Contam à boca pequena nos corredores da Football Federation que os míticos leões do símbolo que a Inglaterra ostenta há mais de um século no peito há muito que se podiam ter transformado em gatitos. O peso da FA nas últimas duas décadas decaiu profundamente mas, apesar de tudo, o organismo que gere o futebol inglês ainda é um adversário temível. Michel Platini, mais diplomático que o seu mentor Sepp Blatter, entende isso melhor do que ninguém. A atribuição da final da Champions League ao estádio do Wembley para 2013, apenas dois anos depois de receber o evento, é precisamente uma manobra diplomática extremamente hábil do francês. Com esse gesto magnânimo a UEFA procura apaziguar os leões e transformá-los, uma vez mais, em dóceis gatitos.
Quando Sepp Blatter tomou o controlo da FIFA em 1998, conseguiu-o convencendo a influente FA de que o seu mandato beneficiaria o futebol inglês. Fugindo à disciplina de voto da UEFA, a Football Association ajudou a eleger o suíço e depois sentou-se à espera da recompensa.
Como tantas vezes acontece, Blatter fez precisamente o oposto e transformou os ingleses num do seu alvo preferencial. A derrota esmagadora na dupla candidatura mundialista - em 2006 e 2018 - em que os ingleses saíram sempre na primeira ronda de votações, a que se seguiram as habituais acusações de suborno, apenas reforçaram o afastamento entre FIFA e FA. Nada novo. Afinal os ingleses foram a única federação que ousou declarar guerra à máxima organização mundial. Um braço de ferro de duas décadas que nunca foi totalmente resolvido. Os ingleses sempre desconfiaram das organizações continentais e estes sempre afirmaram publicamente que a FA procurava sempre seguir um caminho distinto às restantes federações europeias. Mas o peso da FA, especialmente no Internacional Board - que promulga as leis do jogo - sempre convidaram à cautela. Até chegar Blatter, o incauto por natureza.
Se a FIFA sempre teve problemas com a FA, a UEFA não foi menos. Depois do duplo desastre de Heysel e Hillsborough, o máximo organismo europeu utilizou a Inglaterra como bode expiatório e castigou os clubes ingleses com uma prolongada ausência das provas europeias. Os ingleses não se esqueceram. Anos depois, a FA ajudou os clubes a criarem a Premier League, contra os desígnios da Liga, apoiada directamente pela UEFA. Os clubes venceram, a Premier League nasceu e as regras do jogo mudaram. Ao ver o sucesso do modelo inglês os restantes países da Europa perceberam que aquele era o modelo a seguir e começaram a afastar-se paulatinamente das suas federações nacionais. A longo prazo a Premier foi um golpe duro para a UEFA e foi também a base de partida para a formação do G14 que desafiou mesmo o destino do futebol europeu num longo braço de ferro. Michel Platini, então conselheiro pessoal de Blatter, tomou nota. Uns anos depois, quando o suíço o apresentou como candidato à presidência da UEFA, o francês procurou o apoio dos ingleses. Conseguiu-o. Meses depois das eleições colocou em prática as lições do seu mentor e de forma mais diplomática começou a tratar o leão inglês como um gatinho.
No meio deste contexto de conflictos pode surpreender o anuncio de que a final da Champions League 2013 volta a ser disputada em Londres. No mítico Wembley. Mas essa decisão faz parte da estratégia politica do presidente da UEFA. Ao contrário de Blatter, um dirigente muito mais autoritário, Platini segue o ideário de Maquiavel, divide e conquistarás.
Platini anunciou que o evento será mais do que uma final da Champions League. A final fará parte de uma homenagem da UEFA à própria FA, que nesse ano cumpre os 150 anos de existência. Parte de uma série de eventos de aproximação entre ambas as instituições que inclui um congresso extraordinário da UEFA na capital inglesa. O sucesso da final da passada época foi o pretexto logístico para os meios e adeptos europeus que não entendem como a UEFA pode permitir-se este tipo de atitudes e nem sequer proceder a uma votação entre diferentes candidatos. Afinal, não foi a UEFA que defendeu o aumento da categoria de elite para os principais estádios do velho continente, as celebres 4 estrelas? E não foi Michel Platini que defendeu que o futebol europeu tinha de ser levado a todos os cantos do continente?
Tudo isso é verdade mas Platini joga sempre com uma mão no bolso e outra na mesa.
