Por um lado os clubes da Scotish Premier League fizeram jus à moralidade do futebol escocês ao rejeitar a inclusão do novo Glasgow Rangers na categoria máxima do futebol na Escócia. Por outro, prepara-se um movimento dissidente da liga para criar uma nova competição do zero com as vagas a ser ocupadas por convite. E o Rangers será o convidado principal desta festa. O país que reinventou o futebol há muito que perdeu o conceito de liga de prestigio. Agora tem de decidir entre a sobrevivência financeira e o desastre moral.
Uma liga à escocesa, discutida entre duas equipas anos sem fim, tornou-se parte da terminologia não oficial do jogo.
Exceptuando os anos 80, em que Aberdeen e Dundee United foram realmente equipas capazes de desafiar os dois grandes de Glasgow, o futebol para lá da muralha de Adriano tem sido coto privado do Old Firm. Séries de uma década consecutiva de títulos de um só clube ajudam a explicar bem o fenómeno curioso de um país que recebeu o futebol das planícies inglesas e transformou-o por completo na sua infância. Escócia ensinou o resto do Mundo uma forma de jogar que se afastava do ideário original inglês e na viragem do século XX a cidade de Glasgow não tinha só três dos maiores estádios do Mundo, tinha também três dos maiores clubes.
Mas o Queens Park desapareceu e com o passar dos anos a Celtic e Rangers passou a ser difícil combater o poderio financeiro dos rivais britânicos. A nova Champions League marcou o final da importância da Escócia no futebol europeu, o primeiro país do norte da Europa a vencer a Taça dos Campeões, em 1967, e reduziu a liga escocesa a quatro jogos ao ano, a repetição do Old Firm nesse formato original de todos contra todos quatro vezes ao ano. Os negócios televisivos dependiam sobretudo desses duelos, os sponsors, inversores e o próprio público vivia o ano para poder desfrutar desses 360 minutos de futebol.
No meio dessa dependência, a falência definitiva dos protestantes da cidade portuária coloca o futebol da Escócia em cheque. O clube desapareceu do mapa e foi refundado, com o mesmo nome, mas forçado a competir a partir da Third Division, o quarto escalão do futebol escocês, o berço do amadorismo das Highlands. A situação do Rangers não é particularmente distinta à do Parma, Fiorentina ou Nápoles, casos similares que nos últimos 10 anos abalaram o futebol italiano. Mas nenhum desses clubes significa o mesmo para o Calcio que o Rangers para a SPL. Num acto de desespero, os novos donos do clube tentaram comprar as acções do antigo Rangers, o que significava ocupar o seu lugar na primeira divisão. Numa reunião dos restantes clubes, a proposta foi vetada. A liga escocesa cometia hara-kiri financeiro mas mantinha os seus padrões morais bem altos.
É dificil entender num mundo desportivo a ausência de rivalidades que são, de certa forma, a mecânica do próprio jogo.
As grandes rivalidades são as que fazem crescer as competições, as que alimentam ilusões, adeptos, imprensa e todo o mundo que se move à volta do futebol. Quando a Juventus voltou do inferno da Serie B, os adeptos do AC Milan, o seu grande rival, receberam-nos com uma tarja que só dizia "Isto não é o mesmo sem vocês!". Em Espanha ninguém pensaria numa liga sem Real Madrid ou Barcelona, em Portugal ninguém se atreveria a despromover SL Benfica ou FC Porto e mesmo em países como Inglaterra, onde há campeões europeus a disputar o Championship, a tradição joga um papel fundamental. Do outro lado do Atlântico, na Argentina, criou-se um sistema rudimentar para evitar a despromoção dos grandes e mesmo quando, nem assim, o River Plate se salvou do abismo, tentou-se tudo até ao último dia para revogar uma decisão estabelecida no próprio tapete verde.
O Rangers acabou porque foi um dos clubes piores geridos da história do futebol. Num país sem mercado, viveu-se acima das expectativas demasiadas vezes e os azuis foram até ao extremo. A mesma situação talvez que o Leeds United, outro grande a passar horas de amargura, mas que não significou a despromoção efectiva no terreno de jogo porque o abismo entre clubes continua a ser imenso. A razão - e por razão entendemos os aspectos financeiros - diz que sem o Glasgow Rangers na elite durante quatro anos, o futebol profissional escocês pode estar perto do fim, tal como o conhecemos. Não apenas porque não haverá discussão pelo titulo mas porque a injecção de dinheiro, já de por si escassa, acabará e a maioria dos clubes poderá ter que fechar portas. Com os dois grandes de Glasgow na liga o dinheiro chega a todos e permite que clubes em situações problemáticas se mantenham vivos. E no entanto foram esses mesmos clubes que votaram contra o regresso do novo Rangers. Uma decisão moralmente perfeita que espelha bem a natureza de uns povos face a outros. Despromovido porque tinha de o ser, de acordo com a legislação em vigor, o Rangers não pode estar acima da lei apenas pelo que representa. Ou então não haveria lei. Por muito que doa ao bolso e às emoções do futebol na Escócia.
E no entanto, como é previsível, isto não acaba aqui. Aqueles que dependem do dinheiro para manter-se vivos no negócio, aqueles que trocam a moralidade do jogo pela amoralidade do cartão de crédito, procuram agora alternativas. A mais forte seria a da criação de uma nova prova, independente da liga ou da federação, num principio, funcionando por convite. O convite seria enviado a todos os clubes que estão actualmente na SPL, incluindo o Rangers. Inicialmente o grupo por detrás da iniciativa, fortemente ligado ao Celtic Glasgow - o clube que mais tem a perder, paradoxalmente, com esta situação - ponderou não convidar aqueles que vetaram o regresso dos protestantes mas numa medida de conciliação a ideia é, pura e simplesmente, de clonar a Scotish Premier League num novo formato, acima da lei.
Esta novela está só nos primeiros capitulos e ninguém é capaz de antever, com claridade, como irá terminar. Se a moral do jogo, que a maioria esmagadora dos adeptos escoceses defende a capa e espada, prevalecer, o novo Rangers terá de cumprir com a sua particular via crucis antes de voltar à elite. Mas com o contrato televisivo com a Sky por assinar e o fantasma da crise internacional sobre as suas cabeças, o dinheiro poderá falar mais alto e a lei talvez acabe por ser guardada numa gaveta de tão incómoda que ás vezes é!