Sai Leandro Damião, entra Kaká. Uma mudança que provoca um verdadeiro terramoto táctico no jogo ofensivo do Brasil de Mano Menezes. Uma mudança que aproxima o escrete canarinho da sua herança histórica, defensora do conceito de falso 9 muito antes do futebol actual sequer ter sonhado com tamanha "inovação". Este Brasil ainda apresenta falhas importantes para ser considerado favorito no terreno de jogo a vencer o seu Mundial. Mas se a experiência da última semana se tornar em realidade, o concerto de classe e futebol dos brasileiros está garantido para o próximo Campeonato do Mundo.
Circula a bola com fluidez. Move-se de lado a lado do campo.
Sem posições fixas, sem ataduras tácticas visíveis a olho nu (porque elas estão sempre lá), o quarteto ofensivo brasileiro desdobra-se com naturalidade, talvez lembrando-se de outras eras, de outras histórias, de um futebol que foi perdendo com a sua progressiva europeização. Em 1990 Carpeggiani chocou o Mundo apresentando um 3-5-2 calcado ao modelo argentino tão em voga na América Latina e o Brasil desiludiu como nunca. Quatro anos depois o músculo substituiu o talento, os buldozzers jogaram no lugar dos pintores e a eficácia do único génio irreverente fez a diferença e o Mundial chegou, 24 anos depois. Em França, Zagallo procurou aproximar-se mais ao modelo europeu mas cedendo alguma criatividade ao seu ataque e o titulo ficou a um pequeno passo para os brasileiros e um imenso salto para Ronaldo. O homem que apareceu, quatro anos depois, para ajustar contas com a história numa equipa que jogava num 3-5-2 que só era viável porque Roberto Carlos e Cafú são tão inimitáveis como os três R´s da frente. Para os dois Mundiais seguintes passou-se do 8 (um ataque só de avançados e sem trabalho de meio-campo) ao 80 (uma equipa sem alma de ataque que apostava tudo no músculo do miolo). Nenhum dos projectos resultou. Mais do que isso, nenhum destes modelos tinha sequer similaridades à escola brasileira. À dos três Mundiais, entre 1958 e 1970, à do Brasil de Telé Santana, à que acreditava no papel do individuo dentro do colectivo como elemento realmente diferenciador na hora da verdade.
Talvez este seja um ponto de inflexão.
O Brasil que renegou da sua condição parece interessado em redescobrir-se. Talvez porque jogará o Mundial em casa e tem contas para ajustar. Nenhuma selecção grande que teve recebido alguma vez um Mundial falhou em vencê-lo. Uruguai em 1930, Itália em 1938, Inglaterra em 1966, Alemanha em 1974, Argentina quatro anos depois e França em 1998. Os brasileiros são a única grande nação que falhou em casa na hora da verdade. Nunca nenhum país que tenha recebido por duas vezes um Mundial, salvo o México, viveu duas derrotas do anfitrião. Esse é um peso sério para os ombros de Menezes. Especialmente se desiludir não só no resultado mas, sobretudo, no terreno de jogo.
O falso 9 é uma falsa questão, uma invenção tão antiga como os mágicos magiares de princípios da década de 50.
Não foi uma invenção actual, espanhola ou blaugrana, e ninguém a levou ao nível de lenda como a selecção brasileira de 1970. A de Zagallo, o homem por detrás da metamorfose do 4-2-4 para o 4-3-3 e o homem que tem igualmente o crédito de ter inventado o 4-2-3-1 no Mundial do México. A diferença é que esse um, esse elemento avançado diferenciador, Tostão, actuava no terreno de jogo como um mais do tridente que o precedia composto por Jairzinho, Rivelino e o imenso Pelé. Nenhum dos quatro jogava numa posição fixa e alternavam regularmente posições na linha ofensiva. Jairzinho foi o melhor marcador do escrete, apontando em todos os jogos, um feito histórico, aparecendo tantas vezes no espaço que a movimentação de Tostão deixava para os colegas. A consagração dessa selecção, uma das melhores e mais excitantes da história, foi também a consagração de um modelo sem amarras tácticas que muitos pensavam ser possível só no Brasil.
