O futuro do futebol português passa por modelos de gestão exemplares, capazes de entender as suas limitações e de planear o futuro dia a dia sabendo que esse modelo poderá ser a diferença entre a falência e o sucesso desportivo. Enquanto os grandes clubes portugueses, cada qual à sua forma, procuram sobreviver a passivos asfixiantes, em Paços de Ferreira e Belém, dois projectos desportivos ensinam os restantes dirigentes portugueses a olhar para o futuro com a consciência de que nem tudo é negro.
A quatro jogos do final da época, o Paços de Ferreira tem assegurado um posto europeu. Um posto que pode valer muitos milhões de euros se a vantagem pontual com o Sporting de Braga se mantiver até ao último suspiro do campeonato. Na segunda divisão, um dos clubes históricos do futebol português, assegurou a promoção depois de vários anos afastado da elite com oito jogos por disputar. Uma das maiores margens da história para validar um projecto desportivo desenhado para vencer e consagrado com um mais do que honroso posto nas meias-finais da Taça de Portugal para o clube do Restelo.
São dois clubes que encontraram num modelo de gestão racional e com os pés na terra a base do seu sucesso. Passe o que passar, a aposta parece ser o futuro que os restantes clubes em Portugal terão de seguir. Enquanto FC Porto e SL Benfica, com passivos gigantescos, compram o sucesso e dividem entre si a disputa pelo título nacional sem jogos perdidos, aos restantes emblemas pouco sobra senão sobreviver da melhor forma. O Sporting vive uma profunda reestruturação - emocional e financeira - enquanto o Braga consolida-se como um projecto ambicioso mas que não consegue dar o salto que falta para fazer-se definitivamente grande. Todos os outros começam o ano com medo ao inferno da despromoção e, quase sempre, acabam-no sentindo que vivem num universo circular onde tudo é igual. De vez em quando algum qualifica-se para as provas europeias, de vez em quando algum faz um brilharete. E pouco ou nada mais.
O que parece evidente é que a esmagadora maioria desses clubes avança temporada atrás de temporada sem um modelo desportivo de futuro. Procuraram, apenas, sobreviver. Muitos através de empréstimos e da amizade selectiva de algum dos "grandes". Outros confiando no sucesso do trabalho de prospecção de jogadores desconhecidos ou da sua boa relação com agentes para forjar uma equipa que, entre Janeiro e Junho, se desmantela por si só. A maioria passa a temporada com problemas, salários por pagar, bancadas vazias, treinadores que vão e vêm ao mínimo sinal de desespero. O destino parece repetir-se até que algum dia uma época má pode fazer pagar o preço dessa gestão sem futuro. Na Mata Real e no Restelo, gesta-se essa ideia para o depois de amanhã.
O Paços de Ferreira não é só o clube sensação desta temporada. É um clube que surpreende quem o procura conhecer melhor.
Dentro da área metropolitana do Grande Porto - até à bem pouco tempo a mais representada do futebol nacional - os "castores" sempre foram vistos como um bicho raro. A Capital do Móvel fica a meia hora da Invicta, sente-se mais cómoda com o circulo industrial do vale do Ave - o mesmo que nos anos 80 e 90 teve um papel tão importante no futebol português - e convive numa área demográfica dinâmica mas sem grandes referências futebolísticas que não a sombra do FC Porto.
E mesmo assim, sem uma grande legião de adeptos, sem um grande apoio local, o Paços mantém-se vivo entre a elite do futebol português de uma forma superlativa. Começou por fazer-se notar como um clube com bom olho para jovens e ambiciosos treinadores, amantes do futebol de ataque e da aposta em jogadores desconhecidos. Progressivamente, o clube começou a incorporar antigos elementos da equipa no seu gabinete técnico. Nenhum funcionou tão bem como Carlos Carneiro, um dos seus mais emblemáticos dianteiros. Com ele ao leme, desenhou-se o futuro do clube, descobrindo no futebol das divisões secundárias e entre os descartes inesperados do FC Porto, jogadores com potencial suficiente para forjar um bom colectivo. Sob as mãos de Paulo Fonseca, esse colectivo superou-se a si mesmo. E agora está perto de entrar no play-off da Champions League. Mesmo que não o consiga - tem três jogos para gerir a sua vantagem face ao Braga - a presença nas provas europeias já é um logro a que clubes com um orçamento muito superior como o Marítimo, Nacional ou Sporting ainda não podem dar como garantida. Inevitavelmente o Paços sabe que muitos dos seus jogadores e eventualmente, o seu técnico, não estão no próximo ano. Conscientes dessa realidade, já estão a preparar o depois de amanhã. Sabem que não se podem deixar enganar pelo perfume do sucesso. Os adeptos não vão aumentar - demograficamente a zona vive um ciclo estável e a situação financeira do país não permite sonhar com um boom de novos sócios e seguidores - as condições que existem actualmente adequam-se à sua realidade e qualquer dinheiro que entre nos cofres do clube deve ser para o manter longe do fantasma da falência. Pagar os salários a tempo e horas, cumprir com os seus compromissos, poder eencontrar os próximos titulares da equipa são a base de trabalho de um projecto que quer continuar a crescer com os pés na terra. Demonstrando assim aos seus rivais em campo como se pode jogar sem perverter as regras, como o acumular de dívidas eternamente perdoadas pelo fisco, mantendo os salários em dia (Olhanense, Gil Vicente), sobrevivendo sem dinheiros públicos (Nacional, Marítimo) ou sem o apoio directo de um empresário (Rio Ave).
O caso do Belenenses é diferente na forma mas não na essência.
O clube do Restelo é um dos cinco grandes oficiais do futebol em Portugal, uma equipa campeã nacional num país onde só duas edições escaparam ao apetite dos três grandes. Mas desde os anos 60 que essa grandeza se tornou uma memória perdida no tempo que só algumas temporadas pontuais - finais dos anos 80, meados da década de 90 - puderam resgatar fotos antigas. Claro que sobreviver como terceiro clube de uma cidade com duas entidades de projecção nacional é praticamente impossível como Boavista e Salgueiros entenderam, também, no Porto com a sombra quase ditatorial do FC Porto.
A péssima gestão financeira do Belenenses levou o clube a roçar várias vezes a despromoção. Por duas vezes o clube salvou-se administrativamente de descer, mas à terceira foi de vez. E durou o calvário. Sem dinheiro, sem ideias, sem ambição, parecia que o "Belém" estava destinado a seguir os exemplos de outros históricos do futebol em Portugal, perdidos nas divisões secundárias para nunca mais voltar. Até que aterrou no Restelo uma nova directiva, coordenada por Rui Pedro Soares e presidida por António Soares, com uma visão de futuro consciente das limitações do presente. O histórico clube lisboeta começou a apostar convictamente na sua formação mas também em jogadores descartados por diversos motivos por clubes da primeira divisão. Vitimas da "brasileirização" excessiva da elite do futebol nacional, esses jogadores encontraram no Restelo um novo lar e sob a liderança do antigo central do Marítimo, o holandês Mitchell van der Gaag, transformaram-se no esqueleto moral de um clube onde a ambição de voltar a ser alguém no panorama nacional conduzia o processo. Essa "aportuguesação" da equipa revelou-se uma ideia de sucesso. Os jogadores são mais baratos, estão mais implicados com o projecto e mantêm a sua projecção futura, mantendo-se debaixo do radar dos clubes grandes. A qualidade de alguns desses futebolistas - e são dezanove num plantel de vinte e cinco futebolistas - como Fredy, Filipe Ferreira, André Teixeira, Tiago Silva ou Rafael Veloso permite pensar que o projecto tem a solidez necessária para subsistir entre os clubes da primeira divisão. Com uma base sólida de adeptos, infra-estruturas de bom nível e um plantel jovem e ambicioso, parece evidente que o Belenenses tem todas as condições para optar por um lugar na primeira metade da tabela no próxima ano.
Com o Vitória de Guimarães - forçado também pelas circunstâncias a adoptar uma postura similiar - e com o Estoril, outro clube redesenhado à base do pensamento de gestão empresarial que há alguns anos faz escola noutras ligas europeias - o Belenenses é uma das principais bandeiras dos que acreditam que o futebol português pode encontrar a luz ao fundo do túnel. O sucesso do Paços de Ferreira, tudo menos obra do acaso, junta a cultura de clube modesto mas empreendedor a emblemas habituados a mover-se entre eixos demográficos e perfis de gestão com mais glamour. Por um lado ou por outro, são estes os projectos que potenciam actualmente o rejuvenescimento do futebol português, a sua vertente mais nacional e a resposta a uma política de endividamento e descontrolo que ainda tem em emblemas como o Vitória de Setúbal, outro histórico, um dos seus mais tristes representantes.