Se algum dia perdeu alguns breves minutos do seu dia a ouvir um tema interpretado pelo alucinante Charlie Parker Jr, então sabe perfeitamente como joga Arjen Robben. O extremo holandês é no tapete verde a alma do gigante jazzmen em palco. Um talento inigualável que se perde em cada nota auto-destructiva e sublime, uma melodia in crescendi que rasga a alma e deixa a nu toda a pureza do herói solitário. Robben nunca chegou à altura da fama de Messi como Parker acabou eternamente desconsiderado face a Miles Davis. Mas no mundo há sempre aqueles que preferem aos mitos os mais loucos imortais.
O escritor uruguaio Eduardo Galeano dizia que gostava mais de Garrincha do que de Pelé porque acreditava no Homem e não em Deus.
Robben pode nunca ter chegado ao patamar da divindade futebolística por diversos motivos. Mas a sua carreira, como a do "anjo das pernas tortas", é um fiel retrato da genialidade auto-destructiva, pelo carácter e por um corpo inadaptado às exigências da máxima competição desportiva. Em 2007 o presidente do Real Madrid de então, Ramon Calderon (a quem a história nao guardará num lugar digno) declarou que Robben era melhor que Messi. Entre arma eleitoral e orgulho, a frase não era nenhuma mentira. Pelo menos em 2007. Cinco anos depois as carreiras de ambos extremos partiram à mesma velocidade para destinos bem distintos.
O swing de Arjen destroçou as defesas de La Liga antes do regate messianico do argentino, mas as pernas do holandês de cristal foram, desde o primeiro dia, o seu karma pessoal. Um problema que se fazia notar no seu arranque profissional, no modesto Gronigen, e que se prolongou até Munique onde faz sentir os últimos gritos da sua suprema genialidade. Como Charlie Parker, a quem Clint Eastwood e Forrest Whitaker imortalizaram num dos grandes dramas do cinema americano, Bird, a regularidade nunca foi algo que o holandês encontrasse atractivo. Os seus altos e baixos não surpreendiam ninguém e eram, de certa forma, como as explosões de génio e as longas depressões do musico, uma das suas imagens de marca.
Ninguém parece lembrar-se que Arjen Robben tem apenas 28 anos já que há largos anos que muitos vaticinam o seu obituário desportivo tantos tên sido os seus problemas em manter-se na máxima forma. No entanto, quando está na máxima forma, há poucos jogadores que tenham tanto futebol nos pés como o swinger holandês. A forma como o seu corpo balanceia sobre a pista, rompendo com qualquer cânone físico, ainda é uma das imagens mais excitantes do futebol contemporâneo, de tal forma que o seu estilo inimitável, mesmo num país de artistas como é a Holanda, ainda nao encontrou um sucessor à sua altura.
Robben tem este ano talvez a sua última grande oportunidade de sagrar-se campeão europeu.
Nem em Londres, nem em Madrid chegou tão longe como quando aterrou em Munique. O seu compatriota Louis van Gaal entendeu que o génio de Frank Ribery e a arte da improvisação de Robben funcionava melhor virando o mundo ao contrário. Trocou-os de extremo, soltou o diabo Muller e logrou uma época quase perfeita. Robben topou-se com o seu antigo mentor, José Mourinho, e o seu amigo Wesley Sneijder, e no regresso aos céus de Madrid sofreu a mais dura das suas derrotas. Na altura já lhe profetizaram o adeus aos grandes momentos europeus mas dois anos depois eis que aí anda ele, outra vez, á solta, com sonhos de desforra com a história.
A meia-final entre o Chelsea e o Barcelona pode relembrar as polémicas arbitrais recentes. O jogo entre Real Madrid e Bayern Munchen tresanda a futebol por todos os poros. Os merengues foram vitimas da máquina assassina de Franz Beckenbauer e Gerd Muller em 1975 e depois a Quinta del Buitre voltou a sentir na pele o difícil que é defrontar os bávaros na década de 80. Nos últimos dez anos o jogo entre merengues e germânicos tornou-se um clássico da Champions com vencedores para todos os gostos. Para Robben nao é só um reencontro com Madrid e com Mourinho. É uma divida que tem consigo mesmo.
Do jovem que explodiu no Groningen em 2002 sobra pouco. A sua passagem pelo PSV (naquela extraordinária equipa de Guus Hiddink) e depois pelo Chelsea amadureceram o seu jogo e mostraram-no ao mundo como o melhor jogador brasileiro depois de Ronaldinho. Apesar de Robben ser tao branco e holandes como Mark van Bommell, o seu espírito de sambódromo no relvado marco a diferença num Chelsea tantas vezes hermético e trouxe esse toque de classe a uma Holanda sempre bela mas poucas vezes pragmática. A ironia do destino fez com que fosse ele a falhar diante de Iker Casillas o golo que valia um Mundial. A ironia do destino fez com que fossem dele as oportunidades que Julio César mais problemas teve em anular nessa final europeia de Madrid. Esse fantasma, como os concertos interrompidos de Charlie Parker, fazem a Arjen sentir-se como um órfão dos grandes flashes, dos que definem carreiras. O seu espírito competitivo nao lhe permite ser recordado com as mãos agarradas ao joelho ou com a bola a roçar a luva do guarda-redes contrário em lugar de beijar as redes do rival. Comparar-lhe com Messi parecia, em 2007, um elogio ao argentino. Hoje sabemos que se tornou numa maldição para o holandês. A história e os amantes do jogo não têm sido justos com este génio irreverente que eleva o futebol à condição de arte undeground sempre que arranca nessa dança de cadeiras onde sabemos no final que ele nunca ficará de pé.
Fazer jogos com o que seria se é algo extremamente humano e todos os que ouviram Davis e Parker sabem que uma vida mais regrada e uma alma menos pesada do mítico Bird poderia ter sido suficiente para a história o julgar, lado a lado, ao grande ícone do jazz. Mas isso talvez também tivesse retirado essa pitada de genialidade que sempre fez de Parker alguém profundamente distinto dos demais. Robben caminha sobre as mesmas águas turvas, perde-se igualmente nos seus pesadelos e no entanto, quando ressuscita por um segundo, é tão grande como qualquer outro. Cresce sobre a relva, olha para dentro das redes e pinta a bola com a assinatura. Depois, já todos sabemos onde ela vai acabar.