Segunda-feira, 14.02.11

O futebol sabe ser ingrato com os seus filhos mais pródigos. Hoje termina um capitulo fundamental, que marcará uma página da história do jogo. Mas parece ser apenas mais uma vírgula no meio de tanto histerismo por assuntos menores. Ronaldo Nazário, provavelmente o protótipo do avançado ideal, o mais completo jogador pós-maradoniano, disse basta. O Mundo já lhe virou as costas há demasiado tempo para se recordar da verdade e há muito que preferiu esquecer a lenda do único Aquiles que trocou a armadura por umas chuteiras e desafiou a ordem dos astros do universo futebol.

 

 

 

Para muitos amantes do futebol, o golo de Diego Armando Maradona à Inglaterra, no Mundial de 86, define uma época. Esses serão, provavelmente, os mesmos que se lembram bem daquela fria noite de Compostela quando um jovem brasileiro de 20 anos decidiu meter o mundo no bolso e dar um salto no tempo. Depois daquele momento histórico - que, matematicamente, serviu de pouco - passou a haver um antes e um depois de Ronaldo. O "Fenómeno" era, de facto, fenomenal. Hábil na gestão dos tempos, veloz como um felino, o seu instinto goleador enganava os analistas que se surpreendiam ao vê-lo começar as jogadas na linha de meio-campo. O seu poder de explosão e a facilidade de associação lembrava, e muito, o argentino caído em desgraça. No Mundial dos EUA, el Pibe despediu-se envergonhado. Sem jogar um minuto, Ronaldo esperava a sua hora. Já tinha sido o rei do Brasil, num ano memorável ao serviço do Cruzeiro. E já tinha confirmado, acima de tudo, a sua fácil adaptação ao futebol europeu. Com o PSV mediu-se ao melhor Ajax pós-Cruyff e, mesmo assim, pareceu inimitável. Mas também frágil e humano, dolorosamente humano.

Pelé sofreu lesões que o mantiveram em serviços minimos em dois Mundiais. A Maradona até uma perna lhe partiram e tanto Cruyff como Di Stefano, Platini, Messi ou Cristiano Ronaldo já sofreram agruras sérias provocadas pelos mais acérrimos rivais. Mas nenhum jogador de futebol foi tão vitima do seu próprio corpo como Ronaldo Luis Nazário de Lima. Um Deus de um jogo que o revelou como Mortal. A especulação faz parte da vida e hoje é legitimo pensar que, não fosse o seu corpo frágil, Ronaldo poderia ter sido mais do que o maior avançado dos últimos cinquenta anos. Poderia ter sido perfeitamente o maior jogador do Mundo.

 

Parou dois longos e deprimentos anos na sua estadia em Milão. As lesões contraídas ao serviço do neruazurri impediram-no de dar um salto qualitativo quando em melhor posição se encontrava para superar a barreira histórica deixadas por Pelé e Maradona. Depois do ano mágico ao serviço do Barça onde ganhou tudo menos a Liga (a desforra tardaria seis anos), o Inter era um profundo desafio. No primeiro ano esteve a um penalty do titulo, o mesmo que ficou por marcar naquela tarde seca contra a Juventus de Ancelotti. Depois veio o corpo e as dores de alma. As dores da nunca bem explicada desaparição no relvado do Saint-Dennis na final contra a França. Desse misterioso jogo pode-se retirar a essência fantasmagórica que acompanhava a carreira de um jogador completo a todos os niveis. O Mundial de França provou o que de melhor havia naquele Ronaldo. Quatro anos depois, o mesmo cenário exemplificou algo único: a transformação absoluta de um jogador de elite num outro jogador de elite, totalmente oposto.

As lesões destruiram o jovem explosivo e irreverente que tinha marcado um antes e um depois no futebol mundial e reinado, só, como único jogador global pós-Maradona. Em 2002 havia já Zidane, Figo, Beckham (todos futuros colegas naquele projecto megalómano de Florentino Perez). Mas nenhum como ele. Nenhum tão completo e com um espirito de sobrevivência tão agudo. Ronaldo reinventou-se, abdicou da velocidade em prole da colocação, aguçou os dentes frente à baliza contrária e assinou o Pentacampeonato brasileiro com o mesmo padrão de genialidade de Pelé. O titulo mundial, esse corolário, confirmou uma carreira sem igual que na Europa bebeu poucos titulos (como Maradona, nenhuma Champions League, por exemplo) mas que soube desfrutar plenamente da sua segunda etapa, agora de branco, com quilos a mais e vontade a menos. Em Madrid o segundo Ronaldo, esse sósia trabalhado do primeiro, foi assassino quando era necessário e displicente quando se pedia compromisso. Confirmou-se, se era preciso, como um jogador único, mas o mundo tinha perdido o interesse. Queria a novidade, a novidade dos Ronaldinhos, dos Messi, dos Cristianos e prodigios posteriores. O marketing funcionou contra ele depois de o ter ajudado a tornar-se num mito (os anuncios Nike com Ronaldo definiram, em boa parte, o fenómeno global do futebol na segunda metade dos anos 90 e o poder das marcas num jogo universal). O Brasil, com todo o seu atractivo, funcionou como um retiro progressivo de um atleta com muito futebol nos pés mas já sem forças para manter o nivel corporal. Ronaldo não podia aguentar com o ritmo europeu e mostrou manifestas dificuldades para encontrar a forma no mais pausado futebol sul-americano. O corpo, como disse, não aguentou. Tinha sofrido demais, talvez mais do que muitos desportistas de elite juntos. E o Mundo não percebeu que cada golo do brasileiro depois daquele calvário era, acima de tudo, um soco no destino. Um soco que van Basten, por exemplo, não soube dar. Um soco que só os maiores dos maiores (Pelé, Maradona) teriam sido capazes de desferir sem perder a pose.

 

 

 

Os ses e os senões comandam a vida e o destino. Ronaldo é, sem dúvida, o avançado mais completo da história do futebol se pensamos que Pelé e Maradona souberam sempre ser mais do que isso. E que Di Stefano e Cruyff eram, cada um ao seu estilo, jogadores totais. Mas quando se pensa nesse quinteto de maravilhas e se procura o ás que falta, que saltem os nomes de Zidane, Messi, Cristiano Ronaldo, Platini ou Beckenbauer soa um pouco a falso. Soa a esquecimento, propositado ou não, esquecimento daqueles arranques, esquecimento daqueles slaloms, esquecimento daqueles remates, esquecimento daqueles suspiros antes do golpe definitivo. Esquecimento de um rei que pareceu sempre ter de pedir a coroa emprestada e que mais do que um diamante forrado numa bola de couro, é uma gota de divinidade que mergulhou num corpo frágil, qual Aquiles, para mostrar ao mundo que os Deuses também são Mortais.



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Quinta-feira, 10.02.11

Hoje os investidores estrangeiros são os únicos capazes de injectar dinheiro em projectos desportivos, muitas vezes, absurdamente estagnados. Petro-dolares, rupias indianas, rublos russos, tudo vale. No entanto, o modelo dos magnatas com dinheiro, ilusões mas muito pouca paciência não é novo e no passado deixou as suas vitimas. Poucas terão tido o mesmo impacto mediático do que o Matra Racing Paris. Durante dois anos tentou comprar o sucesso. Falhou e caiu na penumbra do esquecimento...

 

 

 

Quando em 1981 o milionário francês Jean-Luc Lagardére se juntou a Daniel Filipachi para comprar o espólio do grupo de revista Hachete, brincou com os amigos comentando que só lhe faltava mesmo comprar um clube de futebol. O homem que relançou a revista Elle era já então dono de uma imensa fortuna, graças à sua posição na empresa Matra (com considerável sucesso no automobilismo). Por essa altura, gastava essencialmente o seu dinheiro na grande paixão da sua vida, os cavalos de corrida. Mas o futebol também lhe tocava na alma e na cidade-luz de Paris não havia uma equipa que apoiar. O PSG vivia a sua primeira década, rodeado de incertezas, e a ideia começou a matutar na mente do empresário. Quatro anos depois comprou o quase extinto Racing Club Paris, um dos primeiros grandes do futebol gaulês que tinha caido praticamente no anonimato nos anos do pós-guerra. O clube estava na Ligue 2, lutando por sobreviver. Lagardére colocou o dinheiro à disposição da direcção com um objectivo claro: fazer do Racing um colosso europeu.

