O perfume do futebol francês é composto por uma fragrância especial que só se gera em momentos como este. Um clube modesto como o Montpellier vence uma longa maratona a formações que gastam o que não têm para levar para casa o ambicionado troféu. Algo inimaginável em ligas mais fortes como Inglaterra, Itália e Espanha e extremamente difíceis em campeonatos bipolares como o português. Em França, é a regra. Salvo a ditadura do Marseille de Tapie e do Lyon de Aulas, o futebol francês engrandece-se a cada ano que surge um novo Montpeliler. Um titulo que não só eleva às alturas um pequeno clube mas que define a filosofia desportiva de todo um país.
Lille, Bordeaux, Nantes, Lens, Monaco, Auxerre.
Nos últimos 20 anos do futebol gaulês todos estes modestos clubes sagraram-se campeões nacionais. Salvo o PSG, sempre apoiado por investidores que gostariam de ter um clube de prestigio na capital gaulesa, e o dinheiro que moldou o Marseille e Lyon modernos, a liga de França está aberta a todos, sempre e quando o projecto tenha cabeça, tronco e membros.
René Girard, veterano de muitas batalhas no terreno de jogo, soube coordenar esse projecto de forma singular. Uma equipa jovem, barata, com muitos jogadores comprados a clubes de divisões inferiores a preço de saldo, o seu Montpellier é um verdadeiro caso de sucesso. Há dois anos já tinha mostrado que era um projecto de futuro. Na altura saiu Tino Costa, o líder espiritual da equipa, e depois de um ano de natural perda de rendimento, o clube voltou à mó de cima, entregue aos golos de Olivier Giroud e à magia pura de Yonnes Belhanda, os dois nomes próprios do titulo alcançado, curiosamente, contra outro clube pequeno que já foi campeão e que agora se junta a Lens, Nantes e Monaco na segunda divisão. Em França o difícil não é vencer um titulo, é saber manter-se fiel a si mesmo.
Ao Montpellier depara-se esse desafio porque quando o dinheiro falar mais alto e os seus grandes nomes saírem, será complicado equilibrar os objectivos dos adeptos com o realismo económico que já causou tantas baixas no passado. Ao contrário do seu rival nesta corrida, o PSG, não há dinheiro para loucuras e seguramente que o próximo ano será quase impossível revalidar o titulo. Nem o Lille, com um futebol mais vistoso e sem ter perdido algumas das suas pérolas, conseguiu manter esse ritmo que desde os sete títulos consecutivos do Lyon nenhum clube soube emular. Manter o troféu em casa.
O PSG acabou por ser o grande derrotado. Nem Ancelloti, nem os milhões injectados no clube por um consórcio árabe com interesses na capital gaulesa serviu para recuperar um titulo que foi ganho pela última vez em 1994. As chegadas de Sirigu, Menez, Pastore, Gameiro e companhia foram insuficientes, apesar do bom futebol praticado os parisinos claudicaram demasiadas vezes e nunca souberam aproveitar as escorregadelas do rival. Regressar à Champions League pode ser o primeiro passo da metamorfose definitiva de uma equipa que irá gastar ainda mais no próximo verão e que, seguramente, é o grande candidato ao titulo do próximo ano.
Desilusões absolutas, Marseille e Lyon seguem a linha descendente, o outro lado do elevador onde sobem os parisinos.
Apesar do dinheiro disponível, a equipa lionesa foi incapaz de qualificar-se pela primeira vez numa década para a Champions League, prova onde teve uma prestação cinzenta, caindo nos Oitavos de Final diante do APOEL. Lisandro, Gomis e companhia foram inconsequentes durante a grande parte da temporada e Remy Garde, o jovem técnico promovido por Aulas, terá muita dificuldade em convencer um presidente tão habituado a ganhar que o seu projecto é de longo prazo, explorando a formação local que ele ajudou a desenhar. Em Marselha o lugar de Deschamps está também em causa depois de terminar a temporada num desolador 10º posto.
Lille, campeão em titulo, e um renascido Girondins Bordeaux tiveram provas tranquilas e positivas, apesar do falhanço dos homens de Rudi Garcia em manter a coroa e a quase inevitável despedida de Eden Hazard do clube nortenho. As grandes sensações da prova acabaram mesmo por ser o histórico Saint-Ettiene, sexto na classificação geral, e o modesto Evian FC, promovido esta época e capaz de realizar um campeonato surpreendente que nunca o manteve demasiado longe dos lugares europeus.
Do outro lado do espelho, se as despromoções de Ajaccio e Dijon eram previsiveis, custa ver outro histórico como o Auxerre cair no poço da Ligue 2, seguindo o exemplo negativo de outros campeões recentes.
Jogador do Ano
Yohnes Belhanda
O franco-marroquino foi a alma e o corpo da épica campanha do Montpellier. Com a bola nos pés respirou o cuidado jogo táctico montado por Girard e fez rodar à volta o carrosel de um colectivo sem estrelas mas com um indice de trabalho irrepetivel. Como Hazard em Lille ou Gourcouff em Bordeaux, o jovem que preferiu ser internacional com o país dos seus pais, Marrocos, é o porta-estandarte de um modelo de clube campeão que só encontramos com regularidade numa liga tão competitiva como a gaulesa. Os seus 12 golos e as mais de 17 assistências foram o ponto de partida para uma época irrepetível que já o colocou, definitivamente, no escaparate do futebol internacional.
Revelação do Ano
Blaise Matuidi
Quando aterrou em Paris como sucessor a longo prazo do "polvo" Makelelé, a jovem promessa que tinha despontado no Saint-Ettiene, talvez não imaginasse que o seu impacto fosse tão imediato. Mas a grande época do clube parisino tem muito a ver com a capacidade do possante médio defensivo de equilibrar um conjunto com uma fortissima ala dianteira (Nené, Gameiro, Pastore, Menez) e com uma defesa tremendamente eficaz. No miolo Matuidi fez para Ancelotti o mesmo papel que este entregou a Gattuso no seu Milan com um sucesso espantoso, dele é seguramente o futuro dos "Bleus".
Onze do Ano
Desconhecido no futebol gaulês até há dois anos, esta foi a época de confirmção de Geoffrey Jourden, guarda-redes do campeão Montpellier que, com Ruffier e Carrasco, demonstra que Laurent Blanc tem por onde escolher para acompanhar a Lloris e Mandanda nas aventuras dos Bleus.
Época excelente do lateral Mapou Mbiwa (Montpellier) no lado direito e de Faouzi Ghoulam (Saint Ettiene) pela esquerda. No miolo do eixo defensivo os eleitos são Nicolas Nkolou, imenso apesar da época cinzenta do Marseille e Frank Beria, do Lille.
Belhanda e Hazard partilham o trabalho criativo do meio-campo deste onze ideal da Ligue 1, dois jogadores jovens de excelência com épocas memoráveis. Acompanham-nos o incansável Yann Mvilla, lider do Stade-Rennais.
Olivier Giroud, o avançado de moda do futebol gaulês, lidera o trio de ataque, bem acompanhado pelos golos de Nené (PSG) e Pierre Aubameyeng, jovem dianteiro gabonês do Saint-Ettiene.
Treinador do Ano
René Girard
Apesar da Ligue 1 ter um importante historial de vencedores surpreendentes, de equipas de pequeno orçamento que conseguem vencer a maratona da regularidade, tem sido cada vez mais dificil contrariar o imenso investimento financeiro que Lyon, PSG e Marseille têm feito na última década. O triunfo do Montpellier tem pouco a ver com a vitória de Bordeaux e Lille, dois históricos com um técnico e um plantel de luxo, e mais com o trabalho de fundo da formação e hábil pesquisa de mercado dos directivos dos homens do Le Herault. E claro, com a liderança absoluta de René Girard, antiga estrela da França dos anos 80 que encontrou a forma ideal para coordenar uma formação jovem, talentosa e com um espirito de luta épico que aguentou, até ao suspiro final, o acosso do milionário PSG.