A chegada dos milhões qataris ao Paris Saint-Germain revolucionou o futebol francês. Este ano o campeão parisino vai ter concorrência de peso. Os milhões chegam da Rússia. No fundo o eixo que move o mercado de futebol dos últimos anos. Não é novidade. O futebol em França sempre foi um negócio de industriais, empresários e ambiciosos homens de negócios. A única diferença é que estes senhores vêm de fora e não são forjados na estirpe gaulesa dos Tapie, Bez, Lagardére e companhia.
Quando o PSG nasceu, todos tinham claro que era apenas uma manobra de marketing.
Paris não tinha um clube de futebol importante. O Racing FC e o FC Paris estavam nas divisões secundárias e não havia forma de os tirar de lá. O jogo era um fenómeno regional, sempre o tinha sido. Mas agora Paris, consciente da afirmação internacional definitiva da invenção inglesa, queria ter a sua parte de protagonismo. Assim nasceu, em 1973, o PSG e depois de quinze anos de resultados irregulares, apareceu o gigante Canal+ para salvar o emblema de um destino similar ao do seu vizinho. O Racing tinha-se tornado em Racing Matra porque os milhões de Lagardére assim o quiseram. Durou pouco a aventura, mas deixou um aviso. Um aviso bem real, ainda hoje.
A salvação do PSG pelo Canal+ significou, sobretudo, que o clube tinha dinheiro, muito dinheiro para investir. E fê-lo bem, montando uma equipa de excelência que não só venceu um título nacional, um título europeu (a Taça das Taças) como esteve na base da equipa que acabou com a estadia de Cruyff em Barcelona. Aquele PSG, de Weah, Raí, Leonardo, Djorkaeff e companhia, era uma formação destinada a maiores glórias. Mas como o Canal+ se fartou do brinquedo, o dinheiro deixou de chegar e os jogadores foram saindo. Poucos meses depois nada restava dessas noites de glória no Parc des Princes e o maior emblema parisino entrou numa década de silêncio e sofrimento. Algo parecido ao que lhe acontecerá no dia em que os sheiks qatarís mudem de objectivo. Esse é o destino financeiro dos clubes da Ligue 1.
Foi assim com o escândalo de Bez no Bordeaux e de Tapie no Marseille. Foi assim com o fim do investimento dos industriais locais no Stade Reims (na década de 60), no Sochaux (da marca Peugeot, nos anos 70) e no Saint-Etienne (na década de oitenta). O próprio AS Monaco, sustentado durante anos e anos pelos milhões do Principado, sofreu na pele a ausência de uma política desportiva e económica coerente e de finalista da Champions League (apenas o quarto clube francês em lográ-lo) passou a clube de segunda divisão.
Em França o jogo sempre foi olhado com suspeita.
Não tem o glamour do ténis, do ciclismo e dos desportos motorizados. É uma invenção inglesa, mas menos interessante que o rugby para alguns. Só a partir da II Guerra Mundial se confirmou a popularidade do jogo no hexágono e, mesmo assim, em espaços geográficos muito concretos. No Midi, pela forte ligação aos portos italianos e espanhóis. Na Gasconha e Bretanha, pelo mesmo motivo, com os ingleses. E no norte, zonas vizinhas a Bélgica e Alemanha. Tudo o resto era um imenso oásis. Só quando um homem rico aparecia, no coração de França, se podiam desenvolver projectos ambiciosos mas de curta duração. Foi assim em Saint-Etienne, Sochaux e, mais recentemente, em Lyon. Onde todos sabem que, quando Jean-Michel Aulas abandonar o cargo, o destino será cinzento. Como a história tem sabido demonstrar.
Talvez por isso o jogo se tenha, desde cedo, tornado num brinquedo de ricos e ambiciosos. Os adeptos não sofrem emocionalmente tanto com estes vais e vens como noutros países, a sensação de pertença cultural é distinta. As imposições severas do governo gaulês impedem a Ligue 1 de atingir niveis de rendimento que compitam com a Europa. É um torneio fechado, rotativo, desenhado para consumo próprio. Só muito de vez em quando, ao reunirem-se condições extraordinárias, algum clube francês demonstra o seu potencial contra rivais europeus com orçamentos muito superiores, planteis com mais opções, mais bem pagas e consagradas.
A chegada dos emigrantes do império reforçou a multiculturalidade do jogo, abriu as portas à renovação de uma política de formação que tem sido a base do sucesso financeiro desse projecto. Mas também parte do seu calcanhar de Aquiles. Em Rennes, Lille ou Toulouse há poucas condições para ombrear com as fortunas do país, especialmente quando os seus melhores jogadores partem e como substitutos chegam jovens adolescentes. Clubes históricos como o Nantes, Lens, Metz ou Auxerre já sofreram na pele as subidas e descidas de divisão pelo mesmo motivo. Sem dinheiro não há sustentabilidade, por muita história que um emblema carregue. Por isso quando chega um sheik qatarí ou um russo milionários, os adeptos recebem-nos de braços abertos. Estão dispostos a vender a moralidade do jogo pela subsistência, essencialmente porque sabem que se não forem eles os clubes beneficiados por esses milhões, serão os seus mais directos rivais. O dinheiro que chegou a Paris pode acabar de um momento para o outro mas, de momento, os adeptos desfrutam de uma nova era de prosperidade, a fazer lembrar meados dos anos noventa. O mesmo sucede agora com os monegascos. A presença de Moutinho, Abidal, Falcao, James Rodriguez e Ricardo Carvalho traz prestigio ao clube e uma base de sucesso que pode ou não aguentar os humores do dono do clube. São projectos de tão curta duração - no tempo e espaço - que não é difícil imaginar que daqui a três anos dificilmente os mesmos jogadores (e Cavani, e Pastore, e Lucas Moura, e Zlatan Ibrahimovic, e Marco Verrati) continuem nos seus clubes actuais.
A França do futebol é uma dimensão própria dentro do concerto europeu. Há preocupações dentro das estruturas governamentais e federativas e um desinteresse quase generalizado nos adeptos. No campeonato mais equilibrado da história do futebol europeu - salvo pela longa hegemonia recente de um Lyon, numa época sem investidores nos clubes rivais para lhe fazer sombra - as empresas e os milionários duram pouco na sua relação com os emblemas, o tempo de coleccionar um ou dois títulos antes de se fartarem. Em Paris e no Principado vão querer aproveitar essa corrida a contra-relógio. Em Marselha, Bordeaux, Rennes, Lille e Lyon esperam que os milionários se fartem para voltar a sentirem-se importantes. E no meio de tudo isto, só mesmo em França um clube pequeno como o Montpelier pode sonhar em repetir o logro de ser campeão contra as armas financeiras de uns e o poder da estrutura desportiva de outros. Num campeonato de novos-ricos essa é a maior atracção possível.