Começou assim a subida ao céu do clube azul e branco. O presidente conseguiu o apoio da Matra e mudou oficialmente o nome do clube para Matra Racing Club, o primeiro caso de uma instituição desportiva europeia que viu o seu nome alterado para incluir uma designação comercial. Um nome que se assemelhava, e muito, ao já usado pela empresa na sua etapa na F1 e que levantou suspeitas sobre o real interesse de Lagardére num negócio com muitos "ses". O projecto, no entanto, começou a dar os seus frutos. Em 1986 o clube venceu o titulo da segunda divisão do futebol gaulês e chegou, pela primeira vez em largas décadas, à elite. Era preciso dinheiro para permitir ao Matra - então alvo de uma imensa campanha de marketing nas revistas e jornais do grupo Hachette - competir com os maiores da época (o Bordeaux de Jacquet, o Marseille de Goethels ou o Monaco de Wenger). E com o dinheiro chegaram as estrelas.

 

Recém-coroado campeão europeu, o português Artur Jorge foi o primeiro a ser seduzido pela ambição de Lagardére.

Trocou a cidade do Porto pelo conforto de uma vida de luxo em Paris com um recorde milionário para qualquer treinador à época. O objectivo era vencer a prova que o tinha coroado num prazo de quatro anos e para tal chegaram ao modesto Stade des Colombes, nomes à altura. O alemão Piere Litbarski e o uruguaio Enzo Francescoli juntaram-se aos gauleses Pascal Olmeta, Luis Fernandez ou um jovem David Ginola. Mais tarde chegariam ainda o holandês Sonny Silooy, o uruguaio Ruben Paz e o camaronês Eugene Ekéké.

Artur Jorge pediu tempo para formar um onze ganhador - ainda estavamos na época em que só podiam jogar três estrangeiros - mas os resultados demoraram demasiado em chegar. A meio da temporada 1987/1988, o Racing Matra andava perdido na segunda metade da tabela, apesar do talento indiscutivel dos seus artistas, particularmente Francescoli, que confirmou as suspeitas que tinha deixado ao serviço da selecção do Uruguai e que mais tarde inspiraria a Zidane. A segunda volta foi bastante melhor, com a equipa a trepar até ao sétimo posto mas, mesmo assim, fora das provas europeias e a onze pontos do primeiro lugar. O dinheiro de Lagardére começou a desaparecer e os ingressos das bilheteiras do diminuto estádio parisino (7 mil pessoas) e do contracto televisivo eram insuficientes para arcar com os salários principescos das principais estrelas. Artur Jorge partiu (ele que voltaria a Paris para cumprir o seu sonho de campeão com o PSG dois anos depois) e o director desportivo, René Hause, tomou o seu lugar. Mas sem dinheiro, também Francescoli e Litbarki se foram, sem deixar grandes saudades, para brilhar em Marselha e Colónia, respectivamente. E a equipa ressentiu-se em demasia. O projecto começou a desmoronar-se e a equipa terminou a época seguinte num decepcionante 17º posto, salvando-se por um golo da despromoção. Para a Matra e para o seu presidente, era demais. Lagardére demitiu-se, vendeu a sua parte do clube e levou a Matra consigo, deixando o clube em estado de bancarrota. Os melhores jogadores da equipa saltaram do navio em movimento e apesar de ter chegado à sua única final da Taça em 1990, rapidamente a equipa caiu nos escalões do futebol amador francês, onde ainda milita. O dinheiro de Lagardére foi desviado para a France-Galop, empresa especializada em desportos hipicos e nunca mais se aventurou no mundo do futebol.

 

 

 

O projecto do Matra Racing Paris é um aviso a navegantes. Hoje, num mercado mergulhado em negócios obscuros e milionários que entram e saiem com demasiada facilidade, a nefasta gestão do pequeno clube parisino que quis dar um passo maior que a própria sombra podia transferir-se a um qualquer desses clubes com gestões milionárias. O fracasso do Portsmouth inglês, as dividas de West Ham United, o quase desaparecimento do Deportivo Alavés são apenas reflexos desse episódio. Quando o dinheiro quer comprar o sucesso, muitas vezes o único que acaba por conseguir é comprar o fim...lenta e dolorosamente.



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Terça-feira, 18.01.11

Camisola fora dos calções para esconder a barriga. Olhar perdido no coração do tapete verde. Ar cansado. E, de súbito, um toque genial, um golpe de esforço, uma pitada de mestria e et voilá! Assim funcionava o homem que pautou o ritmo do futebol europeu durante grande parte dos anos 80. Quando viu que o fisico não lhe permitia aguentar as exigências do novo futebol, disse adeus. Atrás de si, a glória de uma era. E poucos que se lembravam da sua inoportuna barriga de sofá...

 

 

 

Giovanni Trapattoni berrava, vezes sem conta, a cada jogo da sua super-Juventus.

Durante meia década, os bianconeri foram a equipa italiana por excelência. Em titulos e estilo de jogo eram intocáveis e só nos palcos europeus pareciam ter dificuldades em impor a sua hegemonia. Mesmo assim, durante três anos consecutivos, marcaram presença em três finais. E só perderam uma, uma triste noite em Atenas. A cada jogo, "Il Trap" gritava sempre para o mesmo jogador. Pedia-lhe que corresse, que fechasse espaços, que ajudasse. Mas, a maioria das vezes, gritava em vão. Subitamente, o mesmo pequeno homem de orelhas quentes, arrancava com a bola nos pés e fazia magia. Decidia jogos, épocas. Era assim Michel Platini.

Fisicamente foi o último simbolo de uma era que desprezava a prepração fisica, cada vez mais importante à medida que os anos 80 vão abrindo passo à era do futebol de pressão total. Platini detestava treinar, detestava fazer exercicio e nunca conseguiu, ao largo da sua carreira, esconder uma visivel barriga pouco habitual num desportista de elite. Soltava a camisola, sempre justo e por dentro dos calções até então, para dissimular. Mas nunca conseguiu deixar o vicio do cigarro antes, durante e depois dos jogos. Nem as celebres jantaradas que Il Avvocato, Gianni Agnelli, fingia que não via, nas noites de Turim. Porque no terreno de jogo o pequeno Napoleão respondia. Não corria, para isso estavam os outros dizia sem pejo, mas decidia. Foi Capocanonieri três anos consecutivos. Muito para um número 10 que jogava ao lado de Boniek e Rossi. Foi o herói das grandes noites do clube. Livres directos executados à perfeição, penaltys nunca falhados mesmo quando a tensão era máxima, sprints endiabrados que deixava qualquer defesa de mãos na cabeça. Para Michel tudo servia. Tudo para maior glória. A sua.

 

Com a Juventus, por quem assinou em 1982 depois de se ter tornado na grande figura de um Mundial ganho, precisamente, por uma Itália repleto de jogadores da Vechia Signora, venceu tudo. Duas Serie A - com um intervalo pelo meio, cortesia do Hellas Verona de Preben Elkjaer Larsen - uma Copa di Italia, uma Taça das Taças (numa histórica final contra o FC Porto), 1 Taça Intercontinental (na sua noite mais brilhante, frente ao Argentinos Juniores), 1 Supertaça Europeia e a tão ansiada Taça dos Campeões. Nessa noite, no Heysel Park, os dois maiores artistas de ambos conjuntos, Platini e Dalglish, abraçaram-se. E perceberam para onde o futebol caminhava. Dois anos depois, ambos tinham, precocemente, pendurado as botas. Mas o francês tinha um curriculum invejável.

De 1983 a 1985 venceu de forma consecutiva três Ballon´s D´Or. O último em lográ-lo. E se muitos acusavam a publicação gaulesa France Football de chauvinismo, esquecendo-se de que eram os correspondentes nacionais que votavam,e não os jornalistas franceses, basta olhar para esses três anos e pensar no que se passava no panorama europeu de futebol. Principalmente naquele ano de 1984 em que Platini fez com a França o que Maradona emularia, dois anos depois, com a Argentina. Vencer uma prova praticamente sozinho.