O presidente da UEFA sabe que precisa de encontrar um equilíbrio entre as grandes potências e os pequenos países. O homem que defendeu a introdução da lei 6+5 (que minará os mercados das principais ligas), um modelo de salário inspirado na NBA, o fair-play financeiro e a redução de equipas das três principais ligas nas provas europeias tem-se afirmado como um defensor do futebol para todas as associações. Como Blatter, com os membros africanos, caribenhos e asiáticos da FIFA, distribuiu benesses, ajudas e apoio indiscutível às federações que não fazem parte da elite do jogo. Apoio a realização do Europeu de 2012 na Ucrânia e Polónia (apesar do risco que envolvia o projecto, como o tempo tem vindo a demonstrar) e há muito que declarou que gostaria de ver um Europeu na Turquia. Também aproveitou para anunciar que a Supertaça europeia, até agora um exclusivo do principado do Mónaco, passará para Praga, no coração da Europa. Uma jogada de charme que garante, de antemão, votos suficientes para uma terceira reeleição, em 2014. Ou, como todos suspeitam, uma base de apoio forte para suceder ao seu mentor, Sepp Blatter, nas próximas eleições da FIFA.
Só que para aplicar estas medidas impopulares junto das grandes ligas, Platini tem usado o jogo também como arma para as suas missões diplomáticas. O ano passado anunciou que a sua vontade era de que as finais da Champions League fossem exclusivas de estádios com mais de 70 mil lugares, enquanto que a Europe League poderia ser disputada em estádios entre os 50 e 60 mil lugares. Reforçando essa divisão, Platini entrega a gestão do principal evento desportivo às grandes potências - que são quem o sustenta financeiramente - e pisca o olho às grandes federações. Principalmente a FA. Nos últimos meses os homens da FA têm começado o seu próprio conflicto interno com a Premier League e as medidas da UEFA são bem vistas pelos leões de Wembley, para onde mudou a sua sede , para pressionar ainda mais os gestores dos principais clubes ingleses. Platini triunfa precisamente porque consegue, com estas simples medidas, dar à FA a sensação de grandeza que os directivos ingleses sempre gostaram de ostentar. Na realidade, na realpolitik do futebol, o que o francês consegue é desarmar a pressão britânica, desviando-a para confrontos internos e para a sua mediática luta contra a FIFA, enquanto continua a gerir o jogo do velho continente à sua maneira.
O fenómeno de Wembley será recorrente. A politica da UEFA, sob o mandato de Platini, garante que a Champions League é um feudo dos grandes e assim continuará. O que logrou com Londres repetirá, tarde ou cedo, com Madrid, Munique, Roma, Paris e Moscovo, que provavelmente serão anunciados como organizadores das finais dos anos seguintes. Com esse rebuçado, o francês aplaca as grandes potências continentais, afasta-os do ideário da Liga Europeia de Clubes e ganha margem de manobra para colocar em prática as suas medidas impopulares. Ao mesmo tempo continua a piscar o olho aos países mais pequenos e a cimentar a sua popularidade quando chegar a nova temporada de urnas. No meio deste jogo, como tem acontecido nas últimas duas décadas, a Football Association desembrulha um presente envenenado com a alegria de uma criança na véspera de Natal. O leão está apaziguado, a UEFA vence mais um round.
Como num filme de espionagem americano o volte-face na guerra de poder que tomou conta da FIFA nos últimos meses vai seguramente prender os espectadores até ao minuto final. Sepp Blatter venceu o pulso com Bin Hamman e forçou a sua retirada e exclusão do máximo comité desportivo da organização que gere o futebol profissional em todo o mundo. Mas se calhar o suíço não contava com a reviravolta protagonizada por um dos seus homens de confiança que está disposto a tudo, menos a ser usado como cabeça de turco. Os documentos divulgados hoje por Jack Warner simplesmente confirmam o que aqui já tínhamos avançado. A podridão que gere a FIFA é agora de domínio público e a organização vive momentos críticos. Os seus directivos estão num encruzilhada e não sabem que peça mover.
Não foi há muito tempo que escrevemos aqui sobre o duelo presidencial que se antevia entre Sepp Blatter e Mohammed Bin Hamman.
