Depois de todos terem já assumido que o Mundial 2022 foi comprado pelos potentados do Golfo, a pandilha de Joseph Blatter, Michel Platini e companhia querem agora dar a volta ao prometido e transformar o primeiro mundial no Médio Oriente num torneio disputado no Inverno, rompendo com 90 anos de história. Uma decisão desastrosa que, a cumprir-se, é a estocada definitiva a tudo aquilo que o futebol representa às mãos da mesma elite corporativo que minou a sociedade ocidental noutros sectores, sempre por um preço.
Eu sei que os meus amigos sul-americanos sempre se queixam - e com a sua dose de razão - que para eles o Mundial é um evento invernal.
Interrompe o seu calendário desportivo, despoja as suas equipas de jogadores enquanto os torneios prosseguem o seu ritmo. Para eles, ao contrário do espectador europeu, asiático e norte-americano, o Mundial não é sinónimo de sol, bom tempo, praia, dias largos e perfume de Verão. Da mesma forma que o nosso Carnaval é frio e chuvoso, os seus Mundiais são o prelúdio do duro Inverno. Será assim em 2014 para todos, um torneio no Inverno do hemisfério sul.
No entanto, a tradição ainda é (ou devia ser) o que era e os Campeonatos do Mundo são torneios do mês de Junho, do final da época europeia, do Verão do hemisfério norte, onde tudo se começou a idealizar e a cozer. Foi assim durante noventa largos anos e com a presença massiva dos internacionais dos restantes continentes nas ligas europeias, mais sentido faz ainda. Aliás, são os sul-americanos que começam a debater a possibilidade de se unirem ao calendário europeu e não o oposto. Agora o que a FIFA - e a sua tropa, que inclui a UEFA de Platini, delfim de Blatter desde os anos 90 - nos quer vender é a obrigatoriedade de disputar um Mundial no Inverno no hemisfério norte. Ao contrário da proposta que ganhou (comprou?) a votação, a de um torneio realizado em Junho de 2022 nesse grande país que é o Qatar.
Uma jogada corporativa para estilhaçar ainda mais a natureza do beautiful game.
A equação é fácil.
O Mundial é vendido ao melhor postor sob um pressuposto inviável. Já o era na altura da votação e os que deram o seu voto favorável - como Platini - pareceram não ter problemas. De repente lembram-se que a temperatura em Junho no Médio Oriente é imprópria para passear o cão, já para não falar em desportos de alta competição. Falam-se em estádios que se auto-refrigeram, campos fechados, etc, mostrando uma vez mais o total desrespeito que o adepto que se desloca é habitualmente tratado por estas organizações que têm como máxima "For the good of the game".
Até que alguém sugere, e porque não no Inverno? E todos começam a dizer que sim, que é melhor, que faz sentido, que não há problema nenhum, é só ajustar esta data aqui, esta ali, e zás. O dinheiro mantém-se nos seus bolsos, o calor desaparece e todos contentes. Todos?
A FIFA - que já tem preparado um calendário catastrófico para o Mundial 2014, com deslocações gigantescas por todo o Brasil que vão destroçar as ambições dos mais apaixonados dos adeptos - diz que só precisa de cinco semanas para reajustar os calendários europeus. Mente. Como sempre.
O Mundial é um torneio que dura, exactamente, um mês (quatro semanas).
As selecções concentram-se quinze dias antes da prova (duas semanas) para prepararem-se para a competição, adaptar-se às condições climatéricas, etc. Quando o torneio acaba, devido ao seu grau de exigência, os jogadores necessitam de descanso, como mínimo uma semana e meia, antes de se voltarem a incorporar. Os vencedores também têm direito a celebrar, a que há que juntar a esse prazo mais meia semana, como mínimo. No total estamos a falar de oito semanas. Dois meses. Dois meses em que o Mundo para para a FIFA cobrar o seu envelope dourado. Quando isso sucede, em Junho, a época acabou. Os jogadores saem do torneio para férias, os não-convocados já estão a desfrutar do seu período de descanso e tudo faz sentido. Agora imagem que no dia 30 de Outubro a época, que começou dois meses antes, para. E que só recomeça a 1 de Janeiro. Durante esses dois meses disputam-se habitualmente 4 rondas europeias, 10 jornadas das principais ligas, eliminatórias de taças, o Mundial de Clubes. E tudo isso seria adiado por causa de um favor?
A maioria dos presentes no Mundial celebra o Natal. Estarão dispostos a passar esse período encerrados num hotel num país muçulmano? E os adeptos, poderiam viajar nesse período do ano durante quinze dias para um país que é tudo menos amigo dos estrangeiros que não cheguem em jets privados ou carros desportivos? A temporada acabaria com uma final da Champions League a meados de Julho? O desgaste físico dos jogadores de elite - que podia provocar uma lesão grave, capaz de destruir uma carreira - permitir-lhes-á estarem presentes nos momentos decisivos da temporada?
Ao adepto estão a destruir-lhe o jogo. Pequenos mas importantes detalhes como este apenas o confirma. O Mundial no Inverno significa mais do que um ano perdido para o futebol no continente europeu (e que afecta os restantes continentes pela massiva presença de jogadores africanos, americanos e asiáticos nas ligas europeias). Condicionará as épocas anteriores e posteriores, a carreira dos jogadores, as ilusões dos adeptos. Tudo por um punhado de dólares. A tradição ainda vale muito. O que cada vez vale menos é a moral de quem organiza o jogo.