Há poucos paises no Mundo como a Itália. Uma mistura sublime de beleza natural, humana, de gentes afáveis e história a cada pedra que se calca. É também um dos países mais sujos, desorganizados, inseguros e irrespiráveis que conheço. O Calcio italiano não dista, como tudo no "belle paise", desde o seu capuccino ás suas voluptuosas mulheres, dessa realidade bipolar. Mas como a politica, a justiça e a económia, o futebol italiano também há muito que vive numa terra de ninguém, anárquica, corrupta e sem amor próprio. A decadência da Serie A é evidente e já não apenas nos números. O triste número montado pelos Ultras do Genoa exemplifica perfeitamente o estado de sitio moral em que senta o futebol no país da bota.
Os jogadores choram. De vergonha, de medo. Sabem o que lhes irá acontecer. Em Itália ninguém, nem mesmo o mais carismático idolo, se atreve a contrariar os Ultra.
É uma triste realidade que se vive em poucos países, talvez só a italianizada Argentina sinta a mesma dor, o mesmo buraco na alma, com o triste mas real fenómeno dos Barras Bravas. A violência no Calcio não é tão evidente, não é tão intensa, mas está lá, no mais brutal dos gestos, no mais ensurdecedor dos silencios. Os jogadores sabem-no, os directivos sabem-no e os adeptos neutrais também. Mas como sempre o italiano assobia para o lado, lança um piropo e continua a sua vida. Aqui não passa nada, nada que seja com ele.
Imagino os adeptos neutrais, pelo menos os adeptos que não roçam a loucura facciosa e suicida que compõe o complexo fenómeno dos Ultra. Quando os anos 80 radicalizou a figura dos grupos de apoio organizados, quando o dinheiro das mafias locais e o compadrio das directivas familiares lhes deram uma fatia do poder, o Ultra deixou de ser um sinónimo de apoio incondicional à inglesa para passar a ser mais um braço armado e corrupto, pronto a ficar com uma fatia do bolo em nome do amor ao clube. Em Roma a Lázio há anos que não consegue um acordo publicitário digno do seu valor de mercado porque preferiu entregar o monopólio da comercialização do seu merchandising à directiva dos seus temidos Ultras. Todos sabem isso, poucos querem falar disso e ninguém se queixa. Porque, caso contrário, há muito que os péssimos resultados desportivos da era pós-Cragnotti teriam provocado lutas, invasões de campo e ataques directivos aos directivos e jogadores. O dinheiro paga o silêncio. Em Roma, em Milão, em Turim, em Napoles, em Palermo, de norte a sul o futebol italiano há muito que se tornou alvo de escárnio. A péssima qualidade de jogo, as fracas performances das equipas, a falta de estrelas e os problemas relacionados com o doping e as apostas são apenas a ponta de um iceberg muito mais profundo e assustador. Há largos anos que o Calcio sobrevive na anarquia. Como a que levou à suspensão do Genoa-Siena.
Os homens da Toscânia venciam por 0-4, um triunfo categórico, indiscutivel e perfeitamente evitável tal era a superioridade teórica inicial do onze genovês. Mas o futebol é assim, cheio de rasteiras e tardes de bruxas e num duelo de rivais directos tudo pode suceder. Tudo ocorreu depressa demais para a habitual lentidão italiana. Ao minuto 54 Alberto Malesani lançou o georgiano Kaladze para o relvado. Um defesa por um avançado, com um 0-4 no marcador e a linha de água no pescoço. O grupo de Ultras sentiu que tinha a legitimidade moral para fazer-se ouvir mais do que manifestar-se nas bancadas. À boa maneira italiana, pressentiu correctamente que, fizessem o que fizessem, sairiam impunes. Lembrando-me de um Roma-Lazio de há largos anos, onde o rumor falso da morte de um adepto levou o próprio Totti a servir de correio com o árbitro face às exigências dos Ultras da AS Roma, é fácil perceber porquê.
Os lideres do movimento, os que mais lucram com os negócios paralelos feitos ás escondidas com a directiva, entraram no relvado e num gesto de humilhação moral exigiram a camisola dos jogadores. Estes sabiam a que se arriscavam se negassem. Provavelmente ataques ás suas casas, ás suas familias, aos seus carros, uma transferência apressada e pela porta pequena em Junho e o medo no corpo para sempre. É assim que funciona o Calcio e foi esse fantasma bem real que levou a que o capitão genovês, Marco Rossi, a recolher as camisolas e entregá-las como despojos. Claro que as barreiras das bancadas foram abertas com a autorização da directiva e que a pantomina montada entre lágrimas e suspiros pareceu mais assustadora para fora do que realmente foi dentro do relvado. Os jogadores do Siena sairam imaculados do relvado, tal como a equipa arbitral e o jogo prosseguiu, 40 minutos depois, com os Ultras, esses apoiantes incondicionais, de costas para o relvado. O resultado, 1-4, condenou o Genoa a cair mais dois postos na tabela, a ser ultrapassado pelo próprio Siena e a dormir no 17º lugar, apenas dois pontos à frente do Lecce com cinco jogos para o final. Foi o pretexto ideal para Alberto Malesani ser despedido, de novo, nesse habitual circo italiano de treinadores que orientam a equipa mais do que uma vez ao ano. Na Serie A os casos como o de Malesani são o pão nosso de cada dia do norte ao sul e ninguém acredita que o homem que os Ultras juraram expulsar do clube não volte algum dia a sentir-se no Luigi Ferrari. Noutro tempo, noutra época, na mesma crua e triste realidade.
O fenómeno Ultra em Itália é mais perigoso que alguma vez foi o hooliganismo em Inglaterra. Os mais selvagens e animalesco adeptos ingleses formavam-se fora do circulo do clube, existiam á sua margem e acabaram por ser facilmente domados porque nunca exerceram posições de poder real. Em Itália a situação é bem mais complexa. Não há tanta violência exterior mas por dentro os grupos Ultras minam os seus clubes, a liga e o futebol italiano em geral. Estão por detrás do fenómeno das apostas ilegais, alguns são os principais fornecedores de drogas aos jogadores e fazem cair técnicos e estrelas com um estalar de dedos. São eles quem melhor sabe manejar estes dias crueis de anarquia e também são eles em grande parte os responsáveis pelo atraso desportivo e moral em que vive aquela que foi, não há tanto tempo assim, a melhor liga do Mundo. A impunidade dos adeptos do Genoa não é nova nem sequer um exclusivo do clube. Funciona melhor como um espelho da arrogância e da impotência, da impunidade e da injustiça, da falta de escrupulos e do interesse financeiro, nomes dignos dos muitos coveiros que atiram a terra para cima do caixão podre da Serie A.