O seu Euro 84 foi demoniaco. Marcou em todos os jogos, desde o encontro inaugural com a Dinamarca até à final e àquele golo mal sofrido por Arconada. Foi o melhor marcador do torneio e emendou-se depois daquela deprimente meia-final com a RF Alemanha no Bernabéu, dois anos antes. Alemanha que seria a sua carrasca dois anos depois em México. Três dias antes Platini falhara o primeiro penalty da sua carreira. Mas a França seguia em frente. Durante os 90 minutos o seu golo, frente ao Brasil romântico de Sócrates e companhia, tinha sofrido o seu último golo internacional. Ele que em 1978 se tinha estreada a marcar pela França frente à futura campeã, a Argentina. Era a época do Nancy, o seu primeiro grande amor. Depois chegou o Saint-Ettiene e a consagração gaulesa. Seis anos como simbolo máximo da Ligue 1 antes de aterrar no Calcio das estrelas. Em 1987, vendo como chegava o AC Milan de Sacchi e como brilhava o Napoli de Maradona, a Roma de Voeller e o Inter de Mathaus, o pequeno génio entendeu que já não podia esconder um fisico que não lhe permitia exibir-se ao mais alto nivel. E retirou-se, com uma simplicidade assombrosa, num jogo de estrelas frente ao seu grande rival individual da época, o inimitável Maradona.

 

 

 

Durante seis anos Michel Platini foi um jogador inigualável nos palcos europeus. A imprensa mediática nunca lhe deu a devida importância talvez porque metade do tempo elogiava o talento de Maradona e a outra metade criticava o estilo da Juve de Trapatonni. Foi o mentor do futebol-champange e exprimiu o melhor do futebol de toque curto na era que terminou com o dominio do futebol directo do norte da Europa. Inigualável nos relvados, falhou como técnico e emendou a mão como directivo. Agora na UEFA, é igual a si próprio. A barriga continua lá, maior ainda. O génio que brotava com tamanha facilidade das suas botas provavelmente também. Tudo em Platini tem um suave toque de mestria. E de pura eternidade...



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Sábado, 08.01.11

O futebol europeu arrancou durante os anos 90 debaixo de um imenso feitiço de sedução. Chamaram-lhe Dream Team em homenagem à equipa norte-americana de basket que ali se coroou no inesquecível verão de 92. Meses em que era impossível passar um dia sem se ouvir ecoar na memória a palavra Barcelona. Mas o mito de Cruyff, a lenda que se seguiu, tem, como toda a épica lendária, uma forçosa reflexão a ser feita, capaz de quebrar uma mitologia consensual e enganadora.

 

 

 

Naquela quente noite de Atenas o Dream Team morreu. Desmoronou-se em mil pedaços. Perdeu toda a essência.

E ficou a nu toda a debilidade de uma equipa que durante quatro anos se tornou a inveja do Mundo. Da mesma maneira que ascendeu ao Olimpo, caiu pela montanha rasgada do Partenon. O conceito perduraria, a imprensa europeia trataria disso, e hoje o Pep Team procura resgatar a respeitabilidade que significa ser herdeiro de Cruyff e companhia. Mas que herança é essa? Como nasceu essa ideia de perfeição chamada "Dream Team"?

Para muitos está nos titulos. Quatro ligas consecutivas (histórico no que ao Barcelona diz respeito), a primeira Champions League da história (tão pouco para um clube tão grande) e vários titulos domésticos ganhos aos rivais de Madrid. Para outros era o modelo de jogo. Esse espirito ousado de atacar sem olhar a consequência, esse jogo de toque e resposta, rápido, eficaz e certeiro. Esse amor pelo risco que destoava totalmente do espirito conservador de um mundo futebolistico acabado de sair do traumático Itália 90. E haverá sempre quem aponte o dedo às pessoas. Ao "visionário" Johan Cruyff, esteta como técnico como era como jogador, ao seu fiel escudeiro Rexach, portador do espirito catalão, ou à tropa de artistas encarregados de pintar a obra: Stoichkov, Romário, Laudrup, Salinas, Zubizarreta, Bakero, Alexanko, Eusebio, Beguiristain, Nadal, Ferrer, Sergi e Guardiola, sobretudo, Pep Guardiola.

Esses condimentos estavam lá, foram reais e únicos. O Barcelona foi, de facto, a equipa que mais belo futebol praticou entre 1990 e 1995 no continente europeu. Um futebol atractivo para o público televisivo que começava a tomar contacto com novas realidades e maior exigência. Era a resposta ao dominio sufocante do Real Madrid em Espanha e da Serie A na Europa numa era em que a Premier League, a recuperar do trauma de Heysel, dava ainda os seus primeiros passos. Era uma equipa com uma táctica diferente, uma camisola diferente e um ritmo de jogo endiabrado. A lenda, como diria John Ford, faria o resto e suplantaria a realidade.

 

Verdadeiramente o Dream Team era um projecto repleto de importantes falhas que foram escondidas habilmente durante quase vinte anos.

Olhando para trás no tempo é dificil acreditar que há ainda quem pense naquele como o melhor Barcelona da história. Não só pelos logros actuais do Pep Team, uma versão actualizada e aprimorada do conceito cruyffiano, bastante mais coerente e perfeccionista. Mas sobretudo pela mágica geração de 50 que os catalães aprenderam a esquecer quando surgiu Di Stefano vestido de branco. O conjunto que Cruyff orientou durante quase uma década teve o seu momento mais alto na noite de 20 de Maio em Wembley. Mas mesmo essa noite, a da consagração, explica muito dos fantasmas que rodeiam o adorado conjunto culé.

Cruyff era um excelente jogador, o melhor talvez no seu posto, e como técnico tornou-se numa das figuras mais consensuais e sobrevalorizadas da história recente do futebol europeu. Chegou a um Barcelona em crise, devastado por mais um tropeço europeu com Terry Venables e em combustão interna entre os jogadores e a direcção do autoritário Josep Luis Nuñez. Ao contrário do que se pensa não havia praticamente catalães naquela equipa. E os que havia eram maus demais para aguentar. O holandês, que como jogador tinha feito história durante um ano (e vivido à sombra dela nos seguintes), exigiu investimentos. Trouxe os melhores (excepto os que militavam no eterno rival de Madrid) e perdeu três anos a moldar um sistema de jogo original. Um 3-4-3 elástico, que apostava nas transições rápidas e no futebol de toque curto e asfixiante até inebriar o rival. E levá-lo a ceder. O truque estava no trabalho de meio-campo que devia suportar uma defesa mais débil e um ataque com mais liberdades do habitual num futebol cada vez mais rigidio e organizado. Com essa ideia, os médios deveriam, tal como na Holanda de 74, surgir muitas vezes como os finalizadores. Para isso era determinante que fossem jogadores de alto nível. O técnico contratou José Maria Bakero, Michael Laudrup e lançou para a ribalta um escanzelado Josep Guardiola, a quem juntou o outro catalão de serviço, Guillermo Amor. Os quatro eram a medular de uma equipa que aproveitava a visão de jogo de Guardiola para apostar igualmente em laterais ofensivos (Ferrer e Sergi), recuando o centro-campista no apoio directo a Miguel Angel Nadal, único central inicialmente. Rapidamente acompanhado por Ronald Koeman e Andoni Zubizarreta (outras apostas pessoais do técnico), o sector defensivo passou a ser o primeiro elemento de apoio ofensivo, onde brilhavam Stoichkov, Beguiristain e Salinas. O último acabou por pagar cara a sua indolência e falta de mobilidade sendo substituido por outra compra milionária, o brasileiro Romário.


Esse Dream Team desmentiu a origem do conceito de jogo da Masia, tão defendido (e tão real) hoje em dia por uma verdadeira constelação de compras anuais que iam melhorando, a olhos vistos, a equipa. Nos dois primeiros anos o Barcelona venceu apenas uma Copa del Rey, ficando a anos-luz de Madrid e Atlético e uma Taça das Taças, em 1989, frente à Sampdoria. Mas dois anos depois, numa nova final da Taça das Taças e contra outro projecto a dar o seu arranque, o Manchester United de Ferguson, a equipa espanhola não aguentou o ritmo inglês. A ideia ousada de Cruyff era falivel. Mas faltavam nessa noite algumas das peças chave dos sucessos posteriores.

