Da última vez que vi, o futebol continuava a ser um jogo decidido por quem marca mais golos. Como qualquer outro desporto, o golo resume a essência do jogo. No entanto, nos últimos anos, graças ao sucesso espantoso do projecto de Pep Guardiola, surgiu uma legião de puristas que tentou transformar as regras do jogo a seu belo prazer. O golo, esse momento estranho, quase pecaminoso, passou a um segundo plano. O importante era a possessão, os largos minutos de posse de bola, aquilo que verdadeiramente definia, qual Star Wars, os brancos e os negros, os bons e os maus. Em Milão, como já sucedeu no passado, o golo voltou a por as coisas no seu lugar. Aquele onde o futebol realmente gosta de estar.
É possível uma equipa ser dona e senhora da possessão e, ao mesmo tempo, ser absolutamente inconsequente?
Ser inofensiva, tímida, sem coragem de enfrentar o jogo de frente, de procurar transformar a sua superioridade teórica, reconhecida por próprios e estranhos, em algo palpável? Seria fácil dizer que não, que nunca se chega a esse extremo, mas jogos como o que opôs o AC Milan ao Barcelona em San Siro diz-nos que há sempre espaço no futebol para o ridículo. Quando uma ideia se começa a levar demasiado a sério, cai no fundamentalismo absoluto e perde toda a sua relevância. Foi o que passou ao Barça.
Guardiola, provavelmente o treinador mais importante do futebol europeu da última década, partiu sempre do conceito da possessão para algo mais profundo, mais palpável. O seu primeiro esboço, o forjar do Pep Team que venceu num ano natural seis títulos, era uma equipa que queria a bola para atacar, para marcar. Superou o registo goleador, desmontou os rivais com tremenda facilidade e ganhou, por mérito próprio, o direito a ser considerada como uma equipa superlativa, um fiel sucessor do Milan de Sacchi ou do Ajax de Kovacs e Michels. Nos três anos seguintes, quase sempre com os mesmos protagonistas, a equipa continuou a aplicar os ensinamentos do técnico mas foi, progressivamente, levando demasiado a sério o santo e senha da possessão. Foi perdendo eficácia, finura, exactidão. Caiu por duas vezes em meias-finais da Champions League por ser incapaz, a todos os níveis, de gerar um plano alternativo, um esquema que desse a tanta posse um sentido claro, o do golo. Ao contrário de Cruyff, um técnico que partia para cada jogo com três planos, o Barcelona de Guardiola foi tornando-se plano e previsível para os seus rivais. Não deixava de ser, tecnicamente, a melhor equipa com diferença, aquela que melhor sabia manejar a bola e os tempos. Mas para rivais mais aguerridos, eficazes, capazes de abdicar de ter a bola para controlar o espaço, os seus pontos frágeis tornavam-se evidentes. Por isso perdeu uma Copa del Rey, uma liga e duas Champions League que, à partida, pareciam suas por direito divino. Por isso perdeu ontem em Milão. Por não saber jogar a outra coisa.
Ouvindo os profetas da seita da possessão, génios da bola como Xavi Hernandez, jornalistas conhecidos e bloggers desejosos de ter um pouco de atenção e afecto, parece que o futebol é um jogo que foi disputado erradamente por todos nos últimos 100 anos. E que, do nada, a luz desceu à terra e iluminou um conjunto de apóstolos, transmissores da verdade absoluta, destinados a evangelizar o mundo.
No final dos jogos começou a debater-se mais a equipa que mais possessão tinha do que aquela que realmente tinha sido mais perigosa. Aquela que tinha procurado fazer das suas armas algo concreto. Porque a posse é uma arma ou, pelo menos, foi assim concebida desde os dias de Hogan, Meisl ou Sebes. Uma arma de ataque. A forma de ter a bola impedia o rival de a ter e, portanto, tornava a equipa mais ofensiva por natureza. Mas com a bola nos pés era preciso depois partir para o ataque. As equipas que defenderam a posse sempre foram incisivas. Se por um lado génios como Chapman se preocupavam mais com os espaços do que com a bola - e a corrente do cattenaccio de Rocco e Herrera levou a ideia ao extremo - na Holanda a posse voltou a ser o santo e senha, mas como disse um dia o brilhante Muhren, um dos integrantes do Ajax de Michels e Kovacs, a posse só servia se a equipa fosse vertical. Tanto passo horizontal, dizia, irritava-o profundamente porque tirava sentido ao jogo. E assim era.
