Anfield Road é pasto de mitos únicos e memorias que ultrapassam qualquer dimensão clubística. É também um estádio que vive esfomeado de títulos depois de um banquete que durou sensivelmente mais de duas décadas. De reis do Mundo a eternos perdedores, a saga triste da Kop encontrou em Luis Suarez o antídoto perfeito à indigestão. Há muito mais neste Liverpool - no seu treinador, na sua gestão directiva, no plantel - do que o uruguaio. Mas Suarez é a alma dos Reds e o único jogador que lhes permite sonhar com regressar ao passado onde foram felizes.
Um estádio que viu jogar, entre tantos, a Keegan, Dalglish, Rush, Barnes, Beardsley, Souness, Owen, Fowler, McManaman, Torres, Gerrard, Alonso ou Toshack deveria contemplar as maravilhas de Suarez como algo habitual. Algo parte do seu histórico ADN. Mas a seca de glórias, títulos e euforias é tal que hoje o que vemos o dianteiro uruguaio conseguir parece saído de um conto de fadas. Como se Anfield fosse St. Mary´s, Craven Cottage, Hillsborough ou qualquer outro estádio que não aquele que povoou a ilusão de miúdos e graúdos durante mais de quarenta anos.
Hoje, seguramente, impulsionados pela euforia, ouviríamos muitos adeptos dos encarnados de Liverpool dizer que Suarez não é menos que qualquer um desses jogadores. Os números poderiam dar-lhes a razão. O seu arranque de temporada não tem igual em toda a Europa. Nem os brutais números de Cristiano Ronaldo se podem comparar ao que Suarez tem feito desde que acabou a sua suspensão. É o máximo candidato a vencer o prémio de Melhor Jogador e Goleador da Premier League...e a ainda vamos pelo Boxing Day. Os seus números podem permitir-lhe sonhar com a Bota de Ouro - mesmo que Ronaldo e Messi, se recuperado a tempo, continuem a ser de outro planeta - e ao Liverpool de pensar em algo diferente. A equipa histórica de Anfield não se qualificou para a Europa, o palco onde a lenda se fez real. Para muitos era mais uma oportunidade para fazer reboot e começar do zero. Para a inteligente direcção do clube foi o ponto de partida para um modelo de gestão racional a médio prazo. Brendan Rodgers, um dos melhores treinadores britânicos, já tinha demonstrado com o Swansea daquilo que era capaz. Em Liverpool apenas precisava de duas coisas: tempo e jogadores capazes de entender a sua filosofia. Conjugados os elementos o resultado está à vista.
Não, o Liverpool não é - malgrais tout - candidato a vencer a Premier League.
A qualidade dos planteis de Manchester City e Chelsea - os favoritos reais - e o grande momento do Arsenal estão por cima da gesta de Suarez e companhia. Mas voltar à Champions League - com um Tottenham em hara-kiri e um Manchester United a passar a sua própria fase de transição - é algo perfeitamente possível. Rodgers tem o plantel, a carga de jogos adequada e tem Suarez, um diferenciador fundamental.
Actualmente o papel do uruguaio é único em todo o futebol inglês. Nem o génio de Ozil com os gunners, nem a grande época de Óscar com os Blues, o talento de Aguero dos Citizens ou o apetite goleador de van Persie, que no ano passado salvou os Red Devils - estão à sua altura. Suarez tem marcado, assistido e gerado ilusão. A sua associação com Sturridge permite lembrar outras duplas históricas do passado. Os Fowler/Heskey-Owen, Beardsley-Rush, Toshack-Keegan podem dar a sua bênção a uma parceria que tem feito estragos por onde quer que passa. Mas os homens do golo são apenas o culminar da ideia de Rodgers, um manager que sabe investir e trabalhar os seus jogadores. A ponto de forjar um quarteto defensivo replecto de jogadores de low profile num dos mais eficazes da prova. De dar a Gerrard um novo sopro de ar na sua decadente carreira. E de encontrar espaço para ir rodando entre Coutinho, Henderson, Allen, Leiva, Sterling e Moses. Todos jogadores de classe média, salvo talvez o potencial tremendo do brasileiro, mas que aprenderam a jogar em conjunto de uma forma espantosa. O tempo que o técnico precisava em 2012/13 começou a dar os seus frutos. Com alguns tostões e investimentos a médio prazo, o Liverpool está progressivamente a voltar a sentir-se grande numa liga onde todos os seus rivais vivem muito por cima das suas possibilidades.
No meio deste furacão, Suarez é o íman emocional. Marca de todas as formas, assiste com uma frieza que lhe era desconhecida e até a sua natural apetência para as polémicas foi substituída com uma inesperada prova de devoção (bem remunerada) transformada na renovação mais esperada pela Kop desde que Gerrard rejeitou as investidas de Mourinho para juntar-se a Lampard na sua primeira etapa ao serviço do Chelsea. Com o uruguaio num estado de forma absolutamente demolidor, o Liverpool encontrou forma de somar mais de metade dos pontos dos que já tinha a esta altura em toda a época passada. A dois pontos do líder, o Arsenal, os próximos dois meses serão fundamentais para dar forma a um topo de tabela confuso onde a liderança dos gunners se encurtou abrindo a luta real a Chelsea e City e colocando o Pool e Everton como inesperados contenders.
Suarez é provavelmente uma das melhores noticias para o futebol europeu. O jovem que o Ajax descobriu e trabalhou desde a base a ponto de o transformar num dos mais letais avançados do Mundo é um dos protagonistas individuais do ano. Pertence a essa raça de génios, como Ibrahimovic, van Persie, Ribery, Robben, Iniesta ou Falcao que mereciam um reconhecimento suplementar mas que pagam o preço de coincidir no mesmo tempo e espaço que dois extra-terrestres do futebol. Ainda assim, o uruguaio poderá sentir-se recompensado. Esta pode, muito bem, ser a sua temporada de sonho!