Gareth Bale é o melhor jogador que actua fora do circuito de grandes (ou milionárias) equipas. Sê-lo-á, seguramente, por pouco mais do que cinco meses. O seu talento e a forma como se transformou num todo-terreno dos relvados ajuda também a explicar a excelente temporada realizada pelo Tottenham. Em White Hart Lane André Villas-Boas começou a deixar o seu selo mas é habitualmente o génio individual do galês quem resolve os problemas do sistema do técnico portuense.
Caminham no terceiro lugar da Premier League (o último que garante acesso directo à Champions League) e vão agora disputar com o Inter de Milão um lugar nos Quartos de Final da Europe League.
Para um clube que, na elite milionária do futebol britânico é gerido com cabeça e sem cometer loucuras, é sem dúvida um feito. Não é uma novidade, Harry Redknapp já o tinha logrado há três temporadas, exibindo um futebol agressivo, vertical e extremamente ofensivo, onde havia pouco espaço para a pausa. Villas-Boas procura exactamente o oposto, reduzir as velocidades do jogo dos ingleses, transformá-los numa equipa mais continental, capaz de dominar o campo, manter a bola e ser eficazes na área contrária. Não tem sido um processo fácil. Para um treinador a quem o talento criativo é tão importante como contar com jogadores capazes de decifrar os espaços, arrancar a temporada e perder Rafael van der Vaart e Luca Modric é um problema. Especialmente se os seus substitutos, Dembelé e Dempsey, são jogadores de um perfil muito diferente. O antigo jogador do Fulham aporta à equipa londrina o que Villas-Boas exigia a Moutinho na sua etapa no Porto. Contenção, trabalho táctico e precisão na distribuição. No último terço do campo, a eficácia de Dembelé é notável, mais de 90% de acerto nos passes realizados na Premier. Mas é um jogador de trabalho sobretudo, não de criação, de explosão no momento ideal. Dempsey também é um atleta trabalhador mas nem tem o espírito de sacrifício de Dembelé nem a capacidade de marcar diferenças em espaços curtos e acaba por perder-se demasiado no modelo aplicado por Villas-Boas. O 4-3-3 que o técnico defendeu no Porto transformou-se num 4-2-3-1 e apesar da linha defensiva estar começar cada vez mais a assimilar a sua mensagem de linha alta, pressão constante e apoio ao meio-campo, é no ataque que o Tottenham se torna numa equipa diferente.
Villas-Boas arrancou o ano com jogadores desequilibrantes nas alas.
Kyle Walker é um lateral veloz, protótipo do defesa que encanta o futebol inglês, mas com um deficiente posicionamento defensivo. Foi responsável de vários golos sofridos pelos Spurs e cada vez que sobe para dobrar o extremo direito, obrigado o meio campo a tapar o seu espaço. Quando Walker não recua, ou o faz lentamente, provoca os desequilíbrios no miolo que tanto desesperam ao português. Do lado esquerdo Assante-Ekkoto e Kyle Naughton seriam o espelho do lateral direito mas com a dupla Dawson-Gallas a encontrar-se com a concorrência de Caulker, muitas vezes é o belga Verthongen quem parte do lado esquerdo, garante uma maior fiabilidade defensiva, reforçada pela incorporação definitiva de Hugo Lloris ao onze. No ataque, Lennon tem confirmado ser um extremo hábil e veloz mas tacticamente pouco consciente do seu papel, sobretudo com as subidas pelo seu corredor de Walker. Permite aos Spurs abrir o campo pela direita mas é pouco incisivo nas diagonais, ao contrário do que Villas-Boas conseguiu com Varela e James Rodriguez, na sua etapa no Dragão. É no lado oposto que está a chave do sucesso do clube: Gareth Bale.
Bale começou com extremo no Southampton e foi progressivamente readaptado a lateral por Redknapp. Foi a partir de trás que destroçou o campeão europeu, Inter, em dois jogos históricos da fase de grupos da Champions League em 2010 e tornou-se num símbolo da nova geração do futebol britânico, com apenas 20 anos. A pouco e pouco foi regressando à sua posição original, mas a sua (omni)presença é cada vez mais evidente. Está em todo o lado. Pela direita, usando do seu pé esquerdo para ganhar espaço na diagonal. Na esquerda, abrindo o campo e arrastando a marcação, cada vez mais implacável, deixando espaços para o meio-campo ocupar. Mas sobretudo pelo centro. Bale reconverteu-se na ponta-de-lança do modelo de Villas-Boas. O técnico português, que não encontra nem em Defoe (actualmente lesionado), nem em Adebayor (recém-chegado da CAN) um avançado matador, colocou Bale virado para a baliza, forçando o islandês Sigurdson a actuar do lado esquerdo. No meio Bale controla o jogo, abre os espaços, remate quando pode e atrai a marcação para si, soltando os seus colegas de ataque. A chegada de Holtby, o genial médio alemão - mais um produto da formação germânica da última década - para render Dempsey e as entradas pontuais no onze de Sandro, Huddlestone e do lesionado Parker, garantem ao meio-campo pulmão para segurar as linhas da equipa e dão a Bale a liberdade com a qual se sente tão cómodo. Dizer hoje em dia que o galês é um extremo é faltar à verdade, Bale, como Messi e Ronaldo, transformou-se num jogador total e é a chave do esquema de sucesso do Tottenham.
Villas-Boas seguramente pensava em aplicar o seu 4-3-3 com o galês emulando a Hulk, Lennon no papel de Varela e Defoe como avançado centro, mas as lesões, suspensões e circunstâncias múltiplas, obrigaram-no a reconsiderar. Foi dando esse passo atrás que o portuense ganhou uma equipa, coesa, sem estrelas individuais, mas capaz de entender que o futebol não é só vertigem. Mesmo assim, futebolisticamente, o Tottenham continua muito mais a parecer-se a uma equipa britânica, ao estilo de Redknapp, do que aquilo que Villas-Boas gostaria de implementar, com um jogo mais rendilhado com Holtby, Dembele e Parker no meio e o uso das alas como elemento diferencial. Na ausência de ponta-de-lança, não surpreende ninguém que Bale comece cada vez mais a aparecer aí. Há muito que o fabuloso jovem de 23 ultrapassou os espartilhos tácticos, demonstrando-se sentir-se cómodo em qualquer posição da linha de ataque. É às suas costas que o Tottenham caminha e Villas-Boas, seguramente consciente de que o perderá em Junho, já pensa num novo modelo, mais ao seu gosto, onde Holtby será, seguramente o actor principal.