Na final do Mundial de 1974, em Munique, a Holanda perdeu porque, depois de marcar o golo inaugural, dedicou-se a praticar sucessivos rondos pelo campo, sem causar o mais mínimo perigo a Sepp Maier. Os alemães, uma equipa tecnicamente inteligente mas mais hábil ainda em velocidade, marcaram dois golos e depois asfixiaram a possessão estéril dos holandeses. Essa capacidade de acção e reacção faz de todas as equipas capazes de manobrar distintas realidades verdadeiros colectivos. Entendem que o futebol se adapta às circunstâncias e quando é necessário operar um inesperado roque, estão dispostos a fazê-lo para salvar o rei e ganhar o jogo. O Barcelona vive no mutismo intelectual de acreditar que a sua fórmula resulta por inércia, independente do rival. Tem a ideia e, sobretudo, as individualidades para isso. O génio de Messi, Iniesta, Xavi, Busquets, Puyol, Piqué, Alves, Alba, Fabregas, Pedro e Valdés resume uma geração irrepetível, verdadeiros maestros a entender a mensagem. Mas não é eterna e quando o génio individual, sobretudo do argentino, tem um mau dia, fica a nu a fragilidade do planeamento colectivo. Em San Siro o Barcelona não teve uma só ideia futebolística que não passava por trocas sucessivas de bola em zonas inofensivas, oferecidas à consciência por Allegri ciente que a equipa só é perigosa quando troca a bola comodamente na linha da grande área. Espaços fechados, imaginação zero, a derrota tornou-se inevitável. Em Barcelona a equipa da casa até pode vencer por 5-0, tem jogadores, adeptos e talento para isso. É a melhor equipa do mundo em individualidades e sentido colectivo. Mas também é um projecto que começa a deixar demasiado evidente as suas falhas estruturais. Golos sofridos com qualquer rival, imprecisão no passe, ausência de goleadores alternativos, avançados que continuam a penar no banco para não fazer sombra à estrela da companhia e uma possessão cada vez maior em zonas recuadas e menos asfixiante onde realmente importa, na cara do rival. Em Milão não houve desculpas, não houve remates, não houve rondos, não houve futebol.
É interessante ver a ultra dependência que toda a ideia de jogo do Barcelona tem dos golos de Messi. Uma equipa que faz da posse de bola uma obrigação divina mas que depois depende apenas de um indivíduo é um projecto condenado a fracassar no momento em que esse jogador individual falhe ou desapareça. O Ajax de Michels e Kovacs brilhou sobretudo porque, apesar do génio e liderança de Cruyff, todos defendiam, todos atacavam e todos marcavam. A verticalidade do jogo dos holandeses desconcertava os rivais mais do que as suas largas possessões. Em Barcelona, a necessidade de trocar a bola até à pequena área para La Pulga empurrar para mais um recorde é um filme que os rivais já conhecem. As equipas mais humildes da liga espanhola pouco podem fazer para o contrariar, mas na Europa são cada vez mais os clubes que entendem o modelo que o ausente Vilanova tem aplicado. Pode não ser bonito, especialmente quando as pessoas vivem bombardeadas com a ideia pregada até à exaustão que defende, imagine-se, que só existe uma forma de jogar bem ao futebol (contrariando 100 anos de história, apenas porque sim), e que tudo o demais devia ser castigado com o purgatório, inferno e um fim-de-semana numa favela de Monróvia. Mas sem ser esteticamente interessante, é o que melhor representa a essência do futebol. Eu tenho a bola quando quero ter, eu remato quando quero, eu marco quando remato: eu ganho. Mais de um século de grandes treinadores, equipas e jogadores não nos dizem que a posse é mais importante que o golo. E o presente só acaba por confirmar que, sem uma ideia mais ousada e uma flexibilidade emocional necessária, a posse de bola pode ser algo profundamente estéril.