O Real Madrid deve toda a sua fama a um só jogo. O primeiro grande épico europeu visto maioritariamente por quem tinha televisor na Europa Ocidental à época. Sessenta anos depois, mais do que nunca, a mitologia futebolistica é definida inexoravelmente pelo poder da televisão e da curta memória que há se transformou no espelho desta sociedade.
Messi é o melhor jogador da história.
Pudera! Cada lance seu é visto em primeiro, segundo, terceiro plano, em movimento, em 3D, a cores e alta definição. Desliguemos agora o modo irónico antes que pensem que falamos a sério. O génio do argentino é único, mas o seu papel na história do jogo deve muito ao poder das novas tecnologias, da era dos twitters, facebooks, HDs e 3Ds.
A televisão, sempre a televisão, define os padrões de qualidade e superioridade de uns sobre os outros. A mitologia moderna não se baseia na palavra escrita ou perdida no tempo. É escrava da imagem. Messi é escravo da sua própria imagem da mesma forma que o Real Madrid ainda sobrevive no inconsciente humano pela força inequivoca das suas camisolas brancas brilhantes naquela tarde em Glasgow. A televisão provocou um antes e depois na sociedade ocidental e o futebol como espelho perfeito do mundo em mutação viu-se inevitavelmente presa à mesma realidade. A memória deixou de fazer sentido se não for acompanhada de um clip de video subido ao You Tube. Hoje não há ninguém que escreva sobre futebol que não se limite a repetir a mesma ladainha que foi vendida com imagens coladas à lapela. Pelé, Maradona, Cruyff e Di Stefano, o quarteto imenso. Real Madrid, Ajax, Liverpool, Milan, Manchester United e Barcelona, as seis equipas mais emblemáticas nos últimos 60 anos. Consequências directas da popularização do espectro televisivo. A memória deixou de ser algo valorizável. Quem a tinha e quem presenciou outros tempos foi morrendo e o seu testemunho recolhido por uma infinita minoria, ostracizada por aqueles que se agarram à imagem como um jesuita à cruz. Os mitos do passado não televisado deixaram de existir, a história foi despromovida à condição de anedoctário e os heróis a cores suplantaram os a preto e branco da mesma forma que os Messi a 3D parecem mais que os Maradona de planos únicos de camara.
Alfredo Di Stefano, génio que chegou ao final da sua carreira quando a televisão estava apenas a dar os primeiros passos, entrou nesse top 4 quase como por gesto de condescendência.
Nenhum jovem de menos de 40 o cita sem ser por pura imitação snob e pretenciosa e nem mesmo Messi ou Maradona, seus conterrâneos, o têm como referência. Nessa tarde ele manobrou à vontade, como sempre, o jogo colectivo do Real Madrid. Marcou um hat-trick (Puskas marcou um poker) e entrou nesse imaginário televisado por pouco. Quem o viu jogar diz dele maravilhas que nem as imagens seriam suficientes para ilustrar vários clips de best of, desses que fizeram das corridas de Ronaldo, das roletas de Zidane, dos bailados de van Basten ou os remates de Cristiano Ronaldo, imagens de marca internacionais. O hispano-argentino, pouco dado a falsas modéstias, no entanto sempre defendeu que ele nunca foi tão bom como Pedernera e Labruna, os mentores de La Maquina, da qual restam poucas imagens em video. Outros sobreviventes de eras pretéritas falaram da aura de grandeza de Sindelaar, Meazza, Friedenreich, Piola, Finney e Hidegkuti como génio tão brilhantes como os Cruyff, Baggio, Romários, Keegans e van Basten que se seguiram. Mas sem video ninguém acredita que o génio fosse algo real quando os relatos radiofónicos ainda eram a excepção, e não a regra. O futebol homérico, inspirado em descrições e metáforas mitológicas, para a maioria dos espectadores e analistas actuais é puro folclore. Não conta, não existe, não faz sentido.
Esses são os mesmos que vivem sem entender que o impacto do Brasil de 70 deve-se tanto ao génio dos seus jogadores como ao facto da camisola amarela estridente ter sido vista, pela primeira vez, em televisores a cores, debaixo do calor asfixiante do meio-dia mexicano. Os mesmos que exaltam o presente e votam no “flavour of the month” por cima de nomes ilustres que nunca viram ou quiseram ver. Os que reduzem a mitologia futebolistica ao poder da televisão e esquecem-se de que o jogo já era centenário quando os aparelhos começaram a invadir os lares da Europa. Acreditar que o génio, a arte, o talento só existem porque passou na televisão é tão néscio como pensar que qualquer tempo pretérito é melhor que o actual. Entre esses dois mundos, essas duas filosofias, encontraremos certamente a virtude. O problema é que muito poucos se dão realmente ao trabalho de a procurar.