 

De 1991 a 1994 a história é de sucesso. Mas com interrogações.

O Barcelona venceu quatro ligas consecutivas mas ao contrário da primeira época, onde o dominio foi absoluto, as restantes foram autenticos sufocos, ganhos no último suspiro. Duas contra o Real Madrid, no mesmo cenário, Tenerife. Em ambos os casos os merengues lideravam a classificação. Em ambas as tardes perderam diante do conjunto canário oferecendo de bandeja os titulos à equipa de Cruyff. O quarto caso foi ainda mais dramático. O Deportivo la Coruña liderou quase durante toda a época e na jornada final precisava apenas de um empate frente ao Valencia. Perdia por 1-0 quando, no último minuto, um penalty colocou tudo em suspenso. Bebeto, o marcador habitual, escondeu-se da responsabilidade e o central Djukic rematou sem alma, falhando. O Barça ganhou ao Sevilla e conquistou o Tetra. Sem entender bem como, uma vez mais.

Pelo meio ficavam as sensações mixtas de uma equipa capaz de vencer por 5-0 no Bernabeu e depois perder por 6-0 diante de um Logroñes. Altamente irregular, o conjunto de Cruyff tinha um problema de esquizofrenia táctica. Uma defesa demasiado débil (que levou muitas vezes o técnico a apostar num 4-3-3, base do modelo actual de Guardiola), um ataque que tinha tardes de desesperante ineficácia e, acima de tudo, um problema com os estrangeiros. Numa época em que só podiam jogar três, a equipa contava com quatro jogadores de classe Mundial. O holandês fez de Koeman e Romário as peças chave e foi alternando entre Stoichkov e Laudrup. O dinamarquês, peça desiquilibrante no miolo, saiu desgostado. Para liderar a revolta merengue. Antes tinha sido o farol da grande noite europeia frente à Sampdoria, equipa que dominou grande parte do jogo mas não conseguiu marcar. Uma vez mais a sorte protegeu os culés, depois do golo épico de Bakero frente ao Kaiserlautern, que evitou uma precoce eliminação meses antes. A mesma sorte não teve o conjunto blaugrana nas outras duas edições do torneio. Em 1993 a equipa nem chegou à fase de grupos, eliminada pelo CSKA Moscow nos Oitavos de Final. Foi o culminar de um ano negro depois do festival futebolistico aplicado pelo São Paulo de Raí numa histórica final da Taça Intercontinental. Um ano depois, em 1994, os culés voltariam à final. Foi aquela noite de 18 de Maio. Aqueles quatro golos deixaram a nu todos os aspectos negativos do conjunto blaugrana. A fragilidade defensiva com as bolas nas costas da defesa, a inoperância ofensiva, a ausência de um criativo, o sacrificio de Guardiola e, sobretudo, a incapacidade de Cruyff, que nunca soube reagir à teia de Capello. Foi o fim. A alcunha ficou, o prestigio também, a admiração não se esmoreceu. Mas os factos eram claros.

 

 

 

No ano seguinte Laudrup, o despeitado, liderou a revolta do Real Madrid com 5-0 incluido no pacote. Na Europa o conjunto catalão repetiu, pela enésima vez, erros do passado. Superado no Grupo pelo IFK Goteborg, o Barça sofreu a humilhação de cair nos Quartos frente ao PSG francês. O ano seguinte, já sem estrelas, foi mais negro ainda e o holandês foi despedido e anunciou a sua posterior retirada passando a viver da honra e glória perdida. Tacticamente pouco inovador, o conceito de Cruyff era apenas uma variação da táctica criada nos anos 70 por Michels. Aprimorada por Guardiola (que aprendeu muito daquela noite em Atenas), a filosofia do "Futebol Total" continua a ser o santo e senha no Camp Nou. Mas se o mito consolidou o Dream Team como a equipa perfeita, a verdade é que o espelho apresenta muitos riscos e falhas para não passar por um subtil engano. A grandeza da lenda está, precisamente, na forma proporcional como se afasta da realidade. Aquele Dream Team era mágico. Tão mágico como frágil. Como todos os castelos de cartas, acabou por cair.



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Quarta-feira, 05.01.11

Na época em que o futebol inglês renascia sob o génio e pena de maestros como Charlton, Law, Best, Ball ou Greaves, a swinging Londres vibrava com a eficácia espantosa de um jovem dianteiro que durante mais de uma década foi o avançado mais prolifero da capital. Heroi da final de 66, principe de Upton Park, guerreiro de White Hart...Martin Peters foi o rei de Londres.

 

 

 

Houve poucos goleadores tão graciosos e certeiros na história do futebol britânico como Martin Peters.

A sua carreira durante quase duas décadas, periodo em que se destacou como um voraz animal de área, predador de rapina, certeiro em todos os momentos. Abriu caminho ao serviço do West Ham United e tornou-se num dos rostos mais conhecidos do popular conjunto londrino na sua década de ouro. Com os Hammers marcou em dez anos um total de 81 golos em 300 jogos, desde a sua aparição pela célebre Academia Hammer em 1959 até ao seu establecimento como titular indiscutivel ao lado de "monstros sagrados"  como Bobby Moore e Geoff Hurst três anos depois. O seu ano de 1965 foi de tal forma categórico que o conservador Alf Ramsey não duvidou em chamá-lo ao lote de mundialistas ingleses que se preparavam para disputar o Mundial de 1966 em casa. A lesão do avançado Jimmy Greaves permitiu ao técnico inglês colocar em práctica um novo modelo táctico que há vários meses tinha ideado, com Charlton como falso ponta de lança por detrás da dupla de ataque de Upton Park. Peters foi colocado na linha de médios interiores com Allan Ball atrás de Hunt e Hurst. O modelo táctico, aplicado depois dos dois empates iniciais dos ingleses foi fulcral para a conquista do ceptro Mundial. No derradeiro duelo, contra a Alemanha, Peters apontou o 2-1 que parecia que daria o titulo aos locais. O empate nos derradeiros instantes de Weber adiou tudo para o prolongamento. O falso extremo voltou a ser fundamental na sua associação demoníaca com Ball, que centrou a bola para Hurst rematar à meia volta. O golo mais polémica da história do futebol virou o curso do jogo e da tarde e coroou o jovem dianteiro como um dos mais precoces campeões do Mundo da história. Tinha entrado no Olimpo.

 

Os quatro anos seguintes confirmaram Peters como um dos jogadores mais decisivos da 1st Division.

Com os seus colegas de selecção passou a ser um dos jogadores mais aplaudidos nos relvados ingleses e no auge da sua forma surgiu o Tottenham com uma oferta histórica então e o dianteiro trocou o West Side por White Hart Lane. O valor, 200,00 libras, fez história e marcou também o fim da carreira de Greaves - que trocou com Peters - ao serviço do Tottenham. Peters, como seria de esperar, marcou no jogo inaugural com a camisola branca e durante cinco anos passou a ser a máxima referência do jogo ofensivo dos Spurs. Nesse mesmo Verão de 70 voltou a brilhar com a camisola da Old Albion e frente à Alemanha, no encontro dos Quartos de Final, marcou dois golos, colocando os campeões do Mundo à frente do marcador por 2-0. Então Alf Ramsey cometeu um dos maiores erros tácticos da história, substituindo Peters e Charlton. A RF Alemanha agradeceu o gesto e deu a volta ao marcador. Peters saiu prestigiado e passou a ser capitão do conjunto inglês depois de Charlton e Moore terem anunciado a retirada após o torneio. Não voltaria a uma grande prova internacional já que a histórica Inglaterra passou os dez anos seguintes longe dos grandes torneios.

Em 1972, depois de vencer a League Cup, o dianteiro foi fundamental no duelo britânico frente ao Wolverampton Wanderers que deu ao Tottenham a sua primeira UEFA Cup, marcando nos dois encontros.

Em 1973 assinou um histórico poker em Old Trafford, no jogo que confirmou o fim da carreira de George Best e Bobby Charlton, que anunciariam pouco depois a retirada definitiva do futebol. No ano seguinte foi a vez do dianteiro abandonar White Hart Lane após perder a final da Taça UEFA contra o Feyennord holandês, num dos jogos mais polémicos da década. O jogo foi o último de Peters com a camisola branca. Trocou Londres por Norwich onde rematou os últimos dois anos da sua goleadora carreira antes de um curto periodo ao serviço do Sheffield United confirmar o que todos já sabiam. Foi aí mesmo que Peters trocou os relvados pelos bancos mas a sua carreira como técnico não foi tão prolifera como a de futebolista. Desencantado com o rumo do clube, trocou o futebol por um posto de executivo numa seguradora onde trabalharia nos vinte anos seguintes, afastando-se definitivamente do beautiful game, apesar das tentações regulares que lhe chegavam dos seus anteriores clubes para que colaborasse com eles nos seus projectos desportivos.

 

 

 

Jogador de um imenso talento criativo, Peters foi um dos primeiros falsos noves a brilhar no futebol inglês. Não era um dianteiro à moda antiga, como o seu colega Hurst nem um futebolista tão completo como o imenso Charlton. Mas desiquilibrava um jogo como poucos e ao serviço da selecção inglesa tornou-se num dos icones do futebol britânico da década de 60. Foi um atleta de excepção e um gentleman, dentro e fora dos relvados. Adorado por todos, apreciado por muitos, é ainda hoje é dificil encontrar um jogador tão entusiasmante capaz de herdar uma camisola que entrou para os anais da história do futebol inglês.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 14:24 | link do post | comentar

Segunda-feira, 03.01.11

Talvez tenha sido o maior guarda-redes da história. Talvez tenha regressado do mundo dos mortos. Mas a mágica carreira de Ricardo Zamora, a primeira grande estrela mediática do futebol europeu, é um constante deambular entre o sol e a penumbra, o claro e o escuro. Simbolo do mágico Barcelona dos anos 20, soube trair por três vezes "a causa" e acabou por cair na hábil teia de Franco para se tornar num dos simbolos do novo regime.

 

 

 

Conta Philip Ball no seu imperdível Morbo: The Story of Spanish Football, que em 1936 a imprensa republicana noticiou que o histórico Ricardo Zamora, o homem que à época era mais popular em Espanha que Greta Garbo, tinha sido morto na fronteira por soldados falangistas quando procurava voltar de França, onde estava refugiado. Zamora era a maior figura do desporto espanhol, conhecido como El Divino, e a noticia era tão séria que os jornais falangistas rapidamente decidiram contrariar a informar e declarar o óbito como culpa das armadas comunistas que patrulhavam a zona basca. No meio de tanta confusão mediática apareceu Zamora, como quem regressa do mundo dos mortos. E por um segundo o país respirou de alívio.

Ricardo Zamora era assim, um bálsamo para um país que gostou sempre de conflitos, nem que fossem dialécticos. Foi a primeira grande estrela espanhola dentro e fora dos relvados. Uma verdadeira vedeta desportiva que encandilava com as suas defesas nos campos pelados de Les Corts como pelas suas passeatas a altas horas com Gardel nas Ramblas barcelonesas.

Filho de espanhóis numa Catalunha em fase ultra-nacionalista, tornou-se rapidamente na grande figura do recém-inaugurado estádio do FC Barcelona. Com Alcantara e Samitier constitui o primeiro grande trio histórico do futebol ibérico. O Barcelona viveu uma das suas décadas mágicas e a fama de Zamora era tal que fora de Espanha chegavam convites de toda a Europa para que o clube entrasse em digressões pelo velho continente, sempre e quando ele fosse titular. Mas ao contrário de muitos dos seus colegas - particularmente o pequeno Alcantara, o Messi da década 20 - não havia nada no sentimento catalão que começava a tomar controlo dos elementos directivos blaugranas que o atraísse. Era um homem da vida, um verdadeiro amante da boémia e a politica não lhe despertava o minimo interesse, especialmente se fosse uma politica nacionalista. Com Primo de Rivera no poder e com o nacionalismo catalão debaixo de fogo, Zamora "traiu" o Barça e atravessou a Diagonal rumo ao modesto Sarriá onde jogava o Español, clube fundado para espanhóis em Barcelona como contraposição ao nacionalismo do clube de Gamper. Ao serviço dos "blanquiazules",  para os quais tinha jogado na sua juventude antes de rumar ao clube azulgrana, Zamora foi, uma vez mais, igual a si mesmo e continuou a ostentar o titulo de maior guarda-redes do Mundo, confirmado com várias exibições de gala com a camisola de Espanha, que chegou a capitanear para escândalo da Barcelona de então, nas Olimpiadas de Antuérpia de 1920 em que a Espanha logrou uma histórica medalha de prata.

 

Ao serviço do Español (assim escrito à espanhola, a versão catalão tem meia dúzia de anos) o portero fez alguns dos seus jogos mais deslumbrantes a ponto que o Real Madrid, então ainda longe de ser uma força suprema do futebol espanhol, não se incomodou com a já sua avançada idade e avançou para uma contratação milionária, a primeira do seu largo historial. 140 mil pesetas, 40 mil das quais directamente para o jogador, marcaram um primeiro recorde em Madrid. Na capital o guardião sentiu-se como peixe na água e começou a deixar transparecer os seus sentimentos pró-falangistas. Esteve até 1936 nas redes do velho Metropolitano. No último encontro da sua carreira, no derradeiro instante, travou sobre a linha de golo um remate de Escolá, dianteiro do Barcelona, para garantir o triunfo por 2-1 do Real Madrid sobre o seu histórico rival. Foi uma doce vingança pelas palavras criticas que ouvia regularmente sempre que voltava à Cidade Condal.

Acabada a carreira começa a guerra. Zamora foge para França, com o seu colega de andanças e traições Pep Samitier, e é capturado pelo exército republicano. Consegue escapar e chega a actuar no Nice durante dois anos até que volta a Espanha para capitanear num jogo não oficial o primeiro encontro da selecção falangista. Foi um reconhecimento internacional que os republicanos nunca perdoariam (eles que tinham, pela figura do presidente Alcalá Zamora, galardoado o guardião no fim da sua carreira com a Ordem de Mérito) e que Franco agradeceria profundamente. O Generalissimo dotou o guardião de todas as honras a partir dos anos 40 e a imprensa afecta ao regime começou a campanha de popularização da figura do guardião junto das novas gerações, com o guarda-redes a surgir em vários filmes com atletas do Real Madrid dos anos 40 (ele que tinha protagonizado já filmes nos anos 20). O recém-criado jornal Marca instituiu também o prémio Zamora para galardoar o melhor guardião espanhol de cada ano, como contraposição ao troféu Pichichi para o goleador de serviço da liga.

 

 

 

Tornado figura oficial do regime, Ricardo Zamora tentou brevemente uma carreira como técnico e foi mesmo apontado como seleccionador nacional em 1952 para surpresa geral. Mais um agradecimento do General Moscardó, então hábil ministro dos desportos de Franco. Depois dessa experiência voltou a Barcelona para ir caindo no anonimato geral do qual foi resgatado já após a Transicion democrática. Politicamente controverso, o talento inato de Zamora era tal que ainda hoje há que se aventure a considerar El Divino como o maior guardião de sempre. Pode ser que tenham razão...



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 03:14 | link do post | comentar

Sábado, 18.12.10

Os dias de glória do velho Sarriá foram enterrados debaixo do mastodôntico Olimpic do Montjuic. O Espanyol sofreu na pele a solidão angustiante da pedra vazia e fria de um estádio sem sentido. Demorou anos a voltar a recuperar o seu espirito de equipa guerreira até à medula. Desde a inauguração de Cornellá que há um novo RCD Espanyol na liga espanhola. Este ano os "pericos" seguem invenciveis em casa. Esperam o inimigo. Que sabe bem onde vão mergulhar...

 

 

 

Enquanto o mundo se encanta e relambe com a orquestra futebolistica do Barcelona de Pep Guardiola, a cidade condal parece esquecer-se de um fenómeno não menos digno de atenção e louvor. O histórico clube da capital, o abrigo dos catalães e emigrantes que se afastam das correntes nacionalistas daquele que se diz "Més que un club", está de regresso às suas tardes mágicas.

Finalista vencido da UEFA Cup de 2007, esse foi talvez a única noite de memória nos últimos vinte anos para o segundo clube de Barcelona. O Espanyol vivia há muito uma crise financeira e moral que deixava mossa, época atrás de época. Após a venda dos terrenos do mitico Sarriá, um dos estádios mais históricos do futebol europeu, a equipa foi forçada a rumar para o imenso estádio olimpico construido para albergar os Jogos de 1992. Clube com uma massa adepta reduzida e pouco endinheirada, o novo e gigantesco recinto tornou-se num pesadelo logistico e estético para o clube azul e branco. Bancadas tapadas com logotipos gigantes ou placards publicitários, um afastamento irremediável provocado pela gigante pista de tartã...tudo parecia deixar a equipa mais longe dos seus. E os resultados ressintiram-se. Um habitué do topo da tabela classificativa, finalista vencido da UEFA em 1988, numa noite épica contra o Bayer Leverkusen, o clube passou a mergulhar nas profundezas da luta para evitar a despromoção. A lei Bosman deixou, também aqui, as suas baixas e a afirmação definitiva no panorama internacional do seu maior rival, o Barcelona FC, condenou definitivamente o clube ao esquecimento. Passaram-se anos até que, finalmente, a velha ideia de ter casa própria, conceito tão arreigado na mentalidade espanhola, ganhou forma. Em quatro anos fez-se e inaugurou-se Cornellá. Com um novo mentor nos bancos, o antigo internacional argentino Mauricio Pochettino, e com uma geração com vontade de comer o Mundo.

 

A morte de Dani Jarque, figura imperial da defesa dos "pericos", foi o choque que despertou a familia blanquiazul.

Cornella tornou-se na reincarnação latina do velho Anfield Road. Estádio cheio, semana após semana, adeptos de pé, bandeiras e cachecóis ao alto. Música ambiente do principio ao fim e o recuperar de um espirito antigo têm sido parte da fórmula de sucesso que devolveu o Espanyol à ribalta, aos postos da Champions League, aos sonhos europeus e às noites de glória. Mas não só.

Se "This is Cornella" é já um mote impossível de contornar no seio dos adeptos do clube, a verdade é que cabe a Pochettino grande parte do mérito nesta profunda transformação. O técnico chegou nos últimos dias do Montjuic e desde então transformou o novo recinto num fortim intransponível. Graças a investimentos acertados no mercado - o dinheiro continua a ser um problema - e a uma politica de cantera que se assemelha muito à mais badalada e mediática escola do rival de Les Corts.

Só este ano o Espanyol abriu ao Mundo - e à própria Espanha, sempre perdida nos duelos Madrid-Barça para reparar no que de melhor têm o resto - os olhos para uma fornada de jogadores com um potencial tremendo. Aos veteranos Kameni - um guardião para as grandes noites - o histórico Ivan de la Peña ou o argentino Aldo Duscher juntam-se o letal brasileiro Osvaldo - que deverá ser vendido no mercado do Inverno para equilibrar as contas - e ainda os jovens Callejón, Javi Marquez, Forlín, Álvaro e o mais flamante de todos, Victor Ruiz.

O jovem central despontou no final da época transacta e já se assumiu como o lider natural de uma das defesas menos batidas da Europa. Abriu passo pelas selecções jovens espanholas e está chamado a emular o seu vizinho e conterrâneo Gerard Pique. Um jogador com uma técnico invulgar para central que é sinal da maturidade que tem a nova vaga desta equipa. O argentino Forlin traz equilibrio ao sector mais recuado, a velocidade de Marquez e Callejon abrem a zona de ataque e Osvaldo resolve o problema da eficácia, suplantado desde já os números do histórico Tamudo, forçado a abandonar a nau no final da época transacta.

 

 

 

Apesar de ser uma equipa sem grande profundidade de banco e com muito caminho por percorrer, é notório que este Espanyol tem muito pouco a ver com as formações passadas do conjunto barcelonês. Um projecto sólido e bem estruturado que deixa antever um futuro brilhante para uma equipa que soube reinventar-se e rejuvenescer décadas com o simples acto de criar um novo lar para a sua afficion. Hoje o Barcelona chega no meio de uma tensão que só os derbys sabem produzir. Quando entrarem em campo, os artistas de Guardiola saberão que chegaram a Cornellá. E isso, hoje, é dizer muito mais do que imaginam!


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publicado por Miguel Lourenço Pereira às 08:40 | link do post | comentar | ver comentários (4)

Quinta-feira, 16.12.10

Tique, taque. Uma precisão suiça em pleno relvado de Belgrado. A bola arranque no miolo central e ali fica, a deambular de um lado para o outro, com a exactidão segura de controlar o tempo. O rodeo asfixia, a verticalidade mata. Debaixo da estrela vermelha com fim à vista, uma geração dificil de reeditar colocava em práctica a sua máxima preferida. O futebol belo é exacto. As vitórias são apenas as migalhas que engolhe o tempo.

 

 

 

26 de Maio de 1991, Bari.

Aqui acabou, provavelmente, uma das maiores gestas desportivas da história. O último grande milagre da história do desporto rei, rapidamente trucidado pela guerra, pelos milhões, pela perda total do controlo. Uma noite cinzenta que colocava o ponto final numa história tão colorida como o arco-iris. Uma geração de magos torpedava um velho sonho europeu gaulês e colocava um ponto final na história era da Taça dos Campeões Europeus. A partir do ano seguinte o espirito da Champions League começaria a asfixiar os campeões dos países periféricos. O despertar do velho ódio nos Balcãs tratou de fazer o resto e destruiu uma equipa chamada a fazer história.

20 de Março de 1991, Berlim.

O muro tinha caído e a Alemanha unificada deveria estar em festa. Mas ao minuto 78 do jogo da segunda mão dos Quartos de Final da Taça dos Campeões, os adeptos do Dinamo Berlim, último representante da RDA na prova, invadiram o relvado onde a sua equipa, hoje perdida nos meadros regionais do futebol germânico, perdia por 2-1. O árbitro espanhol Emilio Soriano deu o jogo por terminado e a UEFA concedeu um triunfo por 3-0 aos visitantes. O mesmo resultado atribuido também por decisão da UEFA a um duelo que se disputava a oitocentos kms de distância, na solarenga Marselha, onde o Olympique local se batia com o campeão europeu em titulo. As luzes foram abaixo, o Milan abandonou o relvado e a UEFA declarou o Olympique ganhador. O destino impediria um revival histórico de um duelo que deixou mossa em Belgrado.

10 de Julho de 1986, Belgrado.

A direcção do Crvena Zvezda aponta como técnico da equipa principal Velibor Vasovic. O ex-selecionador jugoslavo começou o projecto de cinco anos com um objectivo claro: reinar na Europa. Durante os cinco anos seguintes a equipa mudaria de técnico cinco vezes, venceria quatro ligas (com uma derrota pontual em 1989) e espantaria o futebol europeu recrutando progressivamente a melhor geração de sempre da história do futebol de um país a desfazer-se. Com a precisão de um relógio as peças foram chegando a tempo, encaixando na perfeição e funcionando sem surpresas.

 

A geração de Sestic, Ivkovic, Elzner, Mrkela e Durovski foi recebendo sucessivos upgrades a partir de 1986.

Chegaram Robert Prosinecki (para substituir o patrão da equipa, o inimitável Stojković) e a sua alma gémea, Jugovic. Explodiram os génios de Mihajlovic, Belodedic e Stojanovic na defesa. O ataque vibrava com as movimentações do proscrito Savicevic e do rebelde Pancev. E a orquestra funcionava de forma perfeita em conjunto.

O estilo de jogo rendilhado dos jugoslavos ganhava outro dinamismo nos grandes palcos europeus. Os passes letais de Prosinecki, talvez o maior embaixador desta geração, encontravam sempre o caminho mais rápido para o golo. A equipa vermelha e branca dominou o campeonato local - apenas com o Dinamo de Belgrado de Boban como rival à altura - e começou a desafiar o status quo europeu.