As dúvidas que deixamos então, em modo de reflexão, tornaram-se espelho da dura realidade. Os dois candidatos, reconhecidos nos corredores do poder como duas figuras altamente ligadas à corrupção no futebol actual, acusaram-se mutuamente, esgrimindo todas as armas que tinham em mãos. Blatter parecia ter ganho a luta quando conseguiu que o qatari, figura chave no processo de eleição do seu país como sede do Mundial de 2022, abandonasse a corrida. Mais ainda, Blatter logrou escapar das acusações de corrupção sobre a sua gestão e aproveitou o momento para limpar os fantasmas do seu armário. Fez com que a FIFA conseguisse passar a imagem de que as ovelhas negras eram Bin Hamman e Jack Warner. O tobaguenho foi o rosto escolhido por Lord Triestman, lider da candidatura inglesa ao Mundial de 2018, para exemplificar a corrupção que se encontra no topo da escada de poder da FIFA. Acusado de suborno, Warner rejeitou as acusações e Blatter defendeu-o, com um discurso profundamente critico aos dirigentes ingleses. Meses depois deixou cair o homem que utilizou várias vezes com emissário juntamente com o asiático que controlava tudo o que se passava nos mercados emergentes do oriente. Pensava assim Blatter que iria sair da eleição de 1 de Junho com um novo mandato e a cara lavada. Mas a jogada não ocorreu como previsto. Como nos filmes, havia uma subplot.
Hoje Jack Warner decidiu incendiar o que restava da moral da FIFA.
Divulgou um correio electrónico de Jerome Valcke, o braço-direito de Blatter secretário-geral da FIFA, em que este confessava ao tobaguenho que tanto ele como Blatter tinham conhecimento - e implicitamente aprovado - que Bin Hamman teria comprado os votos necessários para que o seu país fosse eleito organizador do Mundial. O Qatar, o mais pequeno país a quem foi atribuido o mais importante torneio do mundo futebol, não era sequer considerado favorito. No entanto os qataris bateram Estados Unidos e Austrália e venceram a eleição. Nos meses prévios muito se especulou sobre as jogadas dos qataris nos bastidores, que ora incluíam o apoio implícito da candidatura Espanha/Portugal ora a ajuda da candidatura russa, que ganharia a organização para o Mundial de 2018. Lord Tristeman confesso que fora abordado para garantir uma troca de votos e influências entre a candidatura do médio oriente e a britânica. A FIFA então negou todas as acusações. Valcke confirmava neste email que tinham perfeita consciência de tudo.
Warner não deixa a nu o processo de eleição do Mundial. Também desvela, em palavras de Valcke - que já confirmou a autenticidade do email - que o grupo de influência liderado por Blatter estaria disposto a tudo para impedir a eleição do qatari, incluindo desprestigiá-lo junto dos meios de comunicação e eventualmente nos próprios comités da FIFA, como veio a acontecer. Ao não alinhar com o grupo de Blatter, o tobaguenho foi igualmente suspenso por financiação ilicita de algumas federações caribenhas. No entanto, no passado congresso da CONCAF em Miami foi Blatter quem prometeu mais de 1 milhão de dólares em apoio à federação regional em troca de apoio directo nas eleições, utilizando dinheiro da própria FIFA, no que foi criticado por Michel Platini, presidente da UEFA e um dos mais sérios candidatos a suceder ao suíço em 2016. As suspensões indefinidas de Bin Hamman e Warner - vice-presidente da FIFA à 30 anos, o mais veterano dos membros do comité executivo em serviço - juntam-se às dos dirigentes nigeriano e taitiano, também membros do conselho e peças chave na última votação para a organização dos Mundiais de 2018 e 2022. A FIFA de Blatter suspende quatro dos 24 membros com direito a voto meses depois de os apoiar publicamente, precisamente pelo mesmo motivo.
O presidente da FIFA será reeleito por aclamação no congresso do próximo dia 1. Nem Jack Warner nem Bin Hamman estarão em Zurique em pessoa mas os seus fantasmas vão assombrar todo o evento feito à medida para idolatrar o reeleito Sepp Blatter. O suíço não será capaz de esconder do Mundo no entanto os problemas morais e legais que envolvem o seu mandato e que relembram também a crise da ISL, a eleição da África do Sul, a polémica com a MasterCard e agora, o afastamento de alguns dos seus homens-fortes. Tal como sucedeu com o COI, a quem vários analistas comparam a situação actual da FIFA, o fantasma da corrupção está demasiado presente para se ignorar. Olhar para o lado e assobiar ou tomar cartas no assunto são as únicas opções sobre a mesa. Conhecendo o historial do presidente Blatter não é difícil imaginar o caminho que a FIFA irá seguir...
