Há vinte e três anos morria numa movimentada estrada de Madrid a primeira pérola negra do futebol britânico. No país que inventou o beautiful game a população negra parecia ter sido historicamente colocada de lado no desporto mais popular do país. Até que chegou Laurie Cunningham, e com ele uma nova esperança de futuro. Na capital espanhola apelidaram-no de "El Negro" e aí acabaria por morrer num trágico acidente de viação.
Contam-se pelos dedos das mãos os jogadores negros britânicos a brilharem no futebol das ilhas até aos anos 80.
Um contra-senso, já que não só a população negra - particularmente nos centros urbanos - cresceu velozmente ao largo do século, mas também pelas condições físicas que permitiam a jovens oriundos - directamente ou em primeira ou segunda geração - de África ou das Caraíbas, mostrar o perfume do seu jogo. O historiador desportivo Chris Green citou apenas quatro exemplos anteriores ao final dos anos 70. Arthur Warton e Walter Tull, ainda no amador século XIX, e Lindy Delapenha e Teslim Balogun nos anos 50.
Mas o percurso deste mágico futebolista negro britânico seria de todos o mais marcante. Nasceu em Londres, a 8 de Março de 1956. Numa época onde os Busby Babes iluminavam o futebol europeu e Stanley Matthews e Jimmy Greaves faziam as delicias dos mais novos, Laurie Cunningham começou a correr endiabradamente atrás de uma bola. Aos 18 anos este descendente de jamaicanos decidiu tornar-se profissional e assinou um contrato com o modesto Leyton Orient depois de ter sido rejeitado pelo Arsenal. Despontou rapidamente e dois anos depois foi contratado pelo West Bromwich Albion. Sob o comando do carismático Ron Atkinson, no Hawthorns Stadium começou a mostrar todo o seu talento e a parceria com Batson e Regis - também de raça negra - levou ao aparecimento de um verdadeiro fenómeno mediático que passaria para a posteridade como os Three Degrees, nome de uma popular banda soul norte-americana negra da época.
No WBA o jovem Cunningham explodiu liderando a equipa aos seus melhores resultados dos últimos 50 anos. Em 1978 disputaram até ao fim o titulo com o poderoso Liverpool, tendo estado invictos durante três meses. Isso permitiu ao jovem ser também o primeiro negro a estrear-se com a camisola inglesa num jogo oficial. Mas nem tudo era rosas.
Num país de contrastes, o racismo no futebol era um tema tabú e poucos atreviam-se a defender Cunningham dos ataques sofridos. O jogador era constantemente vitimas de ameaças e ataques racistas, os mesmos que ainda hoje sofrem jogadores da Premier League como os recentes casos de Anton Ferdinand e Patrice Evra demonstram, mesmo dentro do terreno de jogo.
Durante um jogo atiraram-lhe uma navalha aberta e numa viagem ao norte - zona tradicionalmente mais conservadora - foi colocada uma bala junto do poste da baliza do WBA com a mensagem "Terás uma destas nos joelhos se jogas pela nossa Inglaterra"). Era constantemente assobiado quando a equipa jogava fora e até nos partidos disputados em casa havia sempre um sector racista que não se cansava de o assobiar. Em 1979 - e depois de um magnifico jogo a duas mãos contra o Valencia numa eliminatória da Taça UEFA - o promissor extremo esquerdo, então com 23 anos, deixou as ilhas para assinar pelo Real Madrid por uma cifra record de 995 mil libras.
Foi o primeiro britânico a actuar no clube merengue e no Bernabeu viveu os seus melhores momentos como jogador. No primeiro ano venceu a Liga e a Taça do Rei, mas também passou por momentos complicados, com a afficion ultra madridista a apelidá-lo pouco carinhosamente de "El Negro".
No entanto o público em geral aplaudia o seu estilo rápido e letal mas as sucessivas lesões que foi sofrendo e a sua agitada vida nocturna progressivamente afastaram-no do onze. Quatro anos depois de aterrar em Madrid voltou a Inglaterra, mas a carreira estava já em queda livre. Actuou a espaços no Manchester United (onde reencontrou Atkinson) por empréstimo e ainda passou por Sporting Gijon, Olympique Marseille, Leicester, Charleroi e Wimbledon clube onde conseguiu o seu último troféu, uma FA Cup em 1988 contra o mítico Liverpool. No final da temporada decidiu voltar a Madrid, desta feita para actuar no pequeno Rayo Vallecano. Ao serviço do clube madrileno não exibiu o seu melhor nível e na noite de 15 de Julho de 1989 morreu num violento acidente de tráfego na circunvalação da capital espanhola. Tinha apenas 33 anos e era um fantasma da flecha que tinha despontado dez anos antes.
Em Inglaterra poucos deram importância ao evento mas a inequívoca verdade é que Cunningham fez história. A estreia pela equipa nacional inglesa num jogo oficial (em 1979) fez dele o primeiro negro internacional britânico. O extremo abriu as portas para dois dos grandes futebolistas britânicos da década - John Barnes e Paul Ince - e iniciou uma verdadeira revolução no futebol inglês. Na época em que surgiu, Cunningham era a única estrela negra e hoje a Premier League conta com um 23% de jogadores de raça negra, muitos dos quais ingleses internacionais como l Theo Walcott, Danny Wellbeck, Ashley Young, Ashley Cole, entre tantos outros. O seu estilo de jogo era apaixonante mas foi o seu espírito de luta e sacrifício que lhe permitiram quebrar barreiras invisíveis. Foi a primeira pérola negra num futebol que descobriu tarde a sua imensa colónia e que hoje olha para trás com um inevitável sentimento de culpa.