Madridamanheceu mais triste, fria e cinzenta do que nunca. Um despertar que se repete no tempo, no espaço, na memória...um dia que se repete, uma realidade que não se muta. A ressaca de uma noite de profundo realismo transformou a expectativa em depressão. Um fantasma que, Natal após Natal, aparece nos céus da capital de Espanha voltou para repetir-se, ano após ano, num dia da marmota futebolístico sem igual na história do futebol europeu. A superioridade técnico-táctica, moral, psicológica e desportiva do FC Barcelona de Guardiola funciona para o Real Madrid como a marmota para Bill Murray. Nunca se vai embora...
Há grandes equipas de futebol e depois há as equipas de contornos míticos.
É impossível retirar este Barça deste segundo grupo. Já o Real Madrid de Mourinho ontem nem sequer parecia fazer parte do primeiro. O profundo complexo de inferioridade dos jogadores merengues com os rivais blaugranas, de Mourinho com Guardiola, dos adeptos e imprensa de Madrid com os de Barcelonacomeçam a tornar-se numa patologia crónica, sem cura, sem solução a não ser o inevitável (mas aparentemente distante) desmantelamento de um projecto desportivo a todos os títulos superior ao do histórico clube da capital.
No pior clássico que vimos disputar ao Barcelona a sua superioridade foi tal que a muitos se lhes podia ocorrer que este Real Madrid hoje é mais um bálsamo que um problema para o clube da cidade condal. Incapaz de dominar equipas pequenas fora de casa, no Bernabeu, com mais complexos que um conceito freudiano, o Barça sente-se em sua casa. Explora o seu jogo com autoridade, enerva o rival á mínima e provoca o caos com um suspiro ténue mas determinado. O festival de futebol da passada noite não foi só um repetir sem fim de uma realidade que já leva quatro anos. Foi a confirmação de uma clara superioridade a todos os níveis do campeão europeu. Nem vendo-se a perder desde os 27 segundos o Barcelona mudou uma virgula do seu esquema. O prémio, mais do que a vitória, foi o triunfo da sua ideia, ontem mais posta á prova do que nunca. Talvez não o assuma, mas para Guardiolaa vitória da passada noite tem mais méritos do que os históricos 5-0 do ano passado. A conjuntura parecia favorecer os astros de Madrid mais do que nunca. Não havia queixumes, não havia medos, o primeiro jogo no Bernabeu (pela primeira vez na era Guardiola) parecia afastar o fantasma do Camp Nou. Mas a assombração não conhece cidades e lá se apresentou, pontual, para amargar o enésimo natal aos merengues que sonham ainda com uma liderança que nunca pareceu tão frágil.
Guardiola tinha prometido atrevimento e Mourinho fidelidade aos seus conceitos.
O problema do técnico português, de há uns anos para cá, está na própria natureza do seu modelo de jogo. O jogo directo tem tanta validez como o jogo de posse - por muito que os talibans de Barcelona insistam no contrário - mas ontem Guardiola nunca permitiu sequer um atisbo desse modelo que fez do Madrid uma equipa letal. O seu 3-6-1 destroçou por completo uma equipa incapaz de trabalhar como uma unidade, visivelmente dividida entre secções onde o trabalho se reparte em partes desiguais e provoca inevitáveis desequilíbrios. Cesc e Messi, os dois homens mais avançados á priori, trabalharam durante todo o jogo como dois médios mais, juntando-se a Iniesta, Busquets, Xavi e Dani Alves para cercar e matar qualquer posse de bola do rival. O Real Madrid alinhou com uma linha ofensiva de quatro contra três defesas rivais (Busquets recuava quando a equipa perdia a bola), mas foi incapaz de se valer dessa superioridade salva na ocasião do golo (um tremendo erro de Valdés, tremendamente corajoso depois a continuar a jogar com os pés todos os lances sem medo) e no falhