O futebol inglês apaixonou-se pelo modelo de eliminatórias desde a sua génese. A concessão ao formato de liga regular foi uma consequência da abordagem económica ao jogo da qual os britânicos foram pioneiros. Mas o espírito da FA Cup tem sido sempre o resguardo moral do futebol na ilha. É nesses duelos, imprevisíveis e abertos, onde as diferenças de orçamento se diluem e a épica ganha forma. É nesses duelos que o futebol encontrava o caminho das suas próprias origens.
Luton, Bradford, Swansea, Milton Keyne Dons, Olham Athletic, Millwall...
Todos os anos os nomes mudam, a essência permanece a mesma. A FA Cup e a Taça da Liga (ou Capital One Cup como o marketing manda), tornaram-se no motivo de alegria de adeptos em todo o mundo. Não só em Inglaterra. Caíram as seus pés equipas de prestigio, equipas de orçamentos infinitamente superiores, equipas de quem se espera que, pelo menos, marquem presença em Wembley uma vez dada dois anos. Chelsea, Aston Villa, Liverpool, Tottenham, falharam este ano. Dos grandes do futebol inglês, só Arsenal, Manchester United. Chelsea e Manchester City podem percorrer o tapete sagrado do futebol insular. E mesmo assim, ainda faltam jogos suficientes para que o milagre da Taça da Liga se volte a repetir. E o Mundo celebrou. Não porque gosta que os clubes grandes percam, que também é algo inato na vida do adepto, mas sobretudo porque adora ver os clubes pequenos forjarem a sua lenda. Mesmo que percam na ronda seguinte, por um dia são as estrelas. Por um dia são os ídolos. A ordem inverte-se, a moral mantém-se intacta.
O poder dos grandes clubes é menor que as tradições nos países onde estas valem algo. Na Península Ibérica está claro que o peso da tradição é facilmente corrompido e por isso em Espanha a Copa del Rey é disputada a duas mãos e as meias-finais da Taça de Portugal seguiram pelo mesmo caminho. Uma garantia de que os gigantes podem tropeçar uma vez, que têm sempre hipóteses de dar a volta. É uma competição imoral, mais desigual que a própria liga regular e que se transforma, curiosamente, num problema para alguns dos clubes pouco interessados em gastar energias a vencer troféus sem prestigio internacional. Salvam épocas de equipas desesperadas mas não curam as almas dos adeptos. Com o mano a mano entre Guardiola e Mourinho, a Copa del Rey ganhou outra dimensão em Espanha, forçando as duas grandes equipas a lutar pela mais mínima medalha, mas os adeptos são conscientes de que é uma realidade passageira. Em Portugal, é-o ainda mais. Desde 2004 que não se disputa uma final entre FC Porto e SL Benfica e mesmo nesse ano, pela presença dos dragões na final da Champions League, já com o título da liga no bolso, a vitória dos encarnados soube a pouco para quem imaginava um duelo de outro nível.
Em Inglaterra tudo é distinto, tudo é orientado para a lembrança do passado e o respeito pela memória.
Todas as equipas que hoje são surpresa foram grandes em algum momento da sua história. Muitos dos jornais portugueses, sem a mais mínima cultura futebolística, falam do Leeds United como tomba-gigantes do Tottenham Hotspurs. É curioso, visto que os homens do Yorkshire jogam por um clube com mais troféus conquistados que os londrinos, mas que penam há alguns anos no Championship pela penosa gestão financeira de Peter Risdale, um homem que sonhou em transformar o clube num novo Manchester United e que não olhou a meios para obter um fim que nunca chegou. Esse mesmo Leeds, que já perdeu uma final europeia, é só o exemplo mais claro, mas tanto Oldham, como o Luton, Millwall ou Bradford foram equipas de prestigio da parte alta da tabela classificativa. E claro, o Milton Keyne Dons, não é mais que o velho Wimbledon, transferido para a cidade suburbana criada a norte de Londres em plena expansão imobiliária.
Cada um desses clubes tem uma história, uma série de adeptos fieis e sabem o que é bater-se de igual com os chamados grandes do futebol inglês. Já o fizeram noutras reencarnações. Mas o que as provas a eliminar em Inglaterra lhes permite, é redescobrir esse velho e inesquecível prazer de os vencer diante dos seus, de sentir nos lábios o sabor da vitória. Esse prazer é algo quase exclusivo de uma cultura que persiste nas ilhas britânicas e que nem os milhões que agitam o jogo, como em nenhum outro lugar, são incapazes de corromper.
Se há tomba-gigantes em várias ligas - e França e Alemanha são talvez o mais democrático dos exemplos - em nenhum outro lugar há esta comunhão do passado e do presente, do dinheiro e da ambição, de jogadores que durante a semana limpam as suas próprias chuteiras com estrelas mundiais. É um universo paralelo à asfixia monetária que obriga a Premier League a endividar-se cada vez e os clubes que nela participam a hipotecar o futuro por mais meia dúzia de pontos no final da temporada.
Talvez nenhum desses clubes chegue à final da FA Cup, talvez o jogo entre o maravilhoso Swansea, desenhado por um conjunto directivos que teve uma ideia de futebol e não se afastou nem um só milímetro em seis anos, e o Bradford, seja a menos vista da história da Taça da Liga no mercado oriental. Mas são jogos como esse que definem a natureza do futebol britânico e que, através dessa viagem no tempo, nos fazem acreditar que há ainda muito espaço e tempo para o futebol encontrar um meio-termo entre o espírito autodestrutivo dos dias de hoje e o nostálgico passado.