Há poucos desportistas feitos deste material tão humano e cristalino. Desportistas que não competem para humilhar, para superar records ou para gabar-se de isto ou aquilo. Desportistas que leva bem à letra a ideia que está por detrás de tudo isto que se chamam competir, saber ganhar e perder, sobretudo, saber ganhar. Iker Casillas é uma ave rara num mundo cada vez mais marcado pela cobiça. Apanhado pelas câmaras televisivas, o seu gesto não surpreende quem o conhece mas deixa claro que há mais do que tácticas e sorte por detrás das recentes vitórias do futebol espanhol. Há, sobretudo, um humanismo desportista que deixaria orgulho o próprio Pierre de Coubertin.
Gestos de fair play no futebol contam-se pelas mãos.
Não falo apenas de deitar a bola fora quando um jogador está lesionado porque isso, além de hoje ser quase obrigatório, é fácil e está ao alcance de qualquer um. A grandeza mede-se por outros actos, outros gestos, outros momentos. Há episódios perdidos no tempo, dos aplausos de Eusébio a Lev Yashin à atitude de Paolo di Canio num mitico jogo com a camisola do West Ham United ao peito. Sempre os houve porque sempre houve desportistas humanos no jogo. Mas eles têm-se tornado aves raras, desconhecidos num bosque onde a cor das chuteiras e os penteados para chamar a atenção, onde a cobiça pessoal e o insulto fácil se tornaram no básico da linguagem futebolistica.
Hoje os grandes idolos de massas são bem distintos aos de há largas décadas atrás. Impera o modelo mediático juvenil, uma etapa da vida onde os conceitos humanos ainda não estão assumidos porque, na maioria das vezes, é preciso viver para entender a vida e miudos de 13 ou 18 anos sabem pouco de desporto e de existir. Para essa esmagadora maioria a fome de recordes, em prejuizo tantas vezes do colectivo, é o importante e eles querem ser Ronaldo, e querem ser Neymar e querem ser Messi, jogadores que tentam disfarçar com agências de comunicação por detrás (um melhor que outro) mas que estão nisto para alcançar a glória pessoal como Aquiles liderava os seus Mirmidões para subir ao Olimpo dos heróis. Para esses nomes, os herdeiros de Pelé e Maradona, o futebol é um duelo contra a história e tudo o que se mete pelo seu caminho é ultrapassável. São os individuos num jogo de massas, são os heróis de papel de barro, aqueles que levaram o cinismo e o pragmatismo onde antes havia um aperto de mão e uma palmada nas costas.
Gritos racistas, insultos, desprezo pelos rivais, tudo isso se vive hoje nos relvados com alarmente naturalidade. Num espaço rectângular onde Iker Casillas deve sentir mais só do que muitos se imaginam.
O guarda-redes espanhol é o rosto da nova Espanha.
Se é certo que a selecção espanhola chegava muitas vezes aos torneios internacionais com o papel de favorita ou surpresa, muito desse discurso vinha de dentro, da própria geração de jogadores - que não desportistas - que se esqueciam que para ganhar era preciso algo mais que talento e sorte. Faltava-lhes a humanidade, a mesma que ajudou o Brasil a ser o que é, a mesma que explica os eternos conflitos na selecção holandesa ou portuguesa, selecções onde o eu sempre falou mais alto que o nós. Espanha aprendeu a falar em "nosotros" depois de muito tempo desse asfixiante "yo" e fê-lo com uma geração que nasceu depois da complexa Transicion e que cresceu no meio de um país em mutação politica, económica e social. Sobretudo, moral.
A atitude dos jogadores espanhóis de hoje (e isso é alastrável a outras modalidades) está na base do seu sucesso. Não só a vontade de ganhar sempre, mas sobretudo a forma como procuram a vitória. A humanidade que se sente nesse grupo, desde 2008, é provavelmente um motivo de orgulho maior do que os titulos coleccionados ano após ano. Jogadores como Xabi Alonso, Andrés Iniesta, Fernando Torres, David Villa, Juan Mata, Charles Puyol e, sobretudo, Iker Casillas, são esse espelho reflexo de uma equipa que entende o futebol como um desporto genuino e que procura transmitir na idade adulta a mesma paixão e ilusão que encontramos no olhar de um miudo que chuta a primeira coisa que vê a rolar num pátio ou praça do Mundo. Casillas tem sido o capitão e lider espiritual deste projecto. Mais do que ser o melhor guarda-redes do Mundo, um titulo que divide com Gianluigi Buffon desde há anos sem fim, é sobretudo um capitão moral, sempre com uma palavra de elogio para o rival, sempre com um alerta efusivo para os colegas e sempre com um olho na glória e outro no respeito. Um jogador que não se esquece de aplaudir os adeptos que fazem milhares de quilometros, o jogador que quebra o protocolo para beijar a mulher que ama num momento de genuina naturalidade, um jogador que se nega a entrar em guerras alheias para por em questão amizades antes.
As imagens televisivas falam por si. Onde outros jogadores, outros galardoados com o Ballon D´Or, procurariam os últimos minutos de uma final, já de por si histórica, para marcar, marcar e marcar e assim aumentar a sua lenda pessoal, o seu prestigio, o seu cachet, o seu lugar no Olimpo, um jogador, mais do que isso, um lider, aproximou-se do árbitro quase irritado com o tempo de desconto anunciado e pede respeito. Respeito não para ele mas para o rival. Para uma selecção extraordinária que perdia por 4-0 e continuava aí, com dez homens, de cabeça levantada. Respeito para um país que sempre foi a sua besta negra, até 2008, e que nunca tinham vencido. Respeito para o mundo do futebol, para os milhões de italianos que seguiam o jogo pela televisão, para o seu rival Buffon, para todos nós. Casillas pedia humanidade para esse mundo futebolistico entregue ao pensamento mercenário dos grandes guerreiros e fracos homens.
O gesto do capitão espanhol define-o como futebolista, como desportista e como Homem. Define o conceito de fair play num grande palco como há larguissimos anos não se via. Define a imagem do lider geracional de um projecto que ainda tem anos pela frente. Relembra o gesto de Puyol na celebração de Dani Alves e Thiago Alcântara na goleada em Vallecas. Relembra o sorriso timido de Iniesta quando o comparam com Zidane, o gesto sério de Alonso quando falam dele como maestro do Real Madrid ou a cara de Mata quando agradece a assistência de golo ao homem que defendeu durante todo o ano das criticas e que nesse momento da posteridade se lembrou que vale mais um amigo que um golo num jogo de futebol. Relembra porque é que esta selecção espanhola vale o vale, mais do que questões futebolisticas, e relembra porque é que prémios como o FIFA Ballon D´Or cada vez valem menos. Porque, chegados a Dezembro, ninguém se vai lembrar do gesto de San Iker e a maioria continuará dividida entre a luta asfixiante de golos entre Messi e Ronaldo, entre os penteados, as chuteiras, as celebrações, os gritos de "eu" num desporto que, como Casillas não nos deixa esquecer, ainda é coisa de todos "nós"...