Em 1988 estiveram a breves instantes de terminar com a lenda do AC Milan de Sacchi antes mesmo de esta ter arrancado. O conjunto eslavo vencia por 1-0 o conjunto italiano, privado do génio de Gullit, quando o nevoeiro invadiu o imenso Marakana levando o jogo a ser interrompido. Quando reatado, os italianos surpreenderam os locais e lograram empatar, selando o apuramento. A desforra ficaria adiada até 1991. O Crvena Zvezda, popularmente conhecido como Estrela Vermelha por cá, estava determinado a reencontrar os bicampeões europeus. Mas aquela noite fria de Março ditou outro destino. A lenda italiana acabava e os jugoslavos, depois de baterem o Bayern Munchen, encontraram previsivelmente na final aquele Olympique Marseille galáctico onde Wadle, Pelé, Papin, Olmeta, Mozer, Tigana e Stojkovic davam cartas. O duelo, agendado para o San Nicola de Bari, passou para a posteridade pelas piores razões. As duas espectaculares formações ofensivas preferiram especular e o espectáculo ficou adiado. O marcador avançava e Goethels, técnico dos franceses, lançou Stojkovic contra a sua antiga equipa. O jogo mergulhou então nos penaltys e o jugoslavo, provavelmente o maior especialista no terreno de jogo, recusou-se a marcar. Não contra os seus.

Os franceses avançaram temerosos. O internacional Amoros falhou o primeiro remate que caiu nas mãos de Stojanovic. Os franceses tremiam. Mas Prosinecki não. Nem Binic, nem Belodedic, nem Mihajlovic... nem Pancev. E foi suficiente. O plano funcionou, a história encontrou o seu último campeão do leste - cinco anos depois do Steaua Bucaresth - e o futebol despediu-se com uma ovação de uma das suas últimas grandes equipas.

 

 

 

Dias depois a guerra e os milhões do Ocidente desmantelaram o histórico clube de Belgrado. Separados, os artistas de Belgrado nunca voltaram a render ao mesmo nível, nem em Espanha, nem em Itália nem em Inglaterra. O clube jugoslavo pagou o preço da destruição do velho gigante de leste e mergulhou na mais profunda depressão. Esta semana, vinte anos depois de ter arrancado a sua mais gloriosa campanha europeia, o clube nomeou a maior glória daquela noite, Prosinecki, como novo Manager. O tempo não volta para trás mas a precisão de relógio do mago de Belgrado tem com vista tempos pretéritos. Só assim se poderá resgatar a chama de um conjunto que rasgou a cortina antes de tempo para mostrar o lado mais belo do futebol.




publicado por Miguel Lourenço Pereira às 22:05 | link do post | comentar

Quarta-feira, 15.12.10

Hoje cumprem-se 50 anos da chegada de Eusébio da Silva Ferreira a Portugal. Ontem cumpriram-se 10 desde que Lionel Messi aterrou em Barcelona. Dois nomes que já ganharam merecidamente o seu lugar na história do jogo. Duas aventuras intercontinentais que marcaram uma era desportiva e que explicam também como um jogador na equipa certa e no momento certo pode ser suficiente para definir uma era.

 

 

 

Eusébio tinha cumprido há poucos os 18 anos e chegou a Lisboa escondido sob um falso nome, de mulher, para escapar à vigilância dos dirigentes do Sporting. Passou umas férias forçadas no Algarve e teve de contemplar de longe a primeira grande noite de glória europeia do Benfica, do seu Benfica. Quarenta anos depois um pequeno argentino com um grave problema de crescimento colocou-se nas mãos do destino e com o pai, rubricou num guardanapo de papel a sua tremida assinatura que iria definir toda a sua vida. Duas aterragens sem pompa e circunstância, sem o poder da ribalta das milionárias apresentações do Real Madrid de Florentino Perez, da revolução moral que significou a chegada de Johan Cruyff a Barcelona ou sem a esperança recuperada dos milhares de napolitanos que acorreram a vitoriar Maradona. Não, estes dois humildes da bola chegaram incógnitos e assim ficaram durante meses, até chegar a hora de dizer presente.

Se houve um futebolista que pode ter rivalizado de igual para igual com Pelé e Di Stefano, esse foi Eusébio da Silva Ferreira. Se há jogador hoje que gera facilmente consensos no mundo do desporto, esse é Leo Messi. Dois atletas profundamente distintos na forma de interpretar o jogo mas com demasiadas similaritudes de caracter e historial para serem produto de um mero acaso. Eusébio e Messi marcaram (o argentino ainda o faz) uma era na história do futebol. Porque destilavam genialidades a cada momento no relvado. Mas essencialmente porque aterraram no sitio certo, à hora certa. Porque encontraram os projectos idóneos para crescer e explodir no momento exacto. Porque o Benfica dos anos 60 e o Barcelona contemporâneo foram, na sua medida, os expoentes máximos do futebol de ataque, do futebol espectáculo, do futebol que apaixonava os adeptos onde quer que estivessem. No filme In the Name of the Father, história de um irlandês injustamente acusado de pertencer ao IRA, as paredes de uma prisão britânica de alta segurança estão forradas com posters de Eusébio e galhardetes do Benfica, adorado em terras de sua Majestade desde que vergou as potências espanholas e bateu o popular Tottenham. Hoje Messi é o espelho do herói global, atleta reconhecido e apreciado onde quer que caminhe, com admiradores que vão das ruas de Rosario aos bairros de lata de Bangkok. Ambos tiveram rivais dignos à sua altura. Messi cresceu com Xavi e Eusébio com Coluna. O jovem moçambicano aterrou numa equipa campeã europeia onde gravitavam já grandes nomes (José Aguas, Germano, José Augusto) e grandes promessas (Torres, Simões). O argentino cresceu à sombra imensa de Ronaldinho e Etoo e viu explodir a seu lado o talento inato de Iniesta ou Busquets. Nada é obra do acaso.

 

A história já nos tratou de ensinar mil vezes a vida de um jovem moçambicano que se fez estrela e acabou por se tornar no icone futebolistico dos anos 60, a meio caminho entre o génio inato de Pelé e Di Stefano e o futebol total dos Beckenbauer e Cruyff. Ultrapassou Best, Charlton, Suarez, Fachetti, Garrincha, Gento, Greaves e companhia e pegou num pequeno clube e num pequeno país e fez deles alguém no panorama internacional. As condições daquele Benfica foram inigualáveis. Clube bem estruturado, com importante apoio estatal e financeiro, o clube encarnado aproveitou-se de Eusébio para despegar da luta de galos no futebol luso durante os quinze anos de mandato do marechal luso. Montou uma equipa de talentos à sua volta, explorou-o fisicamente para lá dos limites e afirmou um estilo e um modelo de jogo impar no panorama europeu. Utilizou a "cantera" africana como nenhum outro clube e definiu um projecto que durou até ao final dos anos 70. No meio dessa associação,

Quarenta anos depois, quando o pequeno argentino Messi chegou a Barcelona, a Masia vivia a sua época mais apagada, com os sucessivos mandatos de Louis van Gaal a deixarem para segundo plano o projecto de formação arrancado dez anos antes com Cruyff e Rexach. O desenvolvimento sustentado do jovem, auxiliado por um programa de crescimento hormonal fulcral para a sua sobrevivência como desportista, ocorreu tranquilamente longe dos holofotes. Com ele cresceram os génios de Pique, Fabregas, Iniesta, Busquets, Pedro e companhia, num estilo de aprendizagem que hoje espelha o trabalho de bastidores que há por detrás. Como Eusébio, o argentino foi recrutado novo e no estrangeiro e passou por um processo de assimilação que explica bem as similiaritudes entre a politica daquele Benfica e do actual conjunto blaugrana. Quando se estreou, quatro anos depois, no estádio do Dragão, bem ao lado de um terreno onde Eusébio exorcizou muitas vezes os seus fantasmas com tardes de gala, a formação estava completa. Com professores de luxo e essamentalidade incutida desde cedo, Messi transformou-se e com ele o jogo do Barcelona. O seu encontro com Guardiola funcionou como uma dessas raras simbioses que existe na história do jogo, muito similar à relação entre Michels e Cruyff, mentor do catalão. Pep pegou num jovem já consagrado e fez dele a peça nuclear do seu projecto. Retirou-o da ala, onde já se podia afirmar como  um dos mais completos futebolistas da história, e soltou-o no meio do terreno de jogo. Precisamente como Eusébio.

