Se o futebol fosse um jogo de perfeição absoluta, como defendia o inimitável Gianni Brera, todos os jogos acabariam empatados a zero. O esforço do ataque seria anulado pelo trabalho da defesa e a partida de xadrez seria eterna. Cruyff falou sempre da necessidade do erro para que o golo exista. E se a cultura futebolista actual parece estar determinada em retirar de uma vez por toda o mérito a quem marca, a verdade é que há erros colectivos e individuais que são impensáveis em jogos de alta tensão e máxima importância. No Santiago Bernabeu, o Real Madrid começou a perder por um erro tremendo não de um, mas de quatro jogadores diferentes. A anatomia do erro é também o espelho de uma equipa descoordenada.
Comecemos ao contrário.
Cristiano Ronaldo eleva-se quase três metros no ar. Levita, esperando que a bola, centrada de forma perfeita por Angel Di Maria cruze o ar até encontrar a sua cabeça. David De Gea pode estirar-se, Patrice Evra pode simular reagir, mas são meros espectadores, personagens secundários de uma execução perfeita, de um dos golos do ano, a prova de que Ronaldo é, para o bem e para o mal, um dos futebolistas mais completos da história do futebol, capaz de correr como Bolt, saltar como Jordan e rematar com a violência de um míssil.
Um golo que ninguém se atreve a discutir, mas que, inevitavelmente, é o reflexo de um par de erros importantes. O erro de Rafael, repetido vezes sem conta durante o jogo, que permite ao argentino Di Maria centrar com comodidade. O erro de Jones, que devia estar pendente de Cristiano Ronaldo e nem se vê na imagem. O erro de Evans, que abandonou a zona de acção e encontra-se em terra de ninguém permitindo que o melhor jogador do mundo no ar dispute uma bola com o mais baixo dos defesas da equipa inglesa, o lateral esquerdo Patrice Evra. Três erros que facilitaram o golo mas é difícil pensar que Di Maria não podia ter encontrado um milésimo de tempo e espaço para centrar e que Ronaldo não fosse capaz de bater Jones e Evans no ar para marcar. Sem erros não há golos no futebol, mas há erros mais graves que outros. O caso do golo inaugural do jogo, está no diâmetro oposto do marcado pelo Real Madrid.
Não que não seja um excelente golo, executado de forma perfeita, desde o momento em que Wayne Rooney lança um pontapé com conta, peso e medida desde a linha de fundo até ao gesto técnico de Danny Welbeck, medindo perfeitamente o tempo de salto, a área da cabeça com que remata e o seu posicionamento no relvado. Entre Rooney e Wellbeck desenha-se um lance que é muito difícil de prever e mais ainda de travar, um golo de bola parada de laboratório, pensado e executado brilhantemente. E no entanto, com todo o mérito que tem a equipa do Manchester United, o golo do dianteiro inglês podia ter sido evitado mais facilmente se não tivesse sido acompanhado de uma série de erros que uma equipa que aspira a tudo pode permitir.
Na época passada a defesa do Real Madrid realizou uma excelente época colectivamente.
Individualmente, tanto Sérgio Ramos como Pepe protagonizaram o seu melhor ano, combinando bem desde o momento em que o andaluz passou para o centro da defesa, substituindo Ricardo Carvalho, e com Iker Casillas foram peças chave no título histórico conquistado pela equipa da capital espanhola. Mas houve erros, durante a temporada, que custaram caro ao Real Madrid. Nos Quartos de Final da Copa del Rey, o golo de Abidal no Santiago Bernabeu, o erro de Coentrão e Casillas em Munique e os pontos perdidos de forma consecutiva em dois jogos com livres directos apontados no final dos jogos contra o Málaga e Villareal, onde o capitão merengue podia ter feito mais. Mas disputar 50 jogos num ano sem cometer erros é impossível e o resultado final da época compensou no final os percalços. Este ano é diferente.