Doze anos depois o Brasil de Telé Santana tentou emular o mesmo ideário, num 4-2-2-2 em que os quatro da frente trocavam de posição de forma constante, com a maioria dos golos a ser marcados pelos médios ofensivos e não pelos dianteiros. Mas a ausência de um título pesou na imagem que deixou no futuro e à medida que o futebol se metia em corsets tácticos vários, a ideia perdeu-se no tempo até que Pep Guardiola, primeiro, e Del Bosque, depois, a aplicaram com sucesso no futebol espanhol.
Kaká foi a pedra basilar no modelo de Menezes que recupera essa herança.
Até agora o seleccionador tinha procurado jogar quase sempre com uma figura de ataque, habitualmente Leandro Damião. Mas a verdade é que ao Brasil falta-lhe essa figura de goleador com que a história tem abençoado os brasileiros nas grandes gestas desportivas. Talvez com essa consciência, talvez porque a herança táctica brasileira pedia algo especial, Menezes decidiu reunir os seus jogadores mais criativos e distribui-los pela linha de ataque sem posições fixas.
A movimentação de Hulk, Neymar, Kaká e Óscar é o grande quebra-cabeça das defesas contrárias. Jogam no espaço, pedem a bola, movem-se e descolocam os rivais com a precisão de um relógio. Apoiam-se no imenso trabalho físico e táctico da dupla Ramires-Paulinho, herdeiros dessa memória de carregadores de piano do passado, e pintam o seu futebol de forma tranquila e cúmplice. Quando saem, é para dar lugar a outros interpretes da mesma sinfonia, a Lucas Moura, a Giuliano, a Thiago Neves e só, ocasionalmente, ao caça-golos Damião.
Menezes pode avançar com uma linha de individualidades com que talvez só o futebol espanhol e alemão possa competir. Pode dar-se ao luxo de abdicar de um renascido Ronaldinho Gaúcho. Pode esquecer-se até de Jadson ou Willian. Para não falar de Paulo "Ganso" Henriques, que parece ter perdido definitivamente este comboio. De certa forma conta com as condições perfeitas para montar uma orquestra deste estilo. Dois laterais ofensivos - Alves e Marcelo - dois centrais de garantias - Thiago e David Luiz - e um meio-campo tacticamente impecável. Os jogos mais recentes, frente a dois rivais asiáticos, deixaram a nu alguma falta de coordenação entre o ataque e a defesa e talvez por isso o seleccionador brasileiro tenha guardado sempre as substituições para os momentos finais. Para ganhar o grupo, o onze, a equipa que os pode levar ao hexacampeonato do Mundo.
De certa forma, a este Brasil falta-lhe a estrela planetária (que Neymar ainda não é) que tem a Argentina, o espírito coral da selecção alemã e a classe superlativa da equipa espanhola, aqueles que são os reais favoritos a vencer o próximo Mundial. Mas a um ano e meio de arrancar o torneio, Menezes tem tempo para trabalhar a sua ideia. Ter encontrado com o modelo ideal é o primeiro passo. A partir daí a herança histórica brasileira e o talento genuíno dos seus interpretes terá de fazer o resto para fazer dessa condição de favorito emocional o primeiro passo para um torneio para a posteridade.
De Victor Hugo a 17 de Outubro de 2012 às 02:23
Que belo texto! Parabéns!
Pela primeira vez desde o ingresso de Mano Menezes eu vi um futebol tão vistoso e bem praticado como hoje.
