Numa era em que os analistas mais progressistas teimam em querer enterrar o ponta-de-lança, como fizeram no passado com os extremos e os criativos puros, novas versões da velha espécie teimam em desmentir a filosofia de que o falso-nove, uma invenção de sessenta anos, é o futuro. Javier Hernandez e Edin Dzeko vivem a poucos quilómetros de distância um do outro. Mas no terreno de jogo partilham a mesma habitação. E sabem como fazer dela a mais aconchegante da casa. A sua, a do golo.
A contratação de Robie van Persie parecia condenar Hernandez ao esquecimento.
O mexicano viveu, há duas épocas, uma explosão prodigiosa no ataque do Manchester United, relegando o milionário Dimitar Berbatov para o esquecimento definitivo de onde nunca mais saiu. Foi o homem dos golos definitivos, especialmente quando a chama de Rooney se apagou. Mais do que uma vez.
Chicharito, diminutivo de quem ama o golo (chicharro é golo em vernáculo popular espanhol), tornou-se sinónimo de triunfos épicos naquela escola que tanto apaixona o futebol inglês. Relembrou as gestas de Fairclough, do Liverpool, de Solskjaer, do United, homens que saiam do banco para tratar por tu as redes adversárias. Ele era e ainda é o símbolo de uma nova geração de um país que está destinado a grande voos. E no entanto, nem Ferguson nem os analistas pareciam confiar nele de forma evidente para dar-lhe a titularidade absoluta do gigante de Manchester. Não era o avançado móvel tão em voga, como todos os predadores, vivia de séries positivas e negativas e no futebol actual não há margem de erro. E no entanto estava aí, a responder com golos às dúvidas dos próprios e estranhos. Este ano, a chegada de van Persie podia ter sido o seu fim. O holandês tem respondido com golos, desmarcações e movimentações que agradam a quem se apaixonou por Hidgekuti ou Rivelino reconvertidos em Messi ou Fabregas, como se o nove e meio fosse coisa do hoje e do amanhã. Não é. E os grandes goleadores não desapareceram por completo. Hernandez tornou-se no abono de família do Manchester United no último mês.
Os golos do mexicano permitiram ao clube trepar até ao primeiro lugar da Premier League, de forma isolada, e ajudaram a garantir o apuramento directo para a próxima fase da Champions League, sem o sofrimento de outros anos e as eliminações precoces como na época passada. Com Rooney cada vez mais reconvertido a falso número 10 (ou 8, como queiram) a partir desde o meio-campo para estabelecer a ponte com o ataque, o mexicano vai aproveitando os minutos e os espaços para deixar a sua marca. Não é nem será titular na cabeça de um homem, como Ferguson, que sempre quis avançados velozes como Hughes, Cantona, Cole, Yorke, van Nistelrooy, Tevez, Rooney e van Persie. Mas cada vez mais prova que é um jogador que pode ser titular absoluto em qualquer equipa do Mundo.
Do outro lado da cidade, o lado azul celeste, há um homem que entende o mexicano à perfeição apesar de vir do frio dos Balcãs para o céu cinzento mancuniano. Edin Dzeko é a versão citizen de Hernandez, o goleador absoluto dos momentos desesperados, o homem que parece não ser contabilizado como primeiro opção numa linha de ataque onde os nomes próprios - Aguero, Balotelli e Tevez - correspondem a esse arquétipo moderno do avançado móvel e todo terreno.
Dzeko pode ser mais previsível, o seu jogo mais físico e posicional, a sua influência no comportamento do colectivo menos evidente. Não desce tanto a fechar linhas, não exerce as mesmas diagonais a meio-campo mas inspira terror em qualquer defesa contrária. Por quatro vezes este ano saiu do banco nos últimos dez minutos e ajudou o City a dar a volta ao marcador e a garantir doze pontos que mantêm os campeões vivos na luta pela renovação do título histórico logrado na época passada. Um título com o seu selo, com golos importantes nas segundas partes onde Mancini perdia a fé nele mesmo e deixava tudo nas mãos de Deus, da sorte e Dzeko.
O bósnio demonstrou na Bundesliga que é um dos melhores avançados puros do Mundo. A sua transferência para Manchester fazia sentido mas encontrou-se com a fome exagerada de uma equipa que prefere contratar primeiro e pensar depois. O overbooking ofensivo, com quatro jogadores de excelência, causou danos colaterais. Dzeko foi o primeiro. Talvez tenha o melhor ratio de golos e minutos do futebol europeu, talvez seja um dos avançados mais importantes nas vitórias agónicas da sua equipa, mas acaba sempre relegado para quarta opção. Ele é o herdeiro de Nial Quinn, o homem dos golos decisivos, o goleador em quem os adeptos sabem que podem confiar quando mais ninguém salva a pátria.
Como Hernandez, o bósnio é exemplo de uma velha raça que ajudou a fazer do futebol um espectáculo de golos. Quando a história comemora os feitos dos homens que decidem os jogos com os seus gestos implacáveis, que cheiram o sangue e o medo dos rivais, seguramente terá sempre um espaço para lembrar-se homens como Edin e Javier, goleadores puros que resistem à passagem do tempo e ás modas para demonstrar que a beleza do futebol parte também da sua pureza e simplicidade absoluta.
A linguagem do golo tem muitas entoações distintas e a imensa variedade de tipos de dianteiros ajudou o jogo a crescer e a aperfeiçoar-se. Mas o nascimento - ou redescoberta - de novas posições não deve, à partida, significar a extinção de outras. Os goleadores puros serão sempre fundamentais na concepção de qualquer plantel e os êxitos recentes de Dzeko e Hernandez apenas significam que o nove saberá sempre encontrar formas de se reinventar.