Quando Johan Cruyff despediu Zubizarreta no aeroporto de Atenas, depois da humilhante derrota contra o AC Milan de Capello, seguramente não imaginava que teria de passar uma década até que o Barcelona encontrasse um guarda-redes capaz de interpretar perfeitamente a sua filosofia de jogo. Os adeptos blaugrana esperam agora não ter de esperar uma década mais até que Victor Valdés tenha sucessor. Porque o seu papel no modelo Barça é fundamental.
Quando Valdés erra, com os pés, a maioria dos adeptos e analistas activa de imediato o modo crítico.
Esquecem-se, talvez, que o catalão é um dos poucos guarda-redes do Mundo que utiliza os pés mais do que as mãos. É isso que se lhe exige, foi para isso que foi treinado desde pequeno. Valdés é o sucessor mediático de Grosics, o polémico e incendiário guarda-redes húngaro da Aranyascap orientada por Gustav Sebes. Quando os ensinamentos da escola danubiana viajaram, primeiro para Amesterdão e depois para Barcelona, a ideia de um guarda-redes capaz de jogar com o resto da equipa vinha na mala. E ficou.
Ao contrário dos guarda-redes sul-americanos, que com os pés desafiam a sua natureza e sonham com algo mais que só o sonho potrero pode aspirar, Valdés utiliza os pés com critério. O mesmo critério que todos os outros colegas de equipa e, tantas vezes, superior ao de muitos rivais. Numa equipa de tracção à frente, que concede poucas ocasiões, o trabalho do guarda-redes é fundamental. Valdés foi herói em Paris, quando Henry teve a Champions League no bolso. Foi também fundamental em aguentar o assédio do Manchester United em Roma, até que a combinação Iniesta, Xavi e Messi começou a funcionar. E durante estes últimos dez anos foi o único guarda-redes que soube compreender a natureza da baliza do Camp Nou. Entre o basco Zubizarreta e ele passaram uma infinidade de guarda-redes, todos de características muito distintas mas com um ponto em comum: nenhum sabia manejar bem a bola com os pés.
Nem Vitor Baía, nem Ruud Hesp, nem Roberto Bonano, nem Francesc Arnau, nem Robert Enke, nem sequer Pepe Reina, forjado na mesma filosofia, entenderam tão bem como Valdés o que lhe era exigido. Ser o primeiro a fazer jogar.
Guardiola defendeu sempre Valdés como peça nuclear do seu modelo de jogo.
Não só porque sabia sair a jogar com os pés, oferecendo o homem extra na defesa que ele sacrificava para enviar ao ataque. O seu 3-3-4 às vezes tornava-se num 4-3-4 porque Valdés subia no terreno e oferecia uma alternativa de passe extra ao jogador com a bola. Os colegas sabiam que podiam confiar nele. Errou. Algumas vezes errou. E por ser o guarda-redes, o último homem à face da terra, a equipa pagou o preço. Mas não abdicou da sua forma de jogar. Não por um erro, nem por mil.
Muitos criticaram o técnico catalão pela sua fidelidade a Pinto - um guarda-redes bem distante da escola blaugrana mas peça fundamental no balneário - ao fazê-lo jogar a final da Copa del Rey que Cristiano Ronaldo decidiu com um golpe de cabeça impossível a favor do Real Madrid. Mas nesse momento a transcendência de Valdés não se notou no golo sofrido mas sim nos problemas que os catalães encontraram ao sair com a bola controlada. Na semana seguinte, Valdés voltou a demonstrar a sua inteligência de jogo, não saindo com a bola controlado mas com um lançamento longo preciso que leu o desmarque de Pedro com a mesma inteligência de jogo que um passe de Xavi teria tido uns metros à frente. O Barcelona marcou e fechou a polémica meia-final da Champions League. Seria a terceira medalha ao peito do guarda-redes, o mais laureado dos guarda-redes espanhóis em provas da UEFA.
Dez anos depois de van Gaal lhe ter dado a primeira oportunidade, Valdés está farto.
Sofreu a pressão dos maus anos de Rijkaard, nunca conquistou definitivamente a admiração do próprio público, o mesmo que duvidava do valor de Xavi e Iniesta antes da chegada de Guardiola, e não gostou sobretudo de ter sido o bode expiatório das derrotas e o nome silenciado nas vitórias. É um homem de desafios extremos, amante do surf e dos desportos radicais, filho de uma geração da Masia que, salvo ele, não triunfou como se esperava. Antes dele já estavam Puyol e Xavi, logo a seguir veio Iniesta, Messi e companhia, mas ele surgiu sozinho. E sozinho vai partir. Deixará saudades e sobretudo um vazio que os directivos ainda não sabem como preencher. Porque, fiel à sua formação, é um guarda-redes único. Na cantera blaugrana há jovens com potencial mas que precisam de muitos anos e minutos para chegar à excelência que este projecto exige. E no mercado não deixa de haver grandes guarda-redes, como Vitor Baía o foi, mas cujo o valor fica para segundo plano quando a exigência de enquadrar-se num esquema já custou tanto a Ibrahimovic ou Villa, no outro extremo do terreno de jogo.
Valdés nunca se consagrou como o grande guarda-redes espanhol porque a sombra de Casillas é imensa e incontestada. Mas o seu percurso profissional é um exemplo perfeito de como uma filosofia de jogo é capaz de gerar jogadores para posições distintas mas com o mesmo ADN. Qualquer que seja o clube que o receba, terá um reforço radicalmente diferente à sua forma de jogar. Qualquer que seja o seu substituto, perderá sempre na comparação com a essa entrega ao projecto Barça. No final, Valdés e o Barcelona estão feitos um para o outro e a separação, como sucedeu com Lennon e McCartney, trará mais problemas a ambos do que soluções.