Houve uma altura que a imprensa portuguesa tentava vender a ideia de que a selecção portuguesa era a equipa de todos. Dos adeptos de todos os clubes, de todos os movimentos políticos, sociais, de dissidentes e apoiantes do regime, de todos os que sentiam Portugal, por cima das suas convicções pessoais. Nunca funcionou muito bem essa fórmula mas agora vive-se o extremo oposto. De ser uma selecção de 10 milhões, Portugal passou a ser o clube de um só homem.
A convocatória de André Gomes por Paulo Bento é apenas mais um prego no caixão dos que acreditam ainda no conceito de meritocracia em Portugal.
Porque se há algo que move as decisões do seleccionador - o trabalho do "treinador" Paulo Bento, deixo para outro momento - é tudo menos o mérito pessoal que estava por detrás da ideia de combinados nacionais. Quando os conjuntos internacionais se começaram a medir, muitas vezes não representavam o melhor de um país. Os problemas de transportes, o amadorismo e os interesses políticos levavam a criar selecções quase plasmadas directamente de clubes ou cidades. Em Portugal e no resto do Mundo, o mal não foi só nosso. Mas com a evolução do jogo, rapidamente ficou claro que a grande vantagem do futebol de selecções face ao futebol de clubes era a possibilidade de ver numa só equipa os melhores, os mais bem preparados ou que mais méritos lograram durante um período desportivo a jogar em conjunto. Durante a década de 60 a melhor defesa de Portugal - a do Sporting - jogava com o melhor ataque - o do Benfica - sem grandes escândalos porque era realmente dificil encontrar individualidades nos restantes clubes capazes de se sobrepor ao génio individual e à harmonia colectiva desses dez jogadores de campo. O resultado foi um terceiro lugar no Mundial de 1966.
A partir dos anos 70 ficou claro que a selecção se tinha transformado em mais um palco de batalha entre os clubes. Da convocatória de oito jogadores do FC Porto para um amigável em Vigo, com manifestação em Campanhã e um "palhaço" metido ao barulho, para acabar no quadrunvirato do Euro 84, onde se rodavam jogadores para agradar a cada cor clubística, acabando em Saltillo, um feito que comprometeu o futuro daquela que talvez foi a mais bem preparada geração de jogadores até à época, o futebol da selecção nacional perdeu essa capacidade de convocação do espírito popular. O despontar da Geração de Ouro - transformada rapidamente numa geração de emigrantes - podia ter invertido essa tendência mas depois apareceu Scolari, o conceito de família, e a selecção nacional transformou-se no clube Portugal. Hoje é o clube Jorge M.
Durante os últimos anos é confrangedor ver o lote de convocados de Portugal para jogos amigáveis, jogos de qualificação e torneios internacionais. Nunca vão os melhores, nunca vão os jogadores em melhor forma, vão sempre os catorze que entram na cabeça do treinador da selecção e os outros oito que o seleccionador - um Dr. Jekyll/Mr Hyde com penteado especial - convoca para agradecer a quem o colocou no posto. A quem faz negócio com o futuro de uma selecção que, sem se saber muito bem como, tem-se mantido na elite futebolística. Naturalmente, não são esses seis ou oito jogadores que contribuem para esses resultados. Esses estão lá, sem jogar, sem comprometer, mas com o cachet pessoal a subir, as comissões de venda e renovação a disparar e os milhões a entrarem sempre nos mesmos bolsos.
A prática não é nova e num país tão corrupto como o Brasil levou à demissão de um selecionador. Na Argentina é normal cada seleccionador provar 60 jogadores por mandato, como se houvesse tanto talento nas pampas. O negócio do futebol instalou-se caprichosamente no mundo das selecções e Portugal pode ter poucos jogadores de elites, mas tem o melhor dos negociadores. André Gomes sabe-o bem.
Para o jogo de hoje, o médio do SL Benfica está convocado. Poderá fazer a sua estreia como internacional. Seguramente tem um grande futuro pela frente. Pelo menos enquanto tiver o agente certo. Nem precisa de ter de esforçar-se e jogar. O seu amigo Nélson Oliveira seguramente lhe explicará que ser suplente no último classificado de um campeonato nunca foi impedimento para ir picar o ponto à selecção. Desde que tenha o agente certo. O futebol da selecção portuguesa passou a ser uma questão do agente certo. Nem mais, nem menos.
Na convocatória para um amigável de Paulo Bento - que diz que não existe muita qualidade no futebol português e que por isso convoca sempre os mesmos jogadores...onde a qualidade não é propriamente algo abundante - estão jogadores como os citados André Gomes (oito jogos na época), Nélson Oliveira (suplente raramente utilizado do Depor), Miguel Lopes (recém-aterrado em Alvalade, depois de pouco ter jogado pelo FC Porto), Sereno (o elo fraco da defesa do Valladolid), os poucos utilizados Beto e Eduardo e Bruno Alves e Danny (em plena paragem de campeonato russo). Curiosamente, todos jogadores com laços com uma só empresa de representação, a mesma que - no momento da inoportuna lesão de Micael - ajudou o seleccionador a convencer que era melhor alternativa do que jogadores que têm muitos mais minutos nas pernas como Hugo Viana ou Manuel Fernandes.
A mensagem é clara. Não importa o que vales ou quanto jogas, apenas quem te representa. Ninguém exclui a possibilidade de nas próximas convocatórias jogadores como Tozé, Fábio Martins, João Carlos, Bruma, Diogo Rosado, André Almeida ou Luisinho sejam chamados à selecção se assinarem os contratos certos a tempo. Que mais importa que o rival seja Israel, que está imediatamente à frente de Portugal na corrida ao play-off do Mundial de 2014? Se afinal, convocam-se 22 e jogam catorze, o importante é fazer amigos.
E claro, os jogadores do Paços de Ferreira, Estoril Praia, Vitória de Guimarães e apátridas que renegaram da grandeza do maior empresário da história do futebol, podem esquecer as quinas ao peito. Por muitos golos que marquem, assistências que dêem, kilómetros que corram, a selecção é cada vez mais um clube fechado, com quota de membro paga por uma mesma agência. A mesma que ajudou a comprar a nova casa do André Gomes, a mesma que mantém o discurso agradecido da imprensa subserviente sobre o génio ofensivo de Nélson Oliveira (quando quem joga são Pizzi e Bruno Gama) e a mesma que ajudou a transformar a selecção de todos no clube de um só.