Os sinais estão lá mas a aura de grandeza dos Red Devils tem impedido de ver aquilo que os ingleses chamam de "big picture". Desde há quatro épocas para cá, o clube mais simbólico do futebol britânico dos últimos 20 anos tem caminhado para uma decadência profunda e quase inevitável. A exibição do Sporting de Braga, meritória, não é caso único e coloca definitivamente em cheque a importância do mítico "Teatro dos Sonhos" como campo impenetrável. Os sonhos do maior estádio inglês vão a caminho de se tornar, progressivamente, numa ressaca para os adeptos do Manchester United.
Não era só o resultado. Era o jogo. Sobretudo o jogo.
A exibição do Braga na primeira parte, ontem, em Old Trafford, pode não ser uma novidade para os arsenalistas. Cada vez mais habituados a sacar a sua melhor versão na Europa, os homens de José Peseiro foram fieis à sua ideologia e mantiveram o jogo debaixo do seu controlo. Até que a sua defesa, o calcanhar de Aquiles deste projecto, deixou de aguentar as investidas do rival e deitou por terra um excelente trabalho colectivo. Mas os adeptos daquele que é, a par de Barcelona, o clube mais importante do futebol europeu das últimas décadas, começam a habituar-se a cenários como este. Cenários que, no passado, eram impensáveis.
A fortaleza do United de Ferguson sempre esteve em Old Trafford. O clube apresentava em casa a sua melhor e mais espantosa versão deixando, progressivamente, o seu cinismo e sofrimento para os jogos fora. Mas esse cenário de superioridade absoluta, capaz de enervar o mais duro dos rivais, progressivamente tornou-se lenda, mito. Distanciou-se da realidade de um clube que, desde 2009, entrou numa depressão profunda da qual não consegue encontrar o caminho certo.
A final de Roma, que terminou com o ciclo britânico e apresentou ao mundo o Barcelona de Guardiola, foi o ponto de inflexão. A este Manchester faltava-lhe a sorte que tinha tido na época anterior, quando mais precisou. Venceu a Premier mas com serviços minimos e muito sofrimento e na final europeia que serviu de troca de testemunho, dominou os primeiros 20 minutos para depois desaparecer. E ser engolido num pesadelo sem fim. Desde então voltou a vencer apenas por uma vez o título inglês, preso entre os titulos de Chelsea e Manchester City, e voltou a defrontar o Pep Team numa final europeia. Foi uma das piores noites da carreira de Ferguson, liderando uma equipa montada dos pés à cabeça a pensar no rival - algo que tem sido cada vez mais evidente à medida que o escocês vai envelhecendo - e destroçada com uma facilidade inusitada. Tentou vender-se a noite como uma mudança de guarda mas na época seguinte foi a Scholes a quem pediu ajuda e foi de Giggs que puxou nos momentos determinantes. O sinal estava dado.
Se ontem o Braga humilhou futebolisticamente durante meia-hora ontem, trocando a bola com uma fluidez e confiança no meio-campo composto por Viana-Micael-Amorim que não se é capaz de ver com a camisola vermelha de Old Trafford, a exibição do Tottenham, há duas semanas, foi ainda mais evidente porque aí a defesa não falhou e aguentou a investida a quem Ferguson recorre nos momentos de aperto.
E mais do que isso, o jogo memorável do Bilbao de Bielsa na época passada, o jogo que confirmou que as equipas de escalão médio europeu já não têm porque ter medo dos Red Devils. O Basel e Cluj já o tinham demonstrado recentemente, mas venceram combates equilibrados. O Bilbao foi imensamente superior durante 90 minutos como o Tottenham foi durante 60 e o Braga durante 40. Quando antes ninguém podia presumir, salvo contadas excepções, de ser tão superior a uma equipa como o Manchester durante mais de um quarto de hora consecutivo.
Ferguson tem sido incapaz de operar uma quarta geração depois de ter transformado a equipa de Whiteside e Robson na de Cantona e da geraão de 91, depois de ter trocado Beckham e a dupla Yorke-Cole por van Nistelrooy e Cristiano Ronaldo, Rooney e Tevez. A chegada de Robbie van Persie traz golos mas não jogo e Kagawa não encontra o seu sitio num esquema que muda regularmente de um 4-5-1 a um 4-3-3 para acabar num 4-4-2 losango, como o de ontem, com Rooney como falso número 10 no apoio a um avançado mais móvel (van Persie) e um mais fixo (Javier Hernandez). No ataque, os Red Devils não se podem queixar, mas a partir de aí os problemas multiplicam-se.
A defesa de circunstância habitual espelha a incapacidade de Ferguson de renovar a Evra, Ferdinand e um Vidic a quem os problemas fisicos se multiplicam. Rafael tem-se imposto na primeira equipa com surpreendente autoridade mas é uma lufada de ar fresco numa linha envelhecida e sem ideias, sem garantias e incapaz de aguentar o peso da camisola. No meio-campo os problemas são mais sérios.
Primeiro porque a Ferguson faltam as ideias. Não sabe a que jogar, não sabe com que esquema e modelo de jogadores apostar. Cleverley, Fletcher, Carrick apresentam ideias totalmente opostas às de Kagawa ou Anderson e a utilização de Giggs, Scholes e até Rooney, no miolo, deixa claro um problema de criatividade e organização que tem sido um problema desde 2008. Contra o Braga o técnico abdicou dos extremos (tem Young, Nani, Valencia, Wellbeck, Giggs) mas mesmo assim o miolo esteve sempre descoordenado e fora de acção e foi precisamente com o movimento de extremos que a equipa conseguiu dar a volta demonstrando que o seu ADN continua a exigir um estilo de jogo onde o meio-campo é deixado para segundo plano.
O orçamento gigantesco, a qualidade individual de muitos dos seus elementos e o génio, cada vez mais inconstante, de Ferguson, podem ser suficientes para os Red Devils continuarem a disputar o título inglês e europeu até Maio. Mas cada vez parece mais evidente que o clube de Manchester baixou, e muito, face a uma versão sua que não tem mais de quatro anos. A eliminação precoce na época passada, a pior versão de Ferguson na época passada, no entanto deixam sinais que noites como a de ontem só reafirmam. A pouco e pouco, Old Trafford vive uma profunda e progressiva decadência que transformará o Teatro dos Sonhos, como um dia lhe chamou Bobby Charlton, num campo com algum que outro pesadelo difícil de esquecer.