Não é a primeira vez. Nem sequer é surpreendente. Mas os rumores que indicam a forte possibilidade da Football Association inglesa abandonar a FIFA são reais. E voltam a colocar no ponto de mira a máxima instituição do futebol mundial.
Lord Triesman abriu a guerra e está determinado a acabar com ela.
O lider da candidatura inglesa ao Mundial 2018 voltou à carga com novas acusações de corrupção nas mais altas esferas da FIFA. Há um ano foi forçado a demitir por dizer o mesmo. Mas então os ingleses ainda sonhavam com contrariar as fracas expectativas que havia à volta da sua candidatura. Até ao último momento pensaram que a FIFA ia, por uma vez, jogar limpo. O resultado é sobejamento conhecido e aqueles que tentaram calar figuras polémicas como Triesman começaram a olhar para as suas declarações com outros olhos. Hoje, está à vista de todos, FA e FIFA vivem de relações cortadas. E uma ruptura é bem possível. Com consequências imprevisiveis.
A Federação Inglesa pode ser, legitimamente, acusada de despeito. Se tivessem vencido a candidatura ao Mundial talvez as ferozes criticas sobre a corrupção à volta de Blatter se tivessem esfumado entre o champagne e charutos de vitória. Pode ser. Mas também é certo que os ingleses há muito que são a mais irritante sombra do senhor FIFA. As criticas arrancaram, precisamente, quando os ingleses perderam a oportunidade de organizar o Mundial de 2006 no que seria uma data simbólica, 40 anos depois da única vez que albergaram o torneio. Então a proposta inglesa era a mais sólida mas Blatter preferiu a Alemanha. Depois, para garantir os votos do resto do Mundo, anunciou a rotação de continentes, o que adiou para 2018 o sonho inglês. Depois da alta valoração da candidatura o próprio Blatter ajudou nos bastidores a minar a candidatura britânica. E alguns dos seus homens de maior confiança, como Jack Warner e Ricardo Teixeira, tornaram-se nos alvos da ira de Triesman e companhia.
A 1 de Junho o máximo organismo do universo futebol reelege presidente.
Sob o fantasma da corrupção, um fantasma do qual a FIFA nunca se conseguiu livrar desde que João Havelange chegou à cadeira presidencial. Blatter, um dos seus homens de confiança, é também um oportunista, cinico e com um passado repleto de sombras. O seu apoio a Mundiais em África, Médio Oriente e Rússia têm pouco a ver com o seu papel como presidente da FIFA e mais como o seu misterioso lado de homem de negócios. A falência da ISL, que geria o patrimonia multimédia da FIFA, e os contratos milionários com Adidas e Visa (numa guerra suja com a empresa Mastercard) levantaram mais do que suspeitas sobre a legalidade de ambos negócios. Blatter, naturalmente, não trabalha só. Os membros das comissões mais próximas da presidência são também reconhecidos nombre no mundo da corrupção desportiva, verdadeiros caciques como Teixeira, Grondona, Warner, Villar, Leoz, Makudi, entre outros. E todos eles tiveram papeis chave na definição da FIFA actual. Mas o suiço está nervoso e tem motivos para isso. Publicou no jornal italiano Gazetta dello Sport uma carta pública em que defende, palavra por palavra, que sem ele o futebol morrerá. Ou eu, ou o dilúvio. A espada contra a parede.
Não é provável que a candidatura de Bin Hamman, outro dos imperadores da corrupção desportiva, esta no mundo asiático onde a sua influência nefasta é sobejamente conhecida e descrita em várias obras, saia ganhadora. Mas já serviu para antecipar o que a FIFA viverá nos próximos anos. Criticas internas, mais polémicas, verdades embaraçosas e um duelo continental em 2015, quando Platini, previsivelmente, defronte Teixeira ou Bin Hamman, representantes dos votos latinos e asiáticos. No meio de tudo isto a Football Association olha para o panorama e percebe a sua impotência. A sua influência foi diminuindo com o tempo e hoje, literalmente, a FA vive numa ilha, isolada da UEFA, da FIFA e das restantes instituições. Os ingleses sentem-se postos de parte, a pagar o preço do sucesso de um modelo que a FIFA e a UEFA nunca olharam com bons olhos: a Premier League.
