Não acreditar no poder psicológico de uma troca de treinador é não conhecer o futebol como um profundo fenómeno humano. O jogo faz-se de rotinas, de estados de ânimo e, sobretudo, de sensações. O tapete verde espelha o trabalho semanal e mescla o talento genuino com a profunda necessidade de dar um sentido grupal ao colectivo. O sucesso desportivo do Sporting de Sá Pinto no final de temporada explica bem essa realidade e deixa igualmente no ar a legitima dúvida sobre o efeito a longo prazo de uma vitamina de sucesso imediato.
Problemático como jogador, lider como técnico.
Sá Pinto não é o primeiro que, sentado no banco, lê os problemas com a experiência de quem os causou tantas e tantas vezes no passado, para depois analisá-los com a frieza do presente. Johan Cruyff foi talvez um dos jogadores mais conflictivos da história do jogo e o seu papel como treinador espelhou perfeitamente a sua maturidade táctica e humana. Conciliou egos irreconciliáveis e formou uma das melhores e mais bem sucedidas equipas da história. É dificl pensar que este Sporting chegue a esse nível, mas os últimos dois meses com o portuense ao leme de Alvalade têm transformado a equipa verde e branca na revelação da época. Sem ter sequer o quarto lugar assegurado, como se torna isso possível?
Essencialmente o Sporting vive há vários anos a dramática situação de ser um histórico no nome, com as respectivas ambições, mas uma equipa desestruturada da cabeça aos pés para sobreviver num mundo da alta competição onde um rival dá aulas sobre organização desportiva e o outro investe quantidades incomportáveis para manter o ritmo. Ao Sporting desta época, honestamente, não se podia pedir o mesmo que a Benfica e FC Porto porque nem a nova directiva nem a nova equipa técnica, de Domingos Paciência, tinha armas para lutar de igual para igual.
Um plantel radicalmente novo, um novo lider e uma nova gestão desportiva exigem um pensamento a longo prazo.
Mas o Sporting é o que é também porque a nivel de gestão tem uma profunda tendência ao desespero imediato e depois de uma série de tropeções que não espelhavam tanto a forma de jogar da equipa mas sim a incapacidade de coordenar tantas caras novas em tão pouco tempo, a Domingos foi-lhe aberta a porta da rua. O enésimo técnico na última década a sofrer do espirito de hara-kiri leonino podia até suspeitar que o final de temporada seria sempre melhor, nem que seja pelo maior entrosamento entre treinador e equipa, e entre os veteranos e as novas incorporações. Mas o papel psicológico da novidade no futebol tem um poder dificil de negligenciar. São raras as vezes que uma troca de técnico empeora uma situação e quando isso sucede, está claro que há problemas tão graves, dentro e fora do balneário, que não há capacidade humana para superar. Domingos podia alegar que sabia perfeitamente o que Schaars, Elias, van Wolfswinkel, Capel ou Izmailov podiam trazer á equipa no final do ano e que as baixas no sector defensivo em jogos importantes não o ajudaram. Mas sofreu o fatalismo do imediatismo futebolistico que talvez para ele seja mais dificil de compreender depois de se ter formado como jogador no clube mais estável do futebol português e ter atingido o zénite como técnico no clube mais paciente da actualidade na Liga Sagres.
Sá Pinto não trouxe ao Sporting um radicalismo técnico ou uma profunda remodelação táctica que possa justificar uma alteração tão significativa de comportamento por parte dos jogadores. A antiga glória do velho Alvalade conta praticamente com os mesmos nomes que o seu antecessor e mesmo o dispositivo táctico continua a ser o mais parecido possível a um 4-3-3 que priveligia a velocidade nos flancos e a segurança nas transições no miolo.
A vitória futebolistica, à parte do resultado, frente ao rival da Luz foi um espelho desse ideário, adaptado especialmente ás caracteristicas de jogo de um rival sem alma (sem Aimar) e sem cérebro (Jesus, outra vez). Elias engoliu um Rodrigo que se sente mais cómodo à frente. Schaars e Matias Fernandez, com mais preocupações defensivas, controlaram os tempos e deram, quase sempre em condições, as poucas bolas que tiveram nos pés por mais de dois minutos ao veloz ataque liderado por Izmailov e Capel. O resultado foi curto para as oportunidades mas foi o fiel reflexo do pragmatismo de um Sá Pinto que sabe com que conta e, sobretudo, com quem conta. Trocar André Santos ou Carriço, membros habituais na medular, pelo jogo mais fisico e curtido de Elias foi algo com que um Jorge Jesus mais preocupado em fazer bluff com os centrais disponíveis não conseguiu entender. Talvez o técnico encarnado tenha sofrido do mesmo mal de Roberto Mancini, outro treinador que não pensou ser possível perder em Alvalade e que acabou por não encontrar forma de ganhar face à teia defensiva mas com objectivos claros nas transições que o técnico montou na dupla eliminatória e que repetiu, com mais autoridade, num confronto dificilissimo contra um Metalist que pode, daqui a poucos anos, ser um novo Shaktar Donetsk.
Sá Pinto encontrou a motivação do balneário, talvez espelho do seu caracter bem distinto ao do seu antigo colega de selecção nacional, e as condições ideais para triunfar. Sem a pressão dos resultados, a época está praticamente ganha com uma histórica semi-final, apenas a segunda em vinte anos na história do clube nas provas europeias, e com um quarto lugar que não deve escapar, apesar da notável época de outro velho amigo do ex-jogador do Salgueiros, o técnico Pedro Martins.
Mas da mesma forma que Sá Pinto resultou melhor do que se esperava como solução urgente numa situação caótica é preciso imaginar como será o seu trabalho a médio e longo prazo. Paulo Bento chegou numa situação distinta (no arranque da época) e aguentou-se mais do que seria imaginável mas sempre com serviços minimos numa época em que o Benfica ainda não era um rival à altura do FC Porto de Jesualdo Ferreira. Depois do enorme investimento do último defeso cabe pensar que o plantel do Sporting não pode sofrer muitos ajustes no Verão e que esta será a base de trabalho de Sá Pinto. A diferença de qualidade com os rivais directos continua lá, a profundidade de banco ainda é justa e a formação leonina, sempre capaz de resolver problemas, não parece estar tão fina como em anos anteriores.
Ultrapassado o papel emocional do regresso do filho pródigo, agora pede-se a Sá Pinto que seja mais treinador do que apenas gestor humano. O final de temporada será sem dúvida um teste à emocionalidade do clube leonino mas é a preparação para uma nova época sem Champions League e com a expectativa alta que deve preocupar o técnico, dirigentes e adeptos do Sporting. Se o clube de Alvalade souber encontrar a dose certa de paciência que tanto lhe tem faltado, Ricardo Sá Pinto pode encontrar o habitat perfeito para desenvolver-se como técnico. No entanto, se o seu talento se manifestar apenas em situações de alto risco emocional, o futuro leonino continua a ser demasiado cinzento.