Minuto 76.
O Estádio do Dragão levanta-se e aplaude. Entusiasticamente. Ouve-se num canto uma música que fez história. O jogador, de branco, sai do relvado agradecendo a maré da aplausos. Hoje estava do outro lado. Mas isso não importa. Pelo menos não naquele momento. Tal como quando enchia de magia os relvados nacionais e europeus, de dragão ao peito, ontem Deco voltou a ser ovacionado pelos seus. É o valor da gratidão pelo mais decisivo jogador da década no futebol português.
Não teve uma noite inspirada. Aliás, não está a viver a sua melhor época. Nota-se no rosto e nas pernas que a carreira de Deco caminha de forma tranquila, mas determinada, para o seu ocaso. O "Mágico" é ainda capaz de lances absolutamente geniais. Mas começam a escassear e o reportório é há muito conhecido. Não interessa. O passado já tratou de o colocar no devido lugar. Durante mais de dez anos mostrou que era capaz de ombrear com os melhores. Depois de conquistar tudo neste rectângulo à beira-mar aceitou o desafio do estrangeiro, onde voltou a ganhar tudo o que havia para conquistar. Falta-lhe provavelmente apenas uma Premier League. Pelo andar da carruagem, este ano pode perfeitamente culminar um curriculum perfeito. Duplo campeão europeu, Ballon D´Argent em 2004 - uma das mais injustas derrotas da década - , eleito melhor jogador da Champions League no mesmo ano, vencedor de três ligas portuguesas, duas espanholas entre tantos outros pequenos grandes trofeus. Um CV que é suficiente para o colocar no "Olimpo" desportivo. Ontem, esse mesmo mágico de outras noites chuvosas, voltou a sentir o calor do Dragão. O estádio que fez dele uma estrela internacional, o herdeiro do recinto onde se estreou, no meio de tanta polémica, pela selecção portuguesa. Da qual é o patrão há mais de meia década.
Deco é sem dúvida o mais completo futebolista que actuou na última década em Portugal.
Começou a sua carreira no Corinthians Alagoano e chegou a Portugal envolto em promessas por cumprir por parte do Benfica. Vagueou pelo Alverca, surpreendeu no Salgueiros e acabou respescado pelo FC Porto para suceder ao esloveno Zlatko Zahovic que já ameaçava com deixar as Antas, a bem ou a mal. Sagrou-se campeão no seu primeiro ano e depois viveu a época de "vacas magras" dos azuis e brancos. Durante esse periodo foi criticado pelos adeptos pelo seu estilo perdulário mas foi precisamente com Fernando Santos que o criativo brasileiro ganhou o poder de recuperação de bolas que lhe permitiu tornar-se num médio universal. Com a chegada de José Mourinho o médio estava já em plena maturidade desportiva. Tornou-se no lider natural do FC Porto que em dois anos venceu tudo o que havia para ganhar. Superou o preconceito nacional e liderou a equipa das Quinas à final do Euro 2004, substituindo o já apagado Rui Costa no onze nacional. Para nunca mais perder o posto. O sucesso levou-o a Barcelona, resultado de um pré-acordo existente entre os portistas e blaugranas. Aí juntou-se a Ronaldinho, Etoo e Messi para formar um quarteto de sonho. Duplo vencedor da liga espanhola, em Paris voltou a vencer a Champions League. Tinha perdido em protagonismo mas ganho em eficácia de jogo. Com a saída de Rijkaard e a polémica à volta da vida nocturna da cidade, o brasileiro aproveitou para rumar a Inglaterra depois de rejeitar o convite de Mourinho e assinar pelo Inter. No Chelsea encontrou-se com Scolari, que fez dele titular indiscutivel, passando depois alguns apuros com Guus Hiddink, que acabou por utilizá-lo com menor regularidade. Hoje é decisivo para Carlos Queiroz e útil para Carlo Ancelloti, que o alinhou no duelo de ontem para que o "número 10" pudesse receber a devida homenagem.
Incontornável na história do futebol português, Deco é, ainda hoje, o exemplo de um futebolista de classe. Eximio nos lances de bola parada, com um remate atrevido e letal, é um médio fulcral nas manobras das equipas por onde passou. Estará provavelmente no seu último ano de competição ao mais alto nível. Na África do Sul quererá despedir-se em grande antes de um provável regresso ao futebol brasileiro, que nunca o respeitou por ter chegado tão novo à Europa. Curiosamente assinou o golo da vitória portuguesa diante do escrete canarinho, no seu jogo de estreia por Portugal. O estádio não era o mesmo, estava uns metros acima. Mas a música era precisamente a de ontem. Aquela que ouviu à medida que caminhava para o banco, com toda uma cidade rendida ao seu génio. "É melhor que o Pelé, é o Deco allez, allez"...