O que significa, no desporto, o fair play. O que significa, realmente, num desporto de competição que move milhões, o conceito quase amador de respeitar o rival acima de todas as coisas? A FIFA e as confederações, com a UEFA à cabeça, defendem o conceito como algo moralmente único mas na prática o fair play vai desaparecendo dos relvados. O acto de Luiz Adriano, pobre reflexo do estado actual do futebol, devia ser para a UEFA a oportunidade de ouro para demonstrar que as palavras também se podem transformar em actos.
Se a lógica imperasse, o Shaktar Donetsk teria perdido os três pontos conquistados na Dinamarca.
Mesmo vencendo por 2-5, mesmo tendo sido a melhor equipa no terreno de jogo. Tudo porque cuspiu num dos conceitos mais importantes do futebol como desporto. Do futebol como alma de um espirito competitivo justo e imparcial onde os principios de cavalheirismo ainda fazem sentido. No entanto ninguém espera que isso se torne realidade. Uma multa económica, para engordar o jantar de Michel Platini durante o próximo mês, e pouco mais. Uma reprimenda verbal, um raspanete a meninos mal comportados. A imagem, essa, ficou manchada para a posteridade. Chegue onde chegar o Shaktar Donetsk, que já está matematicamente apurado para os Oitavos de Final, confirmando o que dissemos, todos se vão lembrar antes deste gesto do que da imensa qualidade demonstrada nos cinco jogos pelos homens de Lucescu.
Lucescu, ai Lucescu. O homem que interrompeu a entrevista de Pep Guardiola depois de um 1-2 em que Messi marcou um golo parecido ao de hoje de Adriano, para criticar a falta de desportividade dos blaugrana tem agora um problema nas mãos. Diga o que disser, é fácil perceber que da sua boca não veio nenhuma ordem para permitir o golo dos dinamarqueses. O Nordsjallen vencia por 1-0 e depois do empate de Adriano marcou o 2-1. Mas foi mérito seu, nada mais. Não há nenhum gesto que indique que os ucranianos se deixaram bater. Depois, talvez espicaçados pelas celebrações dos dinamarqueses, marcaram diferenças com a sua superior qualidade. Mas o futebol já tinha perdido.
O lance é simples. Fácil de entender e explicar.
Uma bola ao ar no meio-campo que o árbitro indica, como é hábito, ao jogador do Shaktar que devolva à defesa dinamarquesa. Os homens da casa venciam por 1-0, estavam a ser melhores e os ucranianos sentiam-se nervosos. O remate foi sem convicção, é certo, mas Luiz Adriano apanhou a bola em jogo, sem estar em fora de jogo, e correu para a baliza onde o guarda-redes local, incrédulo, nem esboçou uma defesa. Foi o empate e a confusão. O árbitro validou o golo - poderia não fazê-lo? - e os jogadores dinamarqueses cercaram o brasileiro. Os homens de laranja olharam para o banco e encontraram silêncio. Quando a bola arranca, os avançados afastam-se mas o meio-campo fecha a muralha e recupera a bola. Não ia haver devolução de golo concedido, não ia haver desportividade. Muitos milhões em jogo provocam estas atitudes.
E no entanto Arsene Wenger solicitou um jogo repetido numa eliminatória da FA Cup quando Nwanknu Kanu marcou um golo nas mesmas circunstâncias, depois de receber uma bola que não era mais que a devolução desportiva do Arsenal à defesa do Southampton depois de uma bola ao ar. E Paolo di Canio, vendo os rivais no chão, lesionados, não hesitou em atirar a bola para fora e evitar marcar um golo fácil, com a baliza descoberta. Dois gestos que indicam que é possível esquecer que o futebol é uma indústria de milhões e, acima de tudo, um desporto.
Se o golo pode acontecer, o que é inadmissível é a reacção dos jogadores do Shaktar depois do golo. Essa é a atitude que a UEFA e todos aqueles que acreditam no futebol como algo mais do que uma indústria jamais poderão perdoar. Esquecer e deixar passar.
Os ucranianos deviam ser punidos da forma mais exemplar por representarem, com este gesto, o cúmulo da falta de escrupulos que no futebol tem muitas formas, desde perdas de tempo propositadas, apanha bolas que desaparecem, lesões e expulsões fingidas, agressões imaginárias...
O futebol perde-se um pouco mais em gestos como o de Adriano e dos seus colegas e a UEFA, como organizador do torneio, não pode limitar-se a anúncios televisivos e directivas a adeptos e clubes. A UEFA tem a responsabilidade absoluta de fazer valer o mesmo ideário que está na base do próprio jogo que se chama futebol.
Infelizmente este episódio passará os próximos dias por todos os telejornais para acabar no anedoctário do futebol, numa sequência de videos de Youtube e uma piada entre os mais cínicos do jogo contra aqueles que acreditam que o futebol representa realmente algo mais. O Shaktar tem equipa, já o dissemos, para ser uma das surpresas da prova. Adriano, com este hat-trick, pode acabar o torneio como máximo goleador e Lucescu seguramente pensará duas vezes antes de acusar outros técnicos de falta de desportividade. No final, uma modesta equipa dinamarquesa sentirá na pele o cinismo de um jogo que desaparece diante dos nossos olhos e a máquina que é responsável pela sua gestão profissional calará e guardará no bolso o dinheiro pago pelo Shaktar - se é que alguma multa se pagará - para anunciar aos quatro cantos no Mundo a importância do Fair Play. Em vez de Collina no próximo anúncio poderiam colocar Luiz Adriano. Ninguém daria pela diferença!