Há jogadores com um dom especial para transformar um acto de pura rotina em algo profundamente próximo ao universo artístico. Radamel Falcao é um desses génios. O colombiano é mais do que o melhor avançado do mundo na actualidade, mais do que um devorador de balizas alheias e que um instigador de sonhos. É um futebolista que sozinho parece valer mais do que um colectivo mas que dentro do rectângulo de jogo sabe trabalhar como um mais. Em Bucareste entregou de bandeja o titulo da Europe League a um Atlético de Madrid que este ano tem-se repetido nos tropeções emocionais que o caracterizam historicamente. No seu dianteiro os colchoneros encontraram um psicanalista eficaz, capaz de os retirar da depressão profunda com a genialidade de quem apenas cumpre a sua missão.
José Mourinho declarou recentemente numa entrevista que não via no Chelsea e no Bayern Munchen um jogador válido para vencer o próximo Ballon D´Or. Esqueceu-se seguramente de Drogba, Robben, Lampard, Ribery, Mata ou Schweinsteiger. Também se esqueceu que este ano temos um Europeu e todos sabemos como estas provas de um mês tantas vezes elevam à glória jogadores que vivem os outros nove na mais profunda mediania. Para ele o prémio só podia ser discutido entre Lionel Messi e Cristiano Ronaldo e como o segundo, além de seu jogador, venceu a Liga BBVA, então seria obrigatório entregar-lhe o prémio. Ronaldo pode até ganhar o seu segundo Ballon D´Or, ninguém se surpreenderia muito. Mas o técnico sadino esqueceu-se de Radamel Falcao, talvez o jogador mais digno de receber o galardão. Porque ao contrário de Messi e Ronaldo, o colombiano sim encarna a figura do indivíduo num desporto profundamente colectivo, do homem que todos sabem que irá fazer realmente a diferença.
Falcao já é, a um jogo do final da liga espanhola, o estreante com mais golos marcados na prova na sua época de estreia. Nem Messi, nem Cristiano Ronaldo, nem Zidane, nem Ronaldo, nem Hugo Sanchez, nem van Nistelrooy, nem Bebeto, nem Romário, nem, nem, nem. Nenhum jogador marcou tantos golos no primeiro ano como jogador da liga do país vizinho. Os números estratosféricos de Messi e Ronaldo escondem multiplas realidades e a de Falcao é a mais gritante. O colombiano joga num clube que pode terminar o ano fora dos postos europeus, um clube que mudou de treinador a meio do ano, um clube que vive em constante carambola emocional, que ora goleia um rival directo como perde quatro semanas consecutivas com equipas de outro campeonato. No Vicente Calderon a equipa nunca joga para o individuo e muitas vezes as estrelas atropelam-se entre si para terem os seus cinco minutos de fama. Sobreviver neste caos é algo que não está ao alcance de muitos e a paciência de Aguero, Torres e Forlan foi testada até ao limite tantas vezes que voluntariamente procuraram calma e sucesso noutras paragens. Ser Falcao neste cenário é algo profundamente complexo, quase impossível. E no entanto, aí está ele, de novo, nas estrelas. Pelo segundo ano consecutivo foi o artífice da vitória na Europe League. Se o Athletic Bilbao tinha sido a melhor equipa ao largo do torneio, o Atlético foi muito superior na final. Porque tinha Falcao. Não foram só os dois golos imensos, a juntar ao apontado na final do ano passado em Dublin. Não foi só o imenso trabalho táctico de protecção de bola, de prisão táctica dos centrais de Bielsa. Foi algo mais. Esse espírito de liderança que só em noites como esta parece realmente fazer-se sentir. No colombiano o Atletico encontrou um lider espiritual, um profeta de acalmia. E entregou-se a ele sabendo que as águas do mar vermelho se abririam para o cortejo passar.
Falcao é, sem dúvida, o melhor dianteiro do futebol mundial.
Não existe outro jogador que se possa comparar ao colombiano em destreza, agilidade e precisão de movimentos na grande área. Mas o seu futebol é muito mais completo e artístico. Recebe, dá, segura e mata com a precisão de um cirurgião mas com delicadeza de um pintor, preparado a emular o seu momento de glória com a melhor das telas. A bola nos pés de Falcao respira outra linguagem. No jogo das meias-finais, no Calderon, recebeu um alivio ansioso de um defesa e no meio de três rivais encontrou a comodidade necessária para correr, driblar, fintar, parar e rematar sem levantar a cabeça do chão. O golo não foi mais do que uma inevitabilidade da sua condição divinal.
Em 2001 o inglês Michael Owen venceu o Ballon D´Or depois de um ano em que conquistou a Taça UEFA (numa final asfixiante contra o Alavés onde nem foi o melhor em campo), a Taça da Liga e a FA Cup. Bateu o espanhol Raul, que tinha vencido a liga espanhola, e o alemão Oliver Kahn, campeão da Europa com o Bayern Munchen. Foi a última vez que um jogador levou para casa o troféu sem ter vencido no ano uma grande competição. Nedved, Schevchenko, Ronaldinho e Messi foram campeões nacionais. Ronaldo, Cannavaro campeões do mundo. E Kaká, Cristiano Ronaldo e Messi, por duas vezes, ganhadores da Champions League. A importância dada a uma Europe League nunca pareceu ser suficiente para lograr vencer estes prémios individuais, mais numa época onde o mundo vive o confronto ideológico moral de escolher entre Messi ou Ronaldo quase de forma forçada, como diz Mourinho.
Mas Owen era em 2001 um fenómeno como Falcao é hoje. Depois desse ano o seu rendimento baixou até acabar no jogador de hoje, perdido entre lesões e experiências clubísticas desastrosas. O colombiano não é uma novidade, o que logrou este ano já o demonstrou no ano passado ao serviço do FC Porto e na Argentina os hinchas do River Plate sabem bem de que matérias é feito. Se tivesse nascido argentino, como diria Hugo Sanchez pensando em Maradona, talvez os elogios fossem ainda maiores. Se tivesse jogado um pouco mais a norte em Madrid, talvez hoje fosse tratado de outra forma. Mas no Calderon, como no Dragão, o valor de ser Falcao é ainda maior e talvez por isso o seu mérito individual mais gritante.
Da mesma forma que os adeptos do FC Porto sabiam que um jogador como o colombiano estaria de passagem, em Madrid começam a dar-se conta de que talvez para o ano que vem Radamel esteja a costurar golos por outras paragens. É um percurso inevitável para um homem que vende aquilo que mais se valoriza no mundo do futebol. Entre os grandes de Espanha e a Premier está o futuro de um jogador que só precisa de um clube com mais prestigio e melhor marketing para falar de tu a tu com os Ballon´s D´Or no activo. Se já tivessem tido a honestidade mental de dar-lhe o prémio por antecipado, talvez a lógica de um jogo de onze contra onze onde há sempre um que brilha mais forte faça mais sentido do que nunca.