sucedeu com Scolari, lhe dará tranquilidade e confiança, seguro que os seus conceitos tácticos e posturas serão bem assimilados. Ninguém espera que em dois anos o papel de Cristiano Ronaldo, Nani, Raul Meireles, João Moutinho, Pepe, João Pereira, Fábio Coentrão e Bruno Alves seja questionado e com Rui Patricio como homem de confiança nas redes, só o eterno debate do dianteiro e do médio mais defensivo podem levar Bento a fazer alterações a médio prazo.
Nelson Oliveira terá em Espanha a oportunidade e os minutos que não teve na Luz para justificar a aposta que o técnico tem feito e Miguel Veloso, na Ucrânia, passará um curso intensivo que não lhe dará espaço para erros. Não se vêm caras novas no horizonte para um primeiro plano que nos planos do seleccionador é fundamental. O técnico utilizou apenas 16 jogadores no último torneio e salvo lesões, é dificil pensar que aumente em demasia o leque nos jogos a eliminar.
No entanto esta realidade, como já sucedeu no final dos dias de Scolari, esconde sobretudo a incapacidade do futebol português de produzir ao mesmo ritmo de sempre novas esperanças para o futuro. Os projectos das equipas B podem ser uma opção mas demorarão até se afirmarem definitivamente como alternativas e só a crise económica dos clubes os poderá forçar a apostar no producto nacional, quase sempre mais barato, e na sua própria formação. Os fracos desempenhos das selecções de sub-21 e sub-19 no entanto não escondem uma realidade difícil para um futuro próximo e até bem depois de 2014 ninguém espera uma mudança de cromos substancial nos planos da equipa das Quinas.
A fase de qualificação arranca com um jogo fácil. Desses em que Portugal se maneja francamente mal.
Portugal ensinou o mundo a preparar-se para uma equipa que rende muito bem com nomes consagrados e sofre em demasia com selecções sem perfil competitivo. As viagens ao leste da Europa tornaram-se, na última década, num problema sério e lidar com o kick-and-rush das Irlandas sempre foi um problema no esquema de jogo dos lusos. E serão esses os jogos fundamentais da fase.
Portugal poderá ter um duplo duelo com os russos - que em 2005 foram presas fáceis, eles que viviam então também uma fase de profunda reestruturação que resultou no excelente Euro 2008 - mas se não somar a totalidade dos pontos contra os restantes rivais, acabará por ser forçada a jogar demasiado em pouco tempo. Os oito confrontos com israelitas, irlandeses, luxemburgueses e azerbeijanos não podem saldar-se com menos do que 22 pontos conquistados, vantagem que permitirá um tropeção ou uma má noite em Moscovo ou na recepção a uma selecção russa que está orientada por um homem especialista em duelos de elevada pressão psicológica e que terá também a oportunidade de limpar a imagem depois de um período à frente da selecção inglesa cheia de interrogantes.
Bento, que fez parte como jogador de muitos desses jogos onde se perderam pontos infantilmente no passado, sabe perfeitamente que a margem de manobra é reduzida. Estar no Mundial de 2014 mais do que uma obrigatoriedade, é uma profunda necessidade.
Portugal tem vivido de um ranking favorável que lhe tem permitido escapar a confrontos com rivais mais poderosos. Se não há uma geração de futuro capaz de pegar na herança deixada por Cristiano Ronaldo e companhia, a selecção tem de pelo menos manter as performances desportivas em alta quando ainda dispõe de jogadores de elite como o extremo do Real Madrid, para garantir que ao longo desta década, as fases de qualificação que venham sejam igualmente caminhos com rosas mas sem espinhos.
Depois de falhar um Mundial, em França, que podia ter significado o arranque precoce da "Geração de Ouro" junto de uma imensa comunidade emigrante que ficou sem ver os seus heróis, falhar um torneio num país com quem Portugal partilha mais do que a língua seria um desastre não só futebolístico mas também sociocultural.