Talvez por isso comece a ganhar força nos corredores da sede da FA uma cisão a emular o que levou a Inglaterra a afastar-se da FIFA nos anos 20, na altura por culpa do profissionalismo que começava a ser uma realidade indisfarçavel nas ilhas. Os ingleses mostram um certo hastio com a FIFA – e não só com a figura de Blatter – e encaram a atribuição do Mundial à Rússia, depois de todos os pedidos pessoais dos votantes aos membros da candidatura, como uma ostensiva provocação. E não deixam de ter razão. A sua presença na FIFA não trouxe nada de positivo a um país que sempre se regiu com as suas próprias regras e que não conseguiu, sequer, capitalizar em Mundiais o pouco que o liga à máxima organização futebolistica.
Imaginar a FIFA sem a FA não é uma utopia e seria um golpe de credibilidade sério para uma instituição que vive constantemente sobre o fio da navalha. Poderia ser uma primeira e importante brecha na maquilhagem que Blatter continuamente retoca e que no fundo é a perfeita fachada para uma organização onde o futebol, como jogo e fenómeno social, conta cada vez menos. Se em tantas coisas os ingleses revelaram-se pioneiros nisto do jogo que ainda clamam como seu, talvez nenhuma outra tenha tanta repercursão como desafiar a FIFA, olhos nos olhos, e colocar em causa aquilo que todos os outros reconhecem mas são incapazes de contrariar.
Num país onde um partido centro-direita se manteve no poder durante mais de 40 anos, ser de esquerda era mais do que uma opção. Era uma forma de protesto. O Calcio é, também nisso, um dos melhores espelhos da sociedade italiana. Se a maioria dos clubes é apoiado por Ultrás que formam a ala mais violenta da extrema direita italiana, há um eixo que continua a defender o velho ideal da Itália comunista dos anos 40. Entre Perugia e Livorno a distância não é de quilómetros. É de fé num ideal...
O histórico Partido Comunista italiano nasceu numa casal pequena junto ao porto da cidade toscana de Livorno.
1921 era uma data complicada na pouco ortodoxa vida social italiana e com a ascensão dos "camisas negras" de Mussolini ser comunista era um problema sério. A não ser que se fosse de Livorno. Numa cidade quase "exclusivamente" vermelha não havia o risco de denúncias, perseguições e sustos. A cidade era um bloco sólido de resistência e daí surgiram os grandes lideres que espalharam a mensagem que chegava da longínqua URSS pelo resto do país. Em Perugia, um centro industrial no coração da bota - a igual distância de Roma e Florença - a mensagem chegou e ficou. Durante o cem anos seguintes um espírito de irmandade uniria forçosamente os destinos de ambas as cidades. E foi o futebol, inevitavelmente, que reforçou ainda mais esse casamento ideológico.
O futebol italiano é provavelmente um caso único na Europa ocidental. Em nenhum outro país o que passa no mundo futebolístico encontra paralelos tão significativos com o resto da sociedade. Com a politica, com a economia, com a religião, com os media. A Itália do pós-guerra não caiu em mãos comunistas depois de uma ágil manobra americana. Mas os 40 anos de governo democrata-cristão apenas serviu para deixar claro que os italianos são um povo de extremos. Se o governo estava ao centro, a luta no futebol fazia-se entre a extrema direita e a extrema esquerda. A primeira, mais popular ao Norte e no coração do Lácio, deu origem aos grupos Ultrá, as claques organizadas que transformaram o futebol italiano num campo de batalha e fizeram escola no resto da Europa a partir dos anos 70. Os Ultrá, habitualmente organizações com apoios económicos de grupos da extrema direita neofascista transformaram-se no cancro do Calcio e deram a várias clubes um cunho profundamente ideológico. As saudações fascistas dos adeptos da Lazio, os gritos racistas dos adeptos do Hellas Verona, Bologna ou da Fiorentina e os actos destrutivos dos adeptos neruazurris do Internazionale transformaram o inocente futebol italiano num campo de morte e destruição. Do outro lado, a esquerda italiana procurou distanciar-se do fenómeno, mas houve sectores que aceitaram o desafio. Os gritos de revolta da Roma de Pasolini, o punho levantado de Sollier e a raiva de Lucarelli. Os dois últimos redefiniram em trinta anos o comunismo futebolístico italiano.
As Brigada Autonomi Livornese são conhecidas por seguir o seu clube, o Livorno, até ao inferno. Ou pelo menos até à Sardenha.
