Na época onde brilhavam Pelé, Charlton, Eusébio, Kopa ou Suarez, o mundo de futebol vivia uma das eras mais brilhantes. No entanto o Mundo parecia ter-se esquecido que um dos seus mais finos e exímios executantes passou aqueles anos de espectáculo preso num gulag siberiano. Ainda hoje, meio século depois, o mundo do futebol continua sem querer saber de um génio que revolucionou o futebol russo. Chamava-se Eduard Streltsov.
Os seguidores do campeonato russo perguntar-se-ão porque será que o Torpedo de Moscovo - um dos clubes mais humildes da capital hoje nas ligas amadoras - tem às portas do seu estádio uma estatua de um jovem jogadores de nome aparentemente desconhecido. Na mágica selecção de 1960 da URSS que venceu o primeiro Europeu em Paris brilhava Yashin nas redes, mas o grande maestro do futebol soviético estava na realidade bem longe dali. Quem o viu jogar nunca duvidou em catalogá-lo como o mais completo futebolista da história do futebol russo. Chamavam-lhe o "Pelé russo" pela forma como irrompeu e rapidamente se afirmou na URSS de então. Tinha 19 anos quando liderou a magistral selecção soviética que venceu a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Sydney de 1956. O jovem nascido em 1937 nos arredores de Moscovo tinha-se estreado dois anos antes pelo seu clube de sempre, o Torpedo. No seu primeiro ano como profissional logrou chegar ao sétimo posto na votação do Ballon D´Or. O seu drible vistoso e a eficácia goleadora (apontou 100 golos em 200 jogos disputados na liga) deram rapidamente nas vistas e Streltsov tornou-se rapidamente na estrela do bloco de leste. A fama era tal que ainda hoje o passe de calcanhar tem o seu nome no futebol russo. Símbolo de uma geração que procurava desatar-se das amarras sociais, tornou-se num ícone para os adeptos mais jovens e para os descontentes com o regime. O seu sucesso significava a derrota dos clubes apoiados pelos elementos mais destacados do aparelho politico-social da URSS de então.
Nas vésperas do Mundial de 1958, onde a equipa soviética era uma das favoritas, o KGB abordou Streltsov e incitou-o a deixar o modesto Torpedo por um dos dois grandes clubes de então, o Dynamo (do próprio KGB) ou o CSKA (do exército). Reforçando a sua dedicação ao clube de sempre o jogador recusou, mesmo depois de o próprio Yashin ter sido enviado pela Federação a sua casa para demovê-lo. O não teve graves consequências. O jogador foi suspenso da selecção indefinidamente e semanas depois um dirigente do Partido Comunista, cuja filha tinha sido rejeitada pelo então sex-symbol do futebol russo, mandou-o prender sob a acusação de violação. Sem provas o caso arrastou-se pelos tribunais até que o KGB surgiu de novo em cena e na prisão convenceu Streltsov a confessar, prometendo que seria absolvido e que poderia incorporar-se aos colegas da selecção que estavam a poucos dias de partir para a Suécia. O jogador aceitou o pacto mas acabou por ser condenado e enviado para um gulag na Sibéria. Aí passou sete longos anos. A URSS decepcionou no Mundial mas venceu o Europeu de 1960 e o mundo do futebol, então rendido aos grandes craques ibéricos e brasileiros, esqueceu-se do mago russo.
Em 1965 acabou o período de cativeiro e um debilitado Streltsov foi solto pela policia. O Torpedo reincorporou-o de imediato ás suas fileiras e apesar de ter perdido a velocidade e poder de explosão que tinha aos 21 anos - quando foi encarcerado - ainda tinha talento nos pés. Nos cinco anos seguintes tornou-se de novo no melhor jogador russo tendo mesmo logrado o feito de levar o pequeno Torpedo ao titulo de campeão em 1965. Foi dois anos consecutivos jogador do ano e voltou à selecção se bem que sem o brilho de antes. Nessa segunda etapa tornou-se ainda mais letal na área marcando uma média de 20 golos por ano. Aos 33 anos, por problemas de saúde, deixou definitivamente os relvados afastando-se imediatamente da ribalta. Faleceria em 1990, vitima de cancro, depois de vários anos onde sofreu o resultado dos dias no campo de concentração onde esteve preso. Nunca falou sobre essa etapa e mais tarde soube-se que continuava vigiado e ameaçado pelo KGB para manter-se na sombra. Após a sua morte tornou-se num símbolo da Rússia pós-URSS e hoje em dia é uma figura reabilitada no futebol russo. No entanto a esmagadora maioria do mundo continua a desconhecer o génio irreverente do herói do gulag.