Não se trata só do descontrolo absoluto do balneário, uma mancha negra no curriculo de um treinador que se fez famoso à custa, precisamente, de ser um disciplinador tremendo e um homem que trata os jogadores como família. Nem é apenas a péssima forma física e o estado psicológico de jogadores fundamentais como Benzema, Higuain, Di Maria, Ramos e Marcelo. É, sobretudo, um acumular de erros sucessivos que desta vez foram fatais. As bolas paradas, entre livres e cantos, têm sido mais do que nunca o calcanhar de Aquiles deste Real Madrid, e o jogo com o Man Utd deixou uma vez mais essa realidade em evidência. Mourinho tem razão quando diz que a responsabilidade não é sua.
Os lances são treinados durante a semana mas nos jogos os erros são sempre individuais. O problema é que são o acumular de vários erros individuais, quase de principiantes, e que custaram pontos em Getafe ou Sevilla, e uma vantagem fundamental para os Red Devils.
Aos 10 minutos de jogo Kagawa envolve-se num lance com Sérgio Ramos. O árbitro assinala canto apesar de nas imagens televisivas se apreciar, na repetição, que o último a tocar na bola é o japonês. Rooney pega na bola e prepara-se para marcar o canto enquanto os jogadores do Real Madrid posicionam-se. Xabi Alonso e Cristiano Ronaldo sem marcador, ao primeiro poste. Benzema um pouco adiantado com Robbie van Persie. Di Maria no poste esquerdo, os centrais Ramos e Varane com Wellbeck e Evans, Coentrão ao lado de Evra e Khedira e Ozil fora da grande área para ganhar a segunda bola.
A bola começa a percorrer a sua trajectória e os erros vão-se acumulando. Diego Lopez faz-se ao lance, previsivelmente para socar a bola, mas arrepende-se a meio caminho, perdendo a sua posição sobre a linha de jogo e ficando em terra de ninguém. Erro número 1. O central Ramos está mais pendente de afastar Welbeck do caminho do guarda-redes que se esquece de procurar ganhar posição e deixa Wellbeck só, à entrada da pequena área, livre para cabecear. Erro número 2. O argentino Di Maria, abandona surpreendentemente o poste para colocar-se atrás do guarda-redes, abandonando a sua posição e deixando a baliza a descoberto. Erro número três. Varane lê o erro de Ramos e decide lançar-se sobre Wellbeck para impedir o inevitável mas com isso deixa só Evans, com 1m92, que pode beneficiar de um desvio do colega ou de um defesa e marcar à vontade. Erro número 4.
A bola encontra Welbeck que, só, sem oposição, pode executar o seu excelente movimento técnico de cabeça. Lopez está fora da baliza e não consegue impedir a trajectória da bola mas confia que Di Maria, no poste, possa cortar sobre a linha. Mas Di Maria já não está lá e a bola entra, precisamente, onde este devia estar. Três erros fundamentais para permitir o golo ao contrário. Apenas bastava que um deles não tivesse ocorrido e teria sido muito difícil a Wellbeck marcar. Ou porque Ramos não o deixaria cabecear, ou porque Lopez, na linha de golo, podia parar perfeitamente a bola ou, em último caso, porque um jogador no poste esquerdo poderia sempre desviar o remate. Nada disso aconteceu e o golo do inglês pode ser suficiente para dar o apuramento ao Manchester United. E deixa a nú os problemas reais de uma equipa com muito orçamento mas com pouco futebol.
Erros como este têm sido o habitual na versão 2012-13 do Real Madrid, algo impensável para uma equipa de topo europeu. Contra os rivais mais humildes e os adversários com maior prestigio, erros de marcação, erros em entradas desnecessárias, erros de posicionamento, erros nos passes e erros nos remates. A história deste Real é uma história de erros próprios e são esses enganos, quase infantis, que têm permitido aos rivais colocarem-se, vezes sem conta, em vantagem. Cruyff dizia acertadamente que o futebol é um jogo onde quem ganha é quem menos erra. A este ritmo parece claro que, por muitos golos que marque Cristiano Ronaldo, por muitos passes perfeitos faça Ozil ou kms corram Khedira ou Alonso, com tantos erros é impossível que o campeão de Espanha não passe um ano em branco. Um branco muito negro!