O luso não tinha posição no terreno de jogo. Num 4-2-4 clássico, Eusébio era a incógnita que destruia qualquer equação rival. Deambulava pelo terreno de jogo a seu belo prazer, associava-se com os colegas do miolo, das alas e da frente de ataque. E quando era necessário, decidia sozinho o que o colectivo era incapaz de fazer. Usava o seu temido arranque, a sua incomum força e o seu remate indefensável. Um estilo hoje mais similar ao do português Ronaldo do que aquele que destila o matreiro argentino, sempre de regate curto, bola colada ao pé, dribles estonteantes e remates colocados, mais em jeito que força, como uma suave brisa em comparação com o tornado africano.

Mas ambos tornaram-se vectores fulcrais na evolução táctica das suas equipas. Messi é hoje tudo  no ataque do Barça. Funciona como falso 9, apesar de estar Villa em campo. Descai para as alas para procurar a velocidade e vem até ao miolo começar o processo criativo que mamou desde pequeno, desde aqueles 13 anos com que aterrou em Can Barça. Por conhecer a história de trás para a frente, sabe onde tem de estar quando a jogada acaba. E por isso marca como poucos jogadores do seu estilo marcaram, aliando a técnica da criação, a diferença da explosão ao espirito certeiro do golo. Exacto, precisamente como...

 

 

 

Há 50 anos a história do futebol português conheceu uma reviravolta inesperado que se materializaria seis anos depois com a presença quase imaculada no Mundial de 66. No curriculum do "rei" Eusébio tinham ficado duas taças europeias, um Ballon D´Or, Botas de Ouro e uma admiração impar no Mundo, habituado a ouvir falar dos feitos de Pelé à distância. Messi continua por aí, a deambular sobre o tapete verde com o olhar perdido no mais abstracto dos sentidos. Depois a bola chega-lhe aos pés, e futebol acontece. Como há 50 anos. Como há 10 anos. Como sempre que a faísca da magia toca enrabietada na superfice da bola. Se na Luz ou se no Camp Nou, se na era gentleman dos 60 ou no exarcebado globalismo de hoje.  Génios e circunstâncias, assim se definem eras.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 08:33 | link do post | comentar | ver comentários (4)

Terça-feira, 23.11.10

Longínquo vai o dia em que um jovem Zinedine Zidane passeou o seu precoce talento contra o histórico Salgueiral. Vinte anos depois o Salgueiros continua submergido numa crise sem fim à vista. Perdeu o técnico e a possibilidade de abandonar os escalões regionais. Mas não perdeu a esperança. A "Alma Salgueirista" há muito que está carpida no sofrimento.

Os mais nostálgicos lembram-se da noite em que os franceses do Cannes foram derrotados por uma bola a zero no velho Estádio do Bessa (o saudoso Engenheiro Vidal Pinheiro não tinha para a UEFA condições para albergar o jogo).

Um resultado que não permitiria ao histórico Salgueiros ultrapassar uma eliminação precoce naquela que foi a sua única presença numa prova europeia. Na equipa contrária começava a dar de si um jovem de 19 anos, Zinedine Zidane, que anos mais tarde havia de ser o melhor do Mundo. Mas quem o poder adivinhar? Do outro lado lutava a legião de honra do clube mais popular da cidade Invicta, clube dos mais pobres e desfavorecidos face ao elitismo dos vizinhos da Boavista e das Antas. O trabalho de Pedro, Abilio e companhia não foi suficiente para travar os gauleses. Mas honrou o espirito lutador de um clube pequeno que passou a sua vida a lutar entre a subida e descida de divisão dos principais escalões do futebol luso.

Hoje, vinte anos depois, o Sport Comércio e Salgueiros já nem existe nas provas competitivas. No seu lugar, por culpa das dividas acumuladas pela megalómana gestão de José António Linhares, o clube compete com um novo nome- Salgueiros 08 - nos campeonatos distritais do Porto. Teve de começar do zero como se atrás não houvesse um passado centenário, uma massa adepta fiel e um coração que sofre.

O projecto Salgueiros 08 demorou a gestar-se, enquanto que o histórico "Salgueiral" definhava. Quando arrancou foi retumbante. Subiu em três anos os escalões mais baixos do futebol portuense, lutando contra rivais que nunca disputaram um só jogo nos estádios grandes de Portugal. Até este ano. Estancado na Divisão de Honra da AFP, o objectivo de subir finalmente aos campeonatos nacionais (III Divisão) está já comprometido, com menos de metade da prova cumprida. O técnico, uma velha glória do clube, Renato Assunção (ex-jogador também de Sporting e União de Leiria e irmão do notável cronista desportivo do jornal Público, Manuel Assunção) abandonou o projecto. Tinha rendido o histórico capitão Pedro Reis, arquitecto da dupla promoção dos encarnados. E deixa um cenário complicado de gerir, com o espectro da despromoção demasiado presente.

 

Este Salgueiros é um clube profissional num mundo amador. Mas sem dinheiro nem os mais profissionais dos amadores resistem.

O conjunto que compete na prova da AFP com equipas do Grande Porto (incluido o Felgueiras, que também passou pela I Divisão a meados dos 90) está agora no 15 posto, a três apenas da despromoção. E com menos 20 que o líder incontestado, o Infesta. Na última ronda, num relvado pelado, frente ao modestíssimo Vilarinho, a equipa salgueirista esteve a ganhar 2-0. Em quinze minutos deixou-se bater por um rival que luta para não descer. Golpe demasiado duro para um projecto que ambiciona estacionar num prazo de quatro anos na II Liga, de onde caiu há cinco anos por não ter condições financeiras para suportar os pagos que levaram à penhora de quase tudo o que tinha a ver com o clube.

Vendidos os terrenos do Vidal Pinheiro (estádio histórico do futebol luso hoje transformado em paragem de metro) e com o delirante projecto do recinto de Arca d`Água no papel, a equipa joga em terrenos emprestados na área metropolitana portuense. Sem casa, sem profissionais a corpo inteiro mas com alma, assim segue a luta.

Com a subida à III Divisão quase hipotecada, o esforço da direcção passa por garantir, pelo menos, a manutenção. Perder um ano mais entre descidas e subidas é algo que este projecto não consegue suportar. A fuga em frente para sofrer um abrandamento, nunca uma travagem em seco. Lembrando-se do que sucedeu ao Boavista, velho rival com quem disputou imensas lutas no Bessa e Vidal Pinheiro desde os anos 50, o Salgueiros sabe que os campeonatos amadores da FPF são mais um problema do que uma solução. Saltar divisões e etapas é fundamental numa equipa sem estrelas, com muitos jovens e sem experiência alguma.

Lembrando as origens do histórico Salgueiral é fácil que o caminho sempre foi feito com poucos tostões no bolso. Os fundadores da equipa cantaram cantigas de Natal para juntar dinheiro para comprar a primeira bola, em 1911, e escolheram vestir de vermelho para não serem confundidos com os rivais azuis da cidade Invicta. A partir daí os seus caminhos correram campos diametralmente opostos. Os mais velhos estão habituados ao sofrimento, os que cresceram com o clube como um fixo da I Divisão desesperam e os mais novos há muito perderam o conceito de identificação. Mas o mural da Alma continua de pé e a luta é algo a que não se renuncia em Paranhos.

 

Num clube por onde passaram figuras históricas do futebol luso como Sá Pinto ou Deco, talentos como os de Abilio e Edmilson, homens de luta da talha de Chico Fonseca, Pedro ou Alberto Augusto e guardiões internacionais como Silvino ou Pedro Espinha o passado conta e muito. Já não há o dedo táctico de Zoran Filipovic, Carlos Manuel ou Mário Reis mas o futuro continua a ser visto com uma dose de optimismo que só a fanática Alma encarnada é capaz de sentir. Ninguém sabe onde estará o Salgueiros daqui a dois ou três anos. Mas a memória de um clube popular como poucos em Portugal perdurará eternamente.



publicado por Miguel Lourenço Pereira às 14:03 | link do post | comentar | ver comentários (5)

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