Como é que um dos países mais fanáticos pelo futebol é também um dos que menos literatura desportiva é capaz de gerar? Morbo, obra de um inglês, explica como os espanhóis preferem falar a escrever sobre um jogo que mais do que um duelo desportivo é o espelho de um país perdido em si mesmo.
É dificil para os espanhóis escreverem sobre o seu futebol porque mais de cem anos depois dos mineiros da firma de Rio Tinto terem sido os primeiros autóctones a tocar uma bola com os pés, o país continua a centrar-se essencialmente nas disputas politico-sociais entre as suas cidades mais emblemáticos. Em nenhum outro país – talvez com a excepção de Itália – o futebol teve um contorno tão profundamente sectário e o papel do beautiful game como reinvindicação seccionista ainda hoje é fundamental na afirmação desportiva das principais entidades do país vizinho.
Tudo isso, mais do que o jogo em si, provoca o chamado “morbo”, palavra unicamente espanhola e sem tradução literal. Termo que se entende pelo prazer especial de triunfar nesse contexto de confronto dissimulado, mas real e fundamental na identidade social de castelhanos, catalães, galegos, bascos, andaluzes, manchegos, leoneses, asturianos, cantábros, valencianos e toda essa amálgama de estados disfarçados de regiões que compõem o estado espanhol. Nesta amalgama onde o futebol desempenha um papel fundamental, nasce Morbo.
Um autor inglês radicado em Espanha consegue ter o distanciamento necessário para viajar pelo país, pela história e pela memória de multpilas realidades que fazem do futebol espanhol algo especial. Phil Ball começa na Andaluzia, onde se reencontra com o nascimento do Recreativo de Huelva, o “Decano” espanhol que na realidade nunca foi uma equipa de prestigio para terminar o livro com uma nota de atenção especial ao sucesso recente da selecção espanhola.
Pelo meio os duelos entre Barcelona e Madrid, os papeis das segundas equipas das principais cidades, a rivalidade sevilhana, o papel das autonomias regionais como catalizadores populares do jogo e, sobretudo essa divisão nacional entre bandos que transformou a liga num duelo de estrelas pagas a peso de ouro pela ambição desmedida do Real Madrid e Barcelona. Num país que fuzilou o futebol regional fora dos grandes nucleos urbanos, numa era onde os espanhóis encontraram finalmente uma identidade desportiva depois de décadas traumatizados por exemplos de sucesso que chegavam de fora, tanto aos clubes como à selecção, Morbo é uma leitura fundamental para entender os parêntesis que muitas vezes ficam por explicar. Ball utiliza o humor britânico, mas apresenta um livro que respeita perfeitamente as idiossincrasias sociais espanholas e o retrato final são mais do que notáveis.
Phil Ball começou a escrever Morbo quando o futebol espanhol ainda não tinha entrado na sua era dourada. Cinco anos depois da primeira edição, com os respecticos ajustes, ler Morbo torna-se ainda mais relevante porque permite, sobretudo, antecipar o ideário que cimentou as bases do sucesso de um país que faz do beautiful game a grande arma social dos dias modernos, o último descendente de velhos conflitos medievais que hoje tomam forma com uma bola de futebol nos pés.