É por tardes como esta que a Premier League continua a ser a verdadeira pedra filosofal do futebol europeu. Golos, espectáculo, emoção até ao último sopro, heróis e vilãos e no final um veterano rejuvenescido que continua a fazer história. Mais do que esta mitica vitória por 4-3, este Manchester United vs Manchester City confirma - se falta fizesse - o quão indispensável é (ainda) Sir Ryan Giggs.
Há grandes equipas e estrelas em Espanha, há uma enorme cultura táctica em Itália e em França, Alemanha ou Holanda os vencedores são quase sempre imprevisiveis. Mas a magia do futebol britânico é única e não tem comparação com qualquer outra liga europeia. Se a Premier League ainda precisa-se de publicidade, nada melhor que ver este derby de Manchester para entender que a mentalidade nas ilhas acompanha o espirito vibrante do jogo. A polémica posterior ao golo decisivo é apenas o resultado da enorme paixão que se vivem nos 90 (mais 5) minutos de jogo no tapete verde de Old Trafford. Frente a frente, mais do que dois rivais com mais de cem anos de história, os dois rostos da Premier. O grande dominador da prova - desde que esta começou em 1992 - e o mais recente candidato ao trono de campeão, o embaixador do novo-riquismo árabe e o seu dinheiro do petróleo. Um vizinho ruidoso, como apelidou à posteriori Ferguson, ou um rival tremido, como antecipou Tevez?
Neste jogo de parada e resposta, emoção e magia, houve lugar a tudo. Tacticamente o conjunto de Mark Hughes exibiu-se a bom plano na primeira parte com um sorrateiro Tevez a abrir bem uma linha ofensiva onde Bellamy e Wright-Philips tinham carta branca para vagabundear. Estava no tridente composto por Ireland-Barry-De Jong o segredo do ex-avançado do United. Um bloco sólido e rápido que foi frustrando as investidas do United, despojado dos seus dois melhores centro-campistas (Carrick e Scholes) mas com uma dupla endiabrada. O golo inaugural de Rooney, aos dois minutos num lance genial, pareceu ditar o rumo do jogo e a verdade é que a primeira hora foi totalmente dos Red Devils. Um dominio avassalador que só não se tornou mais claro no marcador porque a sorte esteve do lado de Given. O que não se pode dizer em relação a Ferdinand. Em dia aziago o central adormeceu na área e permitiu a Tevez roubar a bola a um desastrado Foster e assim oferecer o golo a Barry. O injusto empate equilibrou o jogo e o City começou a actuar de forma autoritária. Tevez podia ter feito o segundo mas os ses no futebol não valem e o empate com que se fechou o primeiro tempo quebrou-se ao abrir o segundo.
Foi aqui que começou o recital de Ryan Giggs. O galês cumpriu o seu 30 derby de Manchester com uma exibição a lembrar os seus dias como melhor extremo esquerdo mundial. Fazendo esquecer qualquer CR do passado, o número 11 foi dono e senhor da equipa e pautou o ritmo do jogo à sua maneira. Abriu a segunda parte com um centro milimétrico para a cabeça de Fletcher e pouco depois voltou a fazer das suas, mas Given estava lá para impedir o terceiro. Ferguson acordou a equipa e Anderson e o escocês anularam por completo um meio campo citizen que recuava de forma temerária. Só que o futebol tem destas coisas. Num lance genial de Tevez e Bellamy, o galês procura o único buraco onde podia enfiar a bola e concretiza o empate. Nova carga da brigada vermelha e novo desespero de Given até que a dupla Giggs e Fletcher volta a funcionar e o marcador pende de novo para casa. Estava reposta a justiça no marcador que Ferdinand tratou de desfazer. Uma temeridade que a serpente Bellamy aproveitou para voltar a igualar. Hughes celebrava entusiasticamente. Depois de esmagar o Arsenal, um empate em Old Trafford confirmava o estatuto de candidato real ao ceptro. Os vizinhos faziam realmente muito barulho.
De tantas vezes que se disse que o futebol é mais do que 90 minutos, parece que há um homem que tem essa lição muito bem estudada. Ferguson é uma raposa velha que sabe o que faz. Ao sofrer o empate, ao minuto 89, imediatamente lança Michael Carrick. Gasta tempo e permite esticar o relógio e desconcertar Hughes que dá ordem aos seus jogadores para defenderem o empate como leões. Mas para leões, os galeses lançam dragões. O mágico pé esquerdo de Sir Ryan Giggs e a sua visão de jogo sobrenatural decidem o encontro. Um passe a rasgar - já iamos pelo minuto 94 e muito - encontram um solitário Michael Owen, até então perdido no ataque. Recebe, domina, dispara e faz história. O golo de Owen restablece a justiça no marcador e dá o final épico e merecido a um derby como este.
Uma longa noite na cidade de Manchester, berço do melhor futebol e da melhor música das ilhas, onde os vizinhos mais ruidosos serão, provavelmente, os que vestem de vermelho como o tijolo das casas que cercam o Teatro dos Sonhos. Sonhos de glória para uns, sonhos desfeitos para outros. Afinal isto é a Premier League.