Há futebolistas que actuam no terreno de jogo com a consciência de que o campo, para eles, é mais largo e mais comprido do que para a maioria dos colegas. Sabem ler o jogo em toda a sua real dimenão no espaço e mais do que medir os tempos e ritmos, permitem abrir e fechar o tapete verde como um balão que se esvazia e se incha a belo prazer. São jogadores que nascem com um radar incorporado e que vêm o jogo com olhos diferentes de todos os outros.
A bola nos pés de Xavi faz um barulho estranho. Ronrona, lança o alerta, conecta com o radar do médio espanhol.
Quando sai dos seus pés tem o destino traçado e dificilmente algo a impedirá de chegar ao objectivo final. Antes, nesses milésimos de segundos, o radar do blaugrana encontrou todas as coordenadas exactas para não falhar no passe. Abriu o campo, passou ao colega mais perto, lançou um passe a rasgar, jogou pelo seguro. Posicionou-se e descolocou os rivais, rompeu linhas ou organizou as suas. Um só gesto, pensado a outro ritmo, a outra cadência, é suficiente para impôr ao futebol a magia que os adeptos vêm mas, muitas vezes, não entendem.
E quem diz Xavi Hernandez, esse mago do futebol moderno, esse anão veloz, não nos movimentos de corpo mas no raciocinio que aplica como poucos ao tabuleiro de xadrez que é um jogo de futebol, pode pensar em vários nomes.
Andrea Pirlo, Bastian Schweinsteiger, Andrés Iniesta, Xabi Alonso, Luka Modric, Óscar, Eden Hazard, Juan Mata, Mario Gotze, Yohan Cabaye são os nomes próprios do momento, os embaixadores de um futebol onde o corpo conta menos que o cérebro, onde a condição fisica e as suas aptidões, a finta, a velocidade, o sprint, são relegados para um segundo plano. São também os jogadores que, mediaticamente, perdem nas comparações com as estrelas do drible, os goleadores incansáveis e os artistas rebeldes, sem consciência táctica e amarras ideológicas.
A história perde-se em comparações odiosas. No Brasil de 70 quem se lembra de Gérson, o criativo que empunhava a varinha mágica dos homens de Mario Zagallo? Netzer viveu à sombra dos golos de Muller e a liderança moral de Beckenbauer e Mário Coluna no Benfica dos anos 60 perdeu sempre na comparação com a magia de Eusébio. Foram jogadores de excelência, e a lista não tem fim, criados na cultura do passe - curto ou largo, não faz diferença - e na sensação de que a magia do futebol parte do seu ideário colectivo que, como um bando de aves, triunfa quando se move ao mesmo ritmo e na mesma direcção.
A bola respira a um ritmo quando acompanha em velocidade a Messi e Ronaldo, sente de forma especial o golpe da cabeça de Falcao e do pé de Benzema mas é talvez nos pés destes jogadores que se encontra mais cómoda. Sabe que não vai ser utilizada de forma abrupta e constante. Um só toque e destino certo, ritmo elegante e rasgo na atmosfera.
Uma das principais razões da decadência do futebol português parte, sobretudo, da ausência desta figura. Se é certo que Portugal vive o problema crónico do avançado e sofre, ocasionalmente, com os médios defensivos e os laterais esquerdos, é na ausência absoluta de criatividade em que vivem os clubes e a selecção que se percebe que o futebol mecanizado e fisico que utiliza a equipa nacional e os seus principais emblemas não é mais do que o espelho da não utilização destes radares humanos.
Portugal não tem, desde Deco, um jogador com essas caracteristicas e sofre-o num jogo de transições rápidas defesa ataque, explorando a velocidade de Ronaldo e Nani, utilizando a figura do avançado como um médio mais, batalhador, de contenção, um operário como o trio de centrocampistas a quem não se lhes permite tratar a bola com a segurança de um passador de classe. Nem Moutinho, nem Meireles, nem Carlos Martins, nem Hugo Viana conseguem chegar a esse nível e se os dois últimos possuem algumas caracteristicas exigidas para o posto, a sua tremenda irregularidade espelha também a sua dificuldade em render ao mais alto nível. Portugal espelha assim o mesmo futebol que praticam os seus clubes. No Benfica há um treinador que não acredita no uso do meio-campo para dar ritmo, organização e classe à sua equipa. O futebol de Jesus é feito a pensar em ataque, mas um ataque só de avançados e extremos não é necessariamente um ataque mais eficaz do que aquele usado por um sexteto de médios, como demonstrou Guardiola na última final do Mundial de Clubes, quando utilizou um 3-7-0 (com Messi como falso 9 e Alves como falso extremo). Na desorganização futebolistica do Sporting dos últimos anos ficou evidente, igualmente, que o 4-3-3 de Domingos e Sá Pinto era muito similar ao da selecção com jogadores de combate e pouco futebol. E o FC Porto, desde os dias de Jesualdo Ferreira, optou pelo mesmo modelo, sendo que nem Lucho Gonzalez ou João Moutinho têm capacidade para ligar o radar e fazer toda a equipa bailar ao seu ritmo.
Esta éspecie de ave rara perde mediaticamente em comparações odiosas mas para os técnicos é o melhor aliado. O problema está na origem. São jogadores que não nascem, de forma expontânea, nas fintas de rua nem podem trabalhar o seu posicionamento e fisico para transformar-se em tanques defensivos. O seu treino é long, extenuante e exige paciência. Exige uma aposta séria no futebol de formação. Não surpreende portanto que os únicos países que na actualidade devotam tempo e dinheiro a formar os seus futebolistas sejam também os únicos que podem apresentar um leque de radares humanos de excelência. Jogadores que crescem e que não nascem, jogadores de outras eras e outros ritmos, com o radar accionado, eles são também, os jogadores que fazem do futebol um combate de 90 minutos que muitas vezes se decide ao pontos.