Uma das principais vantagens do calendário que esperam os homens de Bento está no facto de que nenhum dos duelos com os russos ficam reservados para o sprint final. Em Outubro e Junho os mano a manos entre eslavos e ibéricos deixaram pistas mas não serão determinantes. Portugal tem espaço para progredir com tranquilidade e conseguir assim o feito histórico de somar a sua oitava fase final consecutiva, um feito reservado apenas às grandes selecções mundiais.
Há algo no futebol inglês que seduz. Talvez a sua eterna incapacidade para impressionar a todos. Ao contrário de holandeses, brasileiros, espanhóis, franceses ou argentinos, ninguém se lembra de uma selecção inglesa que tenha reunido um consenso universal. É sempre o patinho-feio dos torneios, a equipa que quer e não pode, a selecção de uma liga que só encanta pela legião estrangeira que lhe dá cor e forma. Nesse panorama cinzento a FA já tentou seleccionadores de distintas personalidades e experiência. Agora opta por Roy Hodgson. O técnico mais cinzento para uma selecção em que já ninguém consegue acreditar.
Fabio Capello saiu pela porta pequena como não lhe é habitual. Estava farto. E Capello farta-se depressa das coisas.
Farto da pressão dos media, da relação dos jogadores e da incapacidade crónica do futebolista inglês a aprender conceitos de jogo colectivos. A prestação no Mundial da África do Sul foi um desastre. Muitos culpam a falta de arrojo do italiano, outros o espírito bélico dos próprios jogadores, incapazes de lidar com o ritiro inventado por Capello. Estava claro que este casamento não ia ter final feliz porque Capello, ao contrário de Giovanni Trapattoni, é demasiado inflexível. E só alguém ainda mais hermético do que um técnico italiano. Um jogador inglês.
O cinzentismo da equipa que deixou Capello contrasta com o excesso de juventude e inexperiência que parece estar reservada para as próximas concentrações dos Pross. Como sucede com o caso português, a Geração de Ouro inglesa afinal não o foi e há um hiato tremendo entre jogadores com lugar cativo no onze e novos nomes que bebem já outros conceitos aprendidos numa Premier League que começa a assimilar algumas das características do jogo de toque continental. É preciso relembrar que a única vez que a Inglaterra não jogou como a Inglaterra é suposto jogar, os leões foram campeões do Mundo. Essa ideia ronda pela cabeça de muitos jornalistas e treinadores britânicos e depois da consagração do modelo espanhol, há quem tenha a tentação de seguir esse ideário deixando para trás décadas de kick-and-rush e desilusões. A tentação inicial era procurar dentro de casa alguém que fosse seguir esse caminho. O treinador inglês é um oásis de originalidade e há tão poucos técnicos de sucesso na Premier de origem inglês (a maioria são os escoceses ou irlandeses) que reduzir o leque de candidatos não era tarefa complexa. Harry Redknapp parecia, desde o primeiro instante, o mais claro favorito. Mas este não é um país para suspeitos, pode dizer-se, e apesar de ilibado o nome de Redknapp ficará sempre ligado ao escândalo de fuga de impostos, algo que a FA nunca viu com bons olhos. A recusa do treinador em abandonar de imediato o Tottenham Hotspurs - então a lutar pelo titulo - também não ajudou e a federação quis provar com o treinador dos sub-21, Stuart Pearce. A falta notória de habilidade de Pearce e a péssima segunda volta dos homens de Redknapp acabaram com as duas opçoes e o vazio voltou a aparentar ser maior do que nunca. O dinheiro não comprou Mourinho e Guardiola e no meio do desnorte, o cinzentismo voltou a imperar.
Roy Hodgson é o mais continental dos treinadores ingleses.
