Não deixa de ser paradoxal que o clube mais bem sucedido do futebol espanhol esteja há mais de uma década a remar contra a ideologia que trouxe os maiores triunfos e elogios ao futebol do país vizinho. Mas a chegada de Florentino Perez provocou uma profunda mudança na mentalidade desportiva do Real Madrid, o primeiro clube de topo do futebol mundial a utilizar a sua cantera como fonte de negócio rentável.
Cantera, cantera e cantera.
O futebol espanhol não se cansa de repetir, de peito feito, a palavra que está por detrás da base dos últimos titulos logrados. O trabalho de formação do futebol espanhol foi fundamental para o salto qualitativo que, a final dos anos 90, a esmagadora maioria dos clubes espanhóis deu. Hoje é sinónimo da politica de sucesso do FC Barcelona (com alguns pontos negros que analisaremos nos próximos dias), mas também do Espanyol, Villareal, Real Sociedad, do Sevilla, do Athletic Bilbao, do Rayo Vallecano e com clubes que a utilizam menos do que deveriam, casos de Valência, Atlético de Madrid ou Mallorca. É o que está por detrás da mutação táctica do futebolista espanhol, da politica de valores morais que alterou profundamente o rosto do desportista do país vizinho. E no entanto, para o Real Madrid, o mesmo da geração dos Ye´s-Ye´s (campeão europeu em 1966) ou da Quinta del Buitre, a cantera tem outro objectivo: nutrir os cofres do clube.
Desde 2000 até agora, época em que começou o episódio galáctico de Florentino Perez (com um breve hiato de três anos de Ramon Calderon), só Iker Casillas cumpriu o sonho de tornar-se em figura importante do plantel principal depois de ter sido promovido de forma directamente do Real Madrid Castilla, a única equipa B da história que disputou uma final da taça do seu país, em 1980, contra o próprio Real Madrid. Mais ninguém!
La Fabrica, como Di Stefano baptizou as camadas de formação dos merengues, tal como La Masia, não deixa de produzir ano atrás ano novos talentos, dignos de entrar nos quadros da maioria dos clubes do futebol mundial. E porque é que em Madrid não há espaço para o producto local? Onde vão todos estes talentos? A resposta está espalhada um pouco por esse mundo fora.
Roberto Soldado, dianteiro internacional do Valencia. Juan Mata, campeão europeu com o Chelsea. Alvaro Negredo, campeão europeu do Sevilla. Juanfran, vencedor da Europe League com o Atlético de Madrid. Rodrigo, Ruben de la Red, Javier Portillo, Miguel Torres, Pablo Sarabia, Diego Lopez, Esteban Granero, Alvaro Arbeloa, Javi Garcia, Dani Parejo, Jose Callejon ou Dani Carvajal.
Nomes próprios que o adepto comum conhece mas dificilmente os associa com o clube da capital.
Salvo os casos de Arbeloa, Granero e Callejon, recomprados nos últimos anos por 7,5 milhões no total, a totalidade dos restantes jogadores (a lista completa inclui outros 20 nomes que disputam as principais ligas da Europa) vestiu apenas de forma ocasional, a camisola do Real Madrid. O caso mais paradigmático foi o de Negredo. Vendido ao Almeria com opção de recompra, prática habitual dos clubes espanhóis, foi adquirido pelo clube no último dia do prazo depois de dois anos de excelente rendimento. O objectivo: revendê-lo ao Sevilla de forma definitiva.
Desde 2000 até hoje, o Real Madrid vendeu um plantel inteiro de jogadores formados na sua casa por valores que rondam os 80 milhões de euros. Um valor que não chega sequer aos 100 milhões gastos em Cristiano Ronaldo mas que têm sido fundamentais para equilibrar as contas do clube. Anualmente o clube logra receber entre 5 a 12 milhões de euros vendendo apenas jogadores do Castilla, números que muitos clubes são incapazes de igualar se falamos em jogadores do seu plantel principal. Ao contrário do Barcelona, que procura colocar no plantel principal anualmente jogadores da sua cantera, Iker Casillas ainda espera sucessor.
Com a saída de Raul Gonzalez e Guti, é o último porta-estandarte da formação e não perpectiva um sucessor nos próximos tempos. Originalmente o pretexto estava na divisão por onde jogavam os jogadores do Castilla, a Segunda Divisão B. Mas durante a mesma década o clube esteve por duas vezes (foi promovido este ano) na Liga Adelante, motivo que não foi suficiente para aproveitar algumas das suas mais valias. Os adeptos merengues, habituados a ver os mais sonantes jogadores do futebol mundial, sentem agora a diferença com o projecto do Barcelona e pedem mais jogadores da casa na primeira equipa. Mas a verdade é que esse fenómeno é bastante recente e no primeiro mandato de Perez eram vários os que defendiam a politica de vender cantera para comprar com a "cartera llena", os Figo, Zidane, Ronaldo, Beckham e companhia.
Os homens do clube defendem que cada venda conta com uma opção de recompra a baixo preço (usada nos casos supracitados) e que se um jogador desponta o Real sempre pode recuperá-lo. Mas a verdade é que esses casos têm sido pontuais. E com o fantasma da regra do 6+5 que a UEFA tanto quer fazer valer, há algo nesta politica desportiva que terá de mudar para que, finalmente, os "milros" do Castilla possam sentir na pele o verdadeiro peso da camisola branca.