Um quente domingo, dia de jogo da Serie A no Outono de 2003, três carros desceram toda a Itália, atravessaram o estreito de Messina e chegaram até Palermo (2000 mil kms) para apoiar a sua equipa. Viajaram de carro apenas com uma tarja que dizia "BAL - Libertá livornese" e nem os deixaram entrar no estádio. Os BAL - fundados em 1999 como claque de extrema-esquerda tenazmente violenta - representam o lado mais esquerdista do futebol italiano. Admiradores de Josef Stalin - inauguraram uma estatua ao ditador russo à porta da sua sede - este grupo de ultrás encontrou sempre apoio na sociedade livornesa. E a eles pertence ainda hoje um fiel seguidor dos ensinamentos do partido. Christian Lucarelli, filho de um estivador livornês, desde sempre soube que ali o clube, a cidade e o partido formavam parte de uma mesma entidade colectiva e proletária. Lucarelli cresceu em Shangai, um bairro proletário construido pelas autoridades fascistas nos anos 30, com a vontade de saltar ao relvado do seu clube de infância. Mas demorou até cumprir o seu sonho. Jogou em vários clubes de segunda linha, envolveu-se em problemas com a Federazione depois de celebrar o seu primeiro golo com os sub-21 (num jogo em Livorno) exibindo uma camisola de Che Guevarra e depois de vários anos lá conseguiu estrear-se pelo seu Livorno. Pagando do seu próprio bolso a carta de liberdade. Uns mil milhões de liras que deu titulo a um livro escrito pelo seu próprio agente que se tornou um best-seller local. Quando chegou, desatou a euforia dos adeptos, levou o clube da Serie B à Seria A (conseguindo na segunda época chegar aos postos europeus e sempre com o 99, ano da fundação dos BAL, às costas) e a cada golo celebrava com o punho fechado no alto lembrando outros tempos. Na sua etapa prévia tinha passado por Perugia. Não deixou grandes recordações como goleador, mas o seu espírito fez reviver os fantasmas de outra era, onde a cidade úmbrica era outra "Livorno" no meio de Itália.
Durante os anos 70 a cidade albergou outro dos grandes futebolistas ideólogos da esquerda italiana. Paolo Sollier, defesa central duro e implacável, entrava em campo com um livro na mão e um punho no ar, que erguia repetidas vezes quando a equipa marcava. A sua camisola vermelha e calções brancos - tão similar ao equipamento do Livorno - lembrava também o traje da URSS que idolatrava profundamente. Durante largos anos foi o símbolo da resistência numa era onde o espírito neofascista dos jogadores italianos - particularmente os da AS Lazio que andavam sempre armados e preparados para começar uma discussão - começava a conquistar adeptos em todo o país. Sollier, como Lucarelli, nunca foi um grande jogador. Mas era um símbolo respeitado e odiado em iguais partes. Falava antes e depois dos jogos com soltura, questionava decisões politicas e era um dos grandes defensores do movimento sindicalista dos jogadores que começava, só então, a ganhar forma. Anos depois Lucarelli tornou-se o espelho do jogador da contra-revolução, pronto a abdicar do dinheiro, da fama, das mulheres e dos carros para cumprir um sonho: jogar no clube que para ele exemplifica um estado de alma.
Perugia e Livorno passaram por momentos complicados na sua história. Os primeiros até viram o filho de Kadhafi jogar durante 45 minutos depois do ditador ter comprado acções do clube (tal como sucederia depois com a Juventus) e envolveram-se em polémicas sem fim depois do trabalho auto-destrutivo do presidente Luciano Gaucci. O Livorno nunca teve o dinheiro necessário para combater e elite e passou a sua história subindo e descendo de divisão com a naturalidade de quem encara o jogo como um processo revolucionário em constante movimento. Num país onde Berlusconi dita a lei, o futebol pauta o ritmo. O primeiro-ministro usou o jogo - e o sucesso do seu AC Milan - para se dar a conhecer ao país. Não foi uma novidade já que durante largos anos a direita italiana aproveitou-se do fenómeno popular para criar verdadeiros pequenos-estados ideológicos que utilizam a bola como pretexto para propagar a sua ideologia. No meio dessa luta, o eixo Perugia-Livorno continua vivo. Como o outro lado do espelho, aquele que entende que o futebol, em Itália, e como tudo, é mais um palco de batalha entre os dois extremos de uma luta sem fim como o final de 1900, esse filme tão profundamente italiano e futebolistico (apesar do futebol primar pela sua ausência) de Bertolucci. Mas isso é outra história...