Por continental não digo pelo estilo de jogo. Não é uma reencarnação de Jimmy Hogan como Niels Egen era um primo afastado de Stan Cullis. Mas grande parte da sua carreira foi feita longe da Velha Albion. Foi seleccionador da Finlândia, dos Emirados Arabes Unidos e, sobretudo, da Suiça a quem levou ao Mundial de 1994 em grande estilo para depois assinar uma fase final deprimente. Foi treinador principal do Inter de Milão e não só não venceu o Scudetto como perdeu a final da Taça UEFA com o Schalke 04. Em Inglaterra passou toda a carreira em equipas de low profile até que levou o modesto Fulham à final da Europe League, perdida, claro está, nos últimos minutos diante do Atlético de Madrid. Um logro emocional que o levou a Anfield Road onde assinou talvez o pior arranque de época da história do Liverpool. Não durou meio ano (não que Kenny Dalglish tenha feito muito melhor esta época) e acabou no West Bromwich equipa que luta por sobreviver com poucos recursos e menos imaginação ainda.
A um mês de que arranque o Europeu poderíamos imaginar mil treinadores diferentes para orientar a selecção inglesa. Menos Hodgson.
Talvez por isso tenha sido o escolhido.
Dele não se espera nada a não ser um low profile. Não é um inovador táctico apesar de ter bebido de várias culturas. Não é um lider de balneário e nem sequer é uma inspiração para os adeptos. E como já poucos esperam algo de uma equipa sorteada no mesmo grupo de uma França revitalizada, uma sempre complicada Suécia e a equipa da casa, Ucrânia, há quem pense mesmo que passar à segunda fase é algo a que os ingleses não podem ambicionar. Redknapp teria sido uma escolha de inspiração genuína mas o seu estilo de liderança provavelmente entraria em choque com o balneário. Hoddson formará consensos. Apesar de todos saberem que a geração de John Terry, Ashley Cole, Rio Ferdinand, Frank Lampard e Steven Gerrard tem os dias contados, a verdade é que não há jogadores de nivel internacional para substituir-lhes. Jack Whilshire, talvez a melhor aposta de futuro, está de fora do torneio por lesão. Wayne Rooney não jogará os dois primeiros jogos e nem Ashley Young, Danny Wellbeck, Phil Jones, Kyle Walker, Tom Cleverley ou Micah Richards têm o espirito de liderança e sangue frio que se exige nestes momentos.
Hodgson sabe que terá de formar uma equipa que capte o melhor de dois mundos. Terry jogará, Lampard também, Ferdinand e Gerrard terão os seus momentos. Hart resolveu, de momento, o problema da baliza mas a falta de cabeça de Rooney abriu outro no ataque. Entre Bent, Defoe, Wellbeck, Carroll e Sturridge estará a solução momentânea. No meio o enigma, entre o 4-4-1-1 e o 4-3-3, mais do que no dispositivo táctico nos nomes que sobem ao terreno de jogo e que podem fazer dos Pross uma equipa mais especulativa ou frontal. Conhecendo Hodgson, não esperemos milagres.
A eleição de Roy Hodgson como novo seleccionador inglês deixa claro que há federações que continuam a querer acreditar que um seleccionador é uma figura menor, de perfil baixo, que existe apenas para resolver problemas humanos durante duas semanas. São os que acreditam que os jogadores já vêm com as lições tácticas debaixo do braço e que apenas é necessário ordenar os nomes no tabuleiro. Essa postura britânico não é nova e não tem dado frutos positivos. O último grande técnico de vertente táctica que orientou a selecção foi campeão do Mundo. Todos os que o seguiram tentaram encarar as fases finais como meros torneios motivacionais. Todos falharam e o novo seleccionador sabe-o bem. O problema para os ingleses é que tão poucas expectativas num homem tão cinzento como é Hodgson podem ter precisamente o efeito contrário no balneário e o feitiço virar-se contra o feiticeiro. Sven-Goren Erikson sofreu-o na pele na Alemanha em 2006. E todos sabemos como esse filme acabou.