Existem aqueles que entendem que o futebol é um jogo de jogadores, de artistas. Que desvalorizam o papel do treinador, reminiscências de uma era onde o papel do técnico era quase inexistente aos olhos de público e directivos. Mas desde a década de 60 que, finalmente, o técnico começou a ganhar preponderância mediática e, com ela, um estatuto social importante que em alguns casos os equipara directamente aos nomes próprios do futebol. Mas o reconhecimento, o mérito e a fama também vêm de mão dada com a responsabilidade, a culpa. Para todos os treinadores menos para um. José Mourinho continua a sentir-se como o treinador que nunca tem a culpa.
Nas bancadas perdidas pelos campos desse mundo fora, quando uma equipa se encontra a perder e o relógio corre mais depressa do que Usain Bolt, o desespero leva os adeptos a gritar por golos, por mais homens capazes de marcar esses tão necessários golos. E os treinadores mais comuns, os que seguem o estudo do jogo de longe, habitualmente fazem-lhes a vontade. Entram avançados, saem defesas. Entram avançados, saem médios. Mudam-se defesas centrais para a área contrária e as bolas deixam de sentir o cheiro da relva para rasgar os céus, onde, como diria Clough, não há relva porque Deus não quis que a bola por ali se movesse.
Esse "chuveirinho", como diz o calão futebolistico, ás vezes resulta. Mas a maioria das vezes apenas serve para espelhar o desespero e a falta de ideias do homem que, no meio da tensão, tem de saber manter a calma, o raciocinio solto e a frieza nas decisões. Por cada golo inesperado nos últimos segundos que entra, há dezenas de oportunidades que morrem na confusão da falta de ideias. Um treinador paciente sabe que a bola se coze no meio, se pensa no miolo e só o jogo de espaços pode provocar oportunidades de golo claras. Depois entra o talento, a sorte, a eficácia. Mas o seu trabalho não é esse. É o de saber manter as condições ideais no tapete para que as oportunidades surjam. E para isso, a evolução táctica já demonstrou vezes sem conta, mais avançados não é forçosamente a melhor solução. Pensará o mesmo José Mourinho depois de perder frente ao Getafe por 2-1? Pensará o mesmo o técnico sadino que este ano soma três jogos sem vencer e vê já o rival directo - e único - para o título espanhol a cinco longos e asfixiantes pontos de distância?
Da sua boca nunca o irão ouvir. Na conferência de imprensa, no final do jogo, Mourinho teve palavras para tudo e todos. Menos para si. Menos para o seu peregrino 3-2-5, um esquema táctico que aguentou durante um quarto de hora e que deixou a nú a clara incapacidade do seu Real Madrid de jogar com paciência, com calma, com a bola nos pés.
O futebol de toque não garante sempre a vitória. Essa demagogia recente faz tanto mal ao jogo como acreditar que o "chuveirinho" final é a solução óptima para momentos de desespero. Mourinho move-se no cinzentismo entre as duas correntes mas as suas equipas sempre foram equipas de físico, de velocidade, de romper as linhas com passes rápidos, poucos toques, arrancadas no espaço e pressão asfixiante para esgotar o rival. Mas em Getafe não houve nem sinal desse projecto que lhe deu uma taça e uma liga em duas épocas.
Fisicamente o Real Madrid é um desastre, Cristiano Ronaldo é um fantasma de si mesmo (nunca arrancou tão mal uma liga) e ao contrário de Leo Messi, que depois de uma pré-temporada completa - a primeira em quatro anos - está fresco como nunca, ainda não se encontrou com o golo. O golo decisivo capaz de enganar com o resultado uma exibição cinzenta. Em Pamplona o Barcelona sofreu mas venceu, Messi desenhou à mão um resultado enganador. Mas assim se ganham ligas, como o extremo português demonstrou no ano passado em contadas ocasiões que o Real Madrid ganhou sem jogar melhor. Sem jogar bem.
Em Getafe a equipa de Mourinho jogou mal. Jogaram mal as individualidades mas, sobretudo, jogou mal o colectivo. E aí a responsabilidade é sempre do treinador. Por muito que este seja incapaz de o assumir. Não são só os erros sucessivos nos lances de bola parada o problema do Real Madrid. Desde o primeiro ano de Mourinho que cantos e livres têm sido o seu calcanhar de Aquiles. Depois de tantas sessões de treino é inacreditável ver o melhor jogador azulón neste tipo de lances, o lateral Varela apareça sozinho para empatar o jogo em Getafe. Um episódio mais numa lista onde ninguém sai bem na fotografia. Nem o Iker Casillas que, com a selecção de Espanha se transforma invencível nesse tipo de lances, nem os jogadores escalados para a marcação, nem o técnico que coordena o posicionamento dos jogadores neste tipo de lances.
Se é nesses movimentos que o Real Madrid tem perdido jogos e pontos, é na incapacidade de dominar os jogos com a bola nos pés que está o seu real problema. Luka Modric chega para resolver, na teoria, uma realidade do futebol de Mourinho. Não o logrará.
O croata, como Ozil, é um criativo veloz, que gosta de jogar em movimento, que explora bem os espaços com as suas diagonais com a bola nos pés e que lê bem a movimentação dos seus colegas em questões de nano-segundos. Em Inglaterra associou-se sempre bem com a velocidade de Bale ou Lennon e raramente o vimos a pausar o ritmo de jogo e acalmar as hostes. Modric é demasiado parecido a Ozil para apresentar uma alternativa que Sahin ou Granero ofereciam, jogadores mais de pausa no meio de tanta vertigem. Mas o primeiro já está em Liverpool e o segundo conta pouco porque, pura e simplesmente, não é esse jogo a que quer jogar Mourinho.
O croata supera o alemão em golo, tem esse remate de meia distância tão apreciado em Inglaterra e que ajuda a desbloquear jogos. Mas numa equipa onde já há Di Maria, Ronaldo, Benzema e Higuain, homens fortes nesse campo, isso não é forçosamente uma necessidade.
Modric jogará ao lado de Alonso, no lugar de Ozil ou até mesmo pegado a uma banda, mas não mudará o problema de construção paciente de jogo de um treinador que se recusa a sentir culpado quando a sua equipa perde (ou ganha) jogando mal. Com o plantel que dispõe, o Real Madrid podia jogar a diferentes tipos de jogo. O seu técnico escolheu um, tão legitimo como os outros, e os números ajudam-no sempre que dão jeito. Mas quando a bola se esconde no meio de tanta precipitação, quando o desespero lhe assalta a consciência e o medo de perder se torna maior do que a certeza de ganhar, Mourinho deixa-se levar pela pressão e abdica de um principio básico da táctica futebolistica. Não assumir a culpa é algo que já ninguém espera dele, mas no fundo o português sabe que as derrotas da sua equipa, como as vitórias, são também (de)mérito seu.