Tito Vilanova tinha o peso da herança sobre os ombros e decidiu-se pelo caminho mais difícil. Abdicou de muitos dos conceitos do seu antecessor e companheiro, Pep Guardiola, e apresentou uma colecção 2012/13 com um traço seu, sem perder com isso a essência real do modelo Barcelona que remonta às ideias de Laureano Ruiz e aos ensinamentos de Johan Cruyff. É com o holandês que Vilanova mais se quer parecer e é graças a essa verticalidade que o Barcelona tem assinado um arranque de época excepcional ao mesmo tempo que apresenta mais dúvidas que nunca no seu sector defensivo, fundamental na estratégia de Guardiola.
Quando Cruyff decidiu implementar o 3-4-3 da escola holandesa fê-lo segundo a velha ideia de Rinus Michels que defendia que uma equipa pode sofrer três golos, sempre e quando seja capaz de marcar quatro. Esse ideário futebolístico holandês permanece nos dias de hoje na Eredevise e foi santo e senha do Dream Team, uma equipa super-ofensiva capaz de sofrer cinco golos em viagens a Logroño, Tenerife ou Corunha mas sempre com a capacidade de responder sempre com mais um golo. Eram os dias de bolas largas, pelo ar, de Guardiola a rasgar para Romário, com Laudrup a mover-se como Messi, solto no ataque, e a defesa adiantada, consciente da sua fragilidade, até porque Zubizarreta não era um guarda-redes à Valdés, com essa capacidade notável de incorporar-se ao jogo como um falso libero. Vilanova não conseguiu ter lugar nessa equipa como jogador - foi descartado por Cruyff quando ainda estava na Masia - mas isso não significa que tenha perdido essa influência como técnico.
Onde Guardiola premiava o passe, a posse de bole, os rondos, esse "tiki-taka" revisitado da herança centro-europeia, Tito prefere a verticalidade cruyffiana. Onde Pep centrava o jogo nos homens do meio, nas centenas de passes de Xavi Hernandez para os defesas laterais, que se incorporavam ao miolo, com um Messi muito recuado, de forma a criar, em certos momentos, uma linha de seis num espaço extremamente reduzido do coração do relvado, Vilanova gosta de transições onde os passes sejam orientados sempre para a frente, para procurar o golo. Vilanova não quer que a equipa tenha a bola tanto tempo mas sim que faça da posse de bola o caminho mais rápido para o golo. As possessões deixaram de ser uma protecção para ser uma arma. Xavi já não dá 200 passes por jogo com a mesma facilidade. Em Vallecas, na goleada por 0-5 do último fim-de-semana, deu apenas 64. E no entanto todos eles tiveram sentido, um sentido ofensivo num modelo onde ele deixou de ser o protagonista. Vilanova treinou Cesc e Messi (e Pique) nos juvenis e é neles, nessa geração de 1987, que coloca o peso da equipa. Iniesta e Xavi, os homens de confiança de Guardiola, os seus herdeiros, continuam a ser fundamentais - como não podiam ser - mas já não são a espinha dorsal do jogo ofensivo da equipa, hoje distribuído entre Cesc, Pedro e Messi, um tridente mais dinâmico, veloz e orientado para a baliza contrária.
Vilanova deparou-se com uma defesa de remendos.
Tem culpa o clube de não ir ao mercado procurar um defesa quando está disposto a gastar uma fortuna num médio com Song, tapado pelo gigantesco futebolista que é Busquets, especialmente tendo consciência que Puyol fisicamente não é o mesmo e que o grande Abidal, que como central é tão competente como lateral, terá um regresso complicado à alta competição. O carácter mais volátil de Gerard Piqué, que perdeu muito do seu talento inicial quando chegou a Can Barça em motivos extra-futebolisticos, transformou essa realidade defensiva num problema. Dani Alves, que Guardiola quis vender (junto com Cesc, Villa e Pique) caso tivesse ficado ao cargo do clube, perde-se entre lesões musculares e noites que terminam já entrada a manhã pela costa catalã.
Sendo assim, Tito mais motivos encontrou para recuperar o ideário de Cruyff que sabia ter, já então, na defesa, o seu calcanhar de Aquiles. Adriano, Bartra, Mascherano e Song têm sido os centrais utilizados, todos eles com um comportamento que não está à altura da grandeza da equipa. Os quatro golos sofridos na Corunha, a fragilidade defensiva contra um Real Madrid inofensivo e a forma como equipas como o Celtic conseguem fazer sangue das poucas oportunidades que dispõem seriam um problema que a outro treinador dariam múltiplas dores de cabeça. Mas Vilanova é consciente de que não pode remediar essa realidade sem a sua defesa tipo e que é provável que ao longo do ano o quarteto guardiolano Alves-Pique-Puyol-Abidal não jogue nunca ao mesmo tempo. Por isso coloca todas as fichas nos seus homens de confiança. Nos que usam a bola para marcar e não só para controlar.
A equipa é muito mais ofensiva e vertical mas durante menos tempo. Se com Guardiola a posse de bola chegava, habitualmente, aos 80%, e prolongava-se durante quase todo o jogo, sem grandes variações, o Tito Team é mais volátil e concentra-se em momentos pontuais do jogo a sacar petróleo da qualidade individual do seu plantel ofensivo. Não estranha que a maioria dos golos catalães cheguem nos últimos vinte minutos, nos últimos suspiros como sofreram na pele os jogadores do Celtic Glasgow. A equipa não só não desiste como utiliza esse tornado ofensivo para atacar o rival quando o sente mais débil. É uma equipa mais ofensiva mas, ao mesmo tempo, mais cínica, porque escolhe os momentos em que ataca com mais cuidado e de forma mais declarada. Com Guardiola era impossível pensar que o Barcelona não estava a atacar, mesmo que esse ataque fosse simplesmente um espelho de uma situação controlada com toques de bola que deixavam o rival k.o. Com Vilanova há momentos do jogo em que a bola desaparece dos pés dos blaugranas e os rivais têm as suas opções, aproveitando-as mais do que seria de esperar. Mas são momentos concedidos à consciência, momentos que se revelam insignificantes comparados com os período em que o Barcelona decide cercar a área rival e deixar Messi aumentar a sua lenda goleadora. O Barcelona sofre mais com Tito e por isso marca mais. Tem de o fazer. Se não, corre o risco de cair nos erros que marcaram o final da era Cruyff, quando os golos sofridos se mantiveram nos mesmos valores mas os marcados decresceram grandemente.
Vilanova sabe que será incapaz de construir uma equipa tão sólida como Guardiola. Pep tinha o seu núcleo no meio-campo, no trio Xavi-Busquets-Iniesta, e na qualidade da sua linha defensiva que quase nunca concedida opções aos rivais para marcar. Nos seus últimos dois anos a equipa marcou muito mas sofreu ainda menos e foi assim que em muitos campos saiu com vitórias pela mínima mas sempre debaixo de controlo. Tito prefere a voragem vertical incerta de jogar um combate de boxe a golpes. Sabe-se possuidor de uma série de jogadores capazes de decidir qualquer jogo a seu favor e aposta tudo nisso. Uma lesão de Messi, Cesc ou Pedro colocaria em cheque o seu modelo de jogo mas a sorte parece estar do lado dos blaugranas e os problemas repetem-se, sim, mas atrás. De certa forma, ao aproximar-se de Cruyff, o que Vilanova faz é fechar o circulo do guardiolismo, um modelo inovador que procurou ir mais longe das ideias do seu mestre e procurar algo novo e actual. Vilanova não descarta totalmente a herança do seu anterior número 1 mas regressa às origens e repete a ideia de Cruyff, vencedor de três ligas no último suspiro, que a sorte procura-se à base de golos e não de posse de bole.