Karl Rappan, Nereo Rocco, Helenio Herrera. Para os mais puristas são a encarnação do diabo, a santissima trindade das trevas futebolisticas. Para os amantes dos desafios tácticos verdadeiros pioneiros, heróis malditos que a histórica do politicamente correcto quer varrer para debaixo do tapete. Mas a grandeza histórica deste trio de ases não é mais do que a consequência lógica do pensamento de Gipo Vianni, o homem responsável pelo "pecato originalle" do catenaccio a la italiana.
Conta a lenda, e nisto do futebol italiano cada história tem a sua lenda respectiva, que Gipo Viani era um homem infeliz.
Filho do Venetto, encontrava-se entalado no meio dos "terroni" de Salerno, esse porto costeiro a sul da costa Amalfitana, esse pedaço de Eden desprovido de pecado. Mas apesar da perfeição que o rodeava nas montanhas, no mar e nas curvas das mulheres que lhe tanto faziam perder a cabeça, Vianni não dormia. Semana atrás de semana a sua Salernitana não encontrava o caminho para a vitória e começava a afundar-se perigosamente na classificação. Oito anos depois de ter começado a sua carreira como treinador, a sua vida nos bancos parecia ter perdido o sentido. O problema do seu esquema estava numa defesa que ainda se regia pelo velho "Metodo", defendido até ao fim pelo grande Vittorio Pozzo, o técnico que fez da Itália a temida bicampeã Mundial nos dias em que Viani era jogador. O jovem tinha conhecido a Pozzo quando este o convocara em 1930 para jogar com os Azzurri. Um encontro que o marcou profundamente e que lhe permitu, no futuro, seguir a carreira de técnico numa era onde só os internacionais podiam sacar a titulação de treinador. Mas se a defesa das equipas de Pozzo pareciam inquebrantáveis, a sua era um verdadeiro quebra-cabeças. A lenda, e a mitologia italiana, como as suas mulheres, não se entende sem a lenda, conta que enquanto pensava, Viani olhou para o mar e viu um grupo de pescadores preparar-se para mais uma jornada de trabalho. E prestou atenção. Quando os dois pescadores mais jovens lançavam as suas redes, um pescador mais veterano atirava ao mar uma terceira rede. Se os peixes mostrassem habilidade suficiente para escapar aos seus jovens pescadores, seguramente que seriam apanhados pela sua veterana rede pesqueira. Na cabeça de Viani fez-se luz, talvez iluminada pelo sol intenso do golfo Amalfitano. Mas lenda ou não a restante temporada da Salernitana entrou para os livros da história do Calcio.
Viani foi o primeiro treinador italiano a establecer os principios e métodos do pensamento que derivou no Catenaccio.
A colocação de um terceiro central, retirado do ataque, permitiu estruturar uma defesa de três homens, com a cobertura dos dois interiores, que realmente se transformava numa teia de cinco jogadores, preparada para enfrentar-se, de igual para igual, com os cinco dianteiros que a maioria das equipas ainda apresentavam segundo o velho esquema do 2-3-5 de Pozzo.
A esse terceiro elemento defensivo mais tarde o grande Gianni Brera chamou de "libero" e encontrou eco na ideia que, do outro lado dos Alpes, começava a defender Rappan. Mas para Viani o esquema era mais do que uma questão de homens. O terceiro central obrigava também a equipa a reaprender a ocupação dos espaços. O quarteto da frente recuou progressivamente no terreno até formar uma linha de três elementos - dois extremos bem abertos e um jogador livre, o célebre Trequartista - por detrás do dianteiro solitário. Atrás desse quarteto os dois laterais, interiores reconvertidos ao jogo nas alas, os três centrais e um médio de cobertura. O campo encolheu, a equipa agrupou-se em zonas mais compactas e assim encontrou a fórmula perfeita para asfixiar os rivais.
Dentro do universo amador da Serie B, a experiência da Salernitana foi um sucesso e os restantes técnicos italianos começaram a olhar atentamente para a experiência de Viani. Afinal os anos 50 foram aqueles onde os campeões do Scudetto foram-no também com o menor número de golos marcados da história. Mas nenhum parecia tão redundatemente sedutor como o Vianemma, nome com que baptizaram o pré-catenaccio. O sucesso de Vianni foi tal que três anos depois o técnico estava em San Siro a orientar um histórico AC Milan com quem venceu dois titulos consecutivos (1957 e 1958) e a que levou á sua primeira final europeia, perdida por 3-2 no prolongamento contra o Real Madrid. Numa equipa sem amadores mas com génios como a tripla sueca Gre-No-Li (Gren, Nordhal e Liedholm) e o espirito de luta de Czeiler, Radice, Bagnoli, Buffon, Schiaffino e Cesare Maldini, o stopper perfeito para o técnico italiano. No final do duelo europeu, Di Stefano e Kopa, diz a lenda, presentaram a Liedholm a taça, como sinal de respeito, reconhecendo anos mais tarde que essa tarde foi a única vez onde a hegemonia merengue nos palcos europeus esteve verdadeiramente ameaçada.
Vianni sentia-se velho e cansado mas sabia reconhecer que o seu sistema estava longe de ser perfeito. Em 1958 abordou pela primeira vez um jovem e promissor técnico para se juntar ao seu staff técnico. Nereo Rocco recusou o convite mas depois de uma segunda abordagem deixou-se seduzir e em Milão juntou-se a Vianni e a Brera em tertúlias intermináveis pela noite num pequeno restaurante perto do Duomo e da sua Madoninna. Quando um ataque cardiaco obrigou a Vianni a um forçado repouso, Rocco pegou nas rédeas da equipa e transformou o Viannema num sistema ainda mais pulido e eficaz. Em 1963 bateu a memória do seu mentor ao derrotar o Benfica na final de Wembley. No ano seguinte Helenio Herrera, adepto do futebol espectáculo em Barcelona, soube levar ainda mais longe o ideário de Vianni e transferiu a sede do poder futebolistico do AC para o Inter de Milão, duplo campeão italiano e europeu nas seguintes temporadas. A história ficou com os titulos e o nome dos últimos, mas ainda hoje há quem se lembre que foi, segundo a lenda, o Éden italiano que levou a Vianni a cometer o seu pecado original.