É inegável que perfume do futebol do Barcelona de Vilanova não se aproxima do aroma apaixonante dos anos de Guardiola. Mas com uma abordagem mais pragmática, o técnico conseguiu um feito histórico que dificilmente será igualado nos próximos anos. Termina a primeira parte do campeonato invicto e com o título no bolso. Entender o Barcelona de Tito é, sobretudo, entender a relação entre o génio de um individuo e o valor de um colectivo perfeitamente oleado.
A goleada aplicada ao Atlético de Madrid confirmou que nenhum clube no futebol espanhol está, actualmente, sequer perto do nível do Barcelona de Tito Vilanova. Da mesma forma que Bob Paisley pegou na herança fundadora de Bill Shankly e aperfeiçoou a máquina, tornou-a mais eficaz e pragmática, também Vilanova recolheu a pesada herança de um génio como Guardiola e aproveitou-a da melhor forma possível.
O Barça de Tito é, mais do que nunca, Messi e mais dez.
O estado de graça do argentino é evidente, a sua fome de golos inaudita e a forma como a equipa se adapta, cada vez mais, ao seu estilo de jogo, transforma o onze num projecto circular em que o argentino funciona como sol, sempre brilhante, sempre presente. Seis jogos consecutivos a bisar, 24 golos em 16 jogos, registos pulverizados e uma liderança silenciosa mas omnipresente, garantem a Tito Vilanova o melhor arranque de sempre da história do futebol do país vizinho. Guardiola perdeu o jogo inaugural, algo que Tito ainda não sabe o que é. A partir dessa derrota em Sória, o Barcelona cresceu e chegou a Dezembro com as mesmas sensações actuais. Mas esse jogo era mais coral, menos dependente do génio individual de Messi. Era o Barça onde brilhava Etoo, onde Henry renascia, em que Pedro começava a aparecer e, sobretudo, em que o trio Iniesta-Xavi-Busquets se mostrava encantado de conhecer-se e jogar juntos. Uma lufada de ar fresco diferente desta máquina assassina e implacável.
Vilanova percebeu, como Guardiola, que tudo tem de rodear Messi. O técnico de Santpedor descartou Ronaldinho, Deco e Etoo quando percebeu que não aceitariam nunca jogar para o argentino e teve de fazer o mesmo com Ibrahimovic e Villa quando estes chocaram com o ego e a fome de golos da Pulga. Foram etapas conturbadas dentro do balneário que ajudaram a desgastar a liderança de Guardiola à medida que Messi aumentava claramente o seu poder dentro da instituição até que se tornou inevitável a saída de um dos dois. Vilanova herdou uma situação resolvida, uma liderança inquestionável (e merecida), e uma equipa oleada e com uma ideia na cabeça: apoiar-se no génio individual de Messi para lograr os êxitos colectivos.
Vilanova é, ao mesmo tempo, um treinador extremamente pragmático.
Na dualidade Pep-Tito, o antigo campeão europeu como jogador era o amante das experiências. Deambulou entre o 4-3-3 e o 4-6-0, reforçando a sua devoção pelo jogo de meio campo. Provou repetir o modelo de Cruyff com o uso de três defesas e muitas vezes alternou o jogo de extremos com o de interiores, garantindo quase sempre que os onzes se mudavam ciclicamente de jogo para jogo. Provou vários jogadores, deu minutos a miúdos da formação e provou que não havia vacas sagradas no balneário. Ao contrário, Tito prefere uma abordagem mais estável.
O seu 4-3-3 é invariável, uma aposta clara num extremo sempre bem aberto (Pedro), um avançado mais móvel que jogue nos espaços deixados por Messi (Cesc, Alexis, Villa), um meio-campo que segure a bola e a faça circular (Busquets, Xavi, Iniesta ou até Cesc) e um lateral mais ofensivo, com o eixo a mutar do lado direito, onde Alves brilhava, para o esquerdo onde o protagonista é agora Jordi Alba. A nível defensivo, Vilanova sofreu uma razia durante largos meses mas o problema não se notou nos resultados porque a cada golo sofrido a equipa encontrava forma de dar a volta. O papel de Messi foi superlativo.
Enquanto a crise do Real Madrid se agudiza e reflecte os números de golos marcados por Cristiano Ronaldo (14 em 16 jogos, menos seis do que logrou na época passada à mesma altura) os de Messi crescem e resolvem, muitas vezes, o problema colectivo. Os rivais do Barcelona encontraram forma de ultrapassar o jogo coral, de encontrar as fragilidades defensivas, de explorar o jogo de posse de bole. O que ainda não encontraram foi uma maneira eficaz de anular de forma consistente a Messi. A derrota em Glasgow provou que só um mau dia do argentino pode impedir a equipa de dar a volta à mais aziaga das situações. Em nenhum caso Tito abdicou do seu modelo, como fez Guardiola tantas vezes, e procurou algo diferente. Tello, Cuenca, Thiago perderam espaço face a um onze mais coral, onde se nota evidentemente o peso dos nomes fortes do vestuário, descontentes com a constante rotação a que Guardiola os votava. Fabregas ergueu-se em protagonista, à custa de David Villa, cada vez mais ostracizado, e Iniesta cada vez joga menos onde está mais cómodo. Nota-se a ideia de Vilanova em privilegiar os homens que ajudou a criar quando foi treinador de juvenis e se cruzou pela primeira vez com Piqué, Messi e Cesc.
Se o titulo espanhol está mais do que garantido, deve-se sobretudo ao respeito que o Barcelona impõe. A grande virtude do processo Guardiola foi criar nos rivais o respeito e o medo absoluto que antes era premissa do Real Madrid. As equipas sobem ao campo conscientes da sua inferioridade, um primeiro passo para a derrota. A bipolaridade do futebol do país vizinho é financeiramente real mas no relvado é ainda maior, surpreendendo só a péssima época de um Real Madrid entregue a um lunático que procura, entre o cerco a jornalistas e jogadores, por um problema insignificante comparado com a falta de fio de jogo alarmante que no ano passado era resolvida com a genialidade individual dos seus grandes jogadores. O Barça de Vilanova não está à altura da cultura futebolística de Guardiola, mas o Liverpool de Paisley também não o esteve de Shankly. Foi no entanto com ele que o clube atingiu a sua época dourada. Resta saber se também nisto, Vilanova será capaz de emular o único homem que venceu três Champions League na história do futebol europeu.