Não é o primeiro grande livro nem certamente será o último grande livro alguma vez escrito sobre esse jogo tão popular, hoje como há 100 anos atrás, que é o futebol. Mas é seguramente o mais completo e fundamental tratado sobre o gigantesco fenómeno politico, social, económico e desportivo que é o beautiful game. Nunca um livro soube penetrar tão fundo na pele de um desporto que muitos teimam em dissociar dos alicerces da sociedade contemporânea. Talvez por isso, The Ball is Round, é tão importante para entender o jogo como o drible de Maradona naquela quente tarde na Cidade do México em 1986.
São 900 páginas mas leem-se como se fossem apenas 90.
Talvez essa seja o mais sincero elogio que se pode fazer a um livro que, no fundo, é um tratado épico. Resume o seu poder de sintese, a sua capacidade de absorção e a eterna sensação de vazio que fica quando se guarda o livro pela última vez. Para quem lê pela primeira vez um livro dedicado ao futebol, a experiência é intensa. Para quem conta com uma biblioteca repleta de livros sonantes e brilhantes, é uma surpresa refrescante. The Ball is Round não vive da especificidade que fazem de Inverting the Pyramid de Jonathan Wilson e Football Against the Enemy de Simon Kuper, obras fundamentais. O primeiro é o mais completo livro escrito sobre tácticas, o segundo o mais espantoso retrato do futebol como fenómeno social.
The Ball is Round é tudo isso e muito mais. Sem entrar no mesmo nível de detalhe, abordage com perfeição as metamorfoses tácticas e a envolvência social do jogo. Toca os aspectos politicos com a mesma delicadeza com que Maradona dormia a bola nos pés. Finta a natural tendência de livros cronológicos em deixar-se cair em datas e titulos com a velocidade de Garrincha e remate cada capitulo com uma análise tão perfeita como os disparos de Pelé. Respira-se futebol em cada página. Sobretudo respira-se a evolução da própria história a partir de uma bola de futebol.
David Goldblatt, jornalista inglês por detrás desta obra épica, entende, como nós, que o futebol é o espelho perfeito da metamorfose social dos últimos 150 anos. Com ele conhecemos as múltiplas origens de um jogo que os ingleses souberam domar e estruturar. Com ele viajamos à volta do mundo futebolistico para perceber de que forma o jogo contribuiu para a ascensão e queda das ditaduras militares sul-americanas ou para a formalização do movimento independentista africano. Como Goldblatt explica detalhadamente o futebol não provocou guerras nem assinou tratados de paz, mas abriu as condições para mudanças de ciclo espelhando perfeitamente o sentir dos povos em cada micro-cosmos socio-cultural.
Ao largo das páginas avançamos cronologicamente, viajamos entre continentes, entendemos a decadência das grandes potências, a ascensão dos desafiantes ao trono, reconhecemos nomes próprios, eventos e momentos chave e entendemos de que forma a Guerra das Malvinas contribuiu para a péssima campanha da Argentina no Mundial de 1982 da mesma forma que o ambiente que se vivia em Budapeste à hora de partida dos Magiares para o Mundial de 1954 condicionou a sua performance. Seguimos a evolução do futebol nacional das principais nações e ligas e lemos sobre as especificidades que fazem dos EUA, Austrália, India e China casos à parte nesta relação quase sintomática entre futebol e importância politica-social durante os últimos 50 anos. Goldblatt, notável jornalista free-lancer, não deixa pontas soltas, não abdica de encontrar sempre uma resposta para cada dúvida e, no final, explica como um jogo de 90 minutos não é mais do que a consequência de mil e um factores que se conjugam na mesma direcção.
Ao contrário de muitos livros que tentam relativizar o papel do maior fenómeno social dos últimos 100 anos – talvez só comparável ao cinema e à libertação sexual – The Ball is Round interpreta a sua real relevância e reforça a sua condição primordial no entendimento da evolução socio-economico-politica e cultural do último século. Um livro que não esconde nem se envergonha de entender o beautiful game como algo muito mais importante que um jogo é, nos dias que correm, uma verdadeira benção. Que seja escrito de forma tão brilhante e certeira é um autêntico bónus. Se alguma vez tiverem de ler algum livro jogo o futebol e só puderem escolher um, The Ball is Round deveria ser, sem dúvida, a primeira (e única) opção. Pouco mais se pode dizer de um livro. Pouco lhe faria tanta justiça como lê-lo. Até ao último sorvo.