A princípio noto que Hulk fica mais a direita, tal como Robben gosta de ficar, arrancando para o meio e soltando foguetes para o gol, Oscar centraliza no meio comandando o quarteto, Kaká é o espelho de Hulk na direita, relembrando seus melhores momentos e Neymar flutua, como Messi, Tostão ou mesmo Cruyff na genial Holanda de Rinus Michels. Mas a movimentação que vem a seguir é evidente e é o diferencial que o Mano fez nos canarinhos.
(Continua)
De Anónimo a 17 de Outubro de 2012 às 02:43
Há algum tempo o Mano vem elogiando a Espanha de Del Bosque e não é difícil descobrir de onde ele busca tirar a influência de sua nova seleção, no entanto é irônico porque esse Brasil lembra muito mais o Brasil de Zagallo e mesmo o de Telê do que a Espanha de Del Bosque. Talvez o DNA futebolístico brasileiro seja o responsável pela tentativa de Mano de imitar a Espanha ter dado errado, mas ao mesmo tempo ter despertado o jeito brasileiro de jogar futebol de outros tempos.
É fato, desde que o Brasil tentou imitar o jeito europeu de jogar: mais físico, disciplina tática e postura pragmática, mais ele se distanciou do torcedor brasileiro.
A pressão que Mano vinha (e ainda vem) enfrentando no cargo beira o insuportável, e ele quase saiu do cargo depois da derrota olímpica, no entanto, de alguma maneira, ele resistiu no cargo, e parece experimentar um renascimento no seu emprego... (continua)
De Victor Hugo a 17 de Outubro de 2012 às 02:55
...graças a uma mudança de visão de jogo certeira que vem fazendo alguns jornalistas mais observadores começarem a mudar sua opinião sobre seu trabalho, passando a dar um voto de confiança.
Ao contrário de Dunga, que, com um esquema pragmático, venceu tudo que disputou até a copa e saiu nas quartas graças a infantilidade de Felipe Melo, que abalou seus companheiros, Mano vem acumulando alguns fracassos, mas só por estar conseguindo impor um estilo de jogo mais vistoso já começa a ter créditos que Dunga nunca teve.
O brasileiro, antes de tudo, ama e preza o futebol bonito, o futebol arte, até por isso reconhece mais a seleção derrotada de 82 do que a vencedora, mas pragmática seleção de 94. Aqui, nem sempre os vencedores são celebrados, outro exemplo é a elogiada seleção de 50.
Abraços!
De Victor Hugo a 17 de Outubro de 2012 às 02:59
O segundo comentário em anônimo também é meu, só esqueci de me identificar.
De Victor Hugo a 17 de Outubro de 2012 às 03:02
O segundo comentário em anônimo também é meu, só esqueci de me identificar.
Victor Hugo,
Sem dúvida, a principio o modelo de Menezes não era mais do que um 4-2-3-1 com alguma mobilidade na linha da frente mas sempre com um referencial fixo e o uso de extremos abertos. Com a entrada de Kaká e a consolidação de Hulk, Menezes consegue esse concerto de futebolistas ofensivos que se complementam. A força e diagonais de Hulk, a pausa e visão de Kaká, a liberdade individual de Neymar e a criatividade de Óscar, num só set. Mesmo quando tem de substituir o quarteto de ataque encontra jogadores de caracteristicas similares e só tenho pena de não ver Ronaldinho Gaúcho neste sistema, depois de este renascimento no Atlético de Mineiro. Mas entendo que o importante é consolidar o bloco para 2014 onde Kaká ainda pode ser importante mas em que apostar em Ronaldinho já seria demasiado arriscado.
Ao ser uma selecção com verticalidade e velocidade, o futebol pausado de Ganso perde efeito, como se viu pelas péssimas exibições do médio na última Copa America, e a presença de Neymar como lider moral do ataque dá esse cariz bem brasileiro a uma selecção que se tem sentido orfã da sua própria génese.
É uma variante mais do falso 9, diferente da do Barça, porque Messi é único, da de Espanha, porque é menos de médios interiores criativos e mais de médios ofensivos, e talvez a que mais se assemelhe à sua herança histórica.
um abraço
De Victor Hugo a 17 de Outubro de 2012 às 15:19
Miguel Lourenço Pereira
Realmente esse quarteto ofensivo lembra, e muito, o Brasil de 70, por exemplo. Claro que deve ser guardada a devida proporção, pois Pelé, Jairzinho, Rivelino e Tostão eram superiores aos garotos brasileiros hoje, mas a identidade tática é a mesma.
Só me faz falta um cérebro nesse time, alguém que pense o jogo de traz e que rege esse quarteto com harmonia. Faz muita falta um Gerson nessa seleção. Penso que Ganso, se aprendesse a armar de traz, tal como o Pirlo, Xabi Alonso ou o próprio Gerson, e se comprometesse mais taticamente, seria a cereja do bolo dessa seleção. O Brasil, por mais que pratique um futebol vertical, sempre teve cérebros os regendo de traz (Didi, Gerson, Ademir da Guia, Cerezo, Falcão), no entanto nunca vi algo assim em campo, pois sou jovem, mas queria muito ver. Talvez seja o ponto de equilíbrio entre defesa e ataque que o mano tanto procura.
Victor Hugo,
Óscar pode procurar realizar esse papel, um pouco mais atrás desse tridente, mas com liberdade para bascular. O meio-campo de Paulinho e Ramires é mais físico, sem dúvida, e falta esse maestro do ritmo de jogo mas não vejo no Brasil actual nenhum jogador com essas caracteristicas. Ganso sempre me pareceu mais um número 10 sem ritmo e não o vejo com fome competitiva suficiente para reaprender uma nova posição como fizeram Pirlo ou Gerson, talvez um dos maiores jogadores da história esquecidos pelo grande público.
um abraço
De Luis Marques a 23 de Outubro de 2012 às 12:27
Caros Miguel e Victor Hugo,
atendendo ao brilhante 'renascimento' de Ronaldinho Gaúcho no Galo, ocupando notoriamente outros espaços de terreno, não acham que, com a sua experiência, inteligência, magia e visão de jogo, poderia ser ele a fazer o papel de maesto, detendo a batuta criativa do tridente, marcando e pautando o ritmo de jogo ofensivo e basculando, conforme a música, reinventando-se e reciclando-se como um jogador mais cerebral e menos físico (...até pela sua idade)?
Um abraço de um flamenguista no Rio, corinthiano em Sampa e benfiquista em Portugal
(...ninguém me poderá acusar de não ser coerente! hehehe)
Luis,
Para mim, pessoalmente, Ronaldinho é o melhor jogador pós-Maradona e tem lugar em qualquer equipa. Creio que Menezes teme mais o seu caracter do que a sua incapacidade de se adaptar ao seu modelo de jogo e por isso prefere gente mais jovem, com mais fome, ao lado de uma figura mais consolidada mas que tem muito mais que Ronaldinho a provar, como é Kaká.
Futebolisticamente falando, creio que Ronaldinho jogaria de caras na selecção brasileira, espanhola, alemã, argentina ou portuguesa.
um abraço
Boas, interesse numa troca de links?
Deixa mensagem no meu blog, abraço
http://thebluefactoryofdreams.blogspot.pt/
De Victor Hugo a 17 de Outubro de 2012 às 20:04
Miguel Lourenço Pereira
Concordo com você, Ganso tem sido muito displicente há um bom tempo e, embora tenha inegável qualidade, parece não ter prazer em jogar futebol (espero que renasça no São Paulo FC, que aliás, é o time que eu torço aqui no Brasil), mas, enquanto isso, não temos jogador para essa função, infelizmente, mas que jogador Ganso seria se tivesse comprometimento tático.
Abraços!
Victor Hugo,
Sem dúvida. E há dois jogadores brasileiros que gostava de ver nesta equipa. Coutinho e Ralf, tempo ao tempo!
Link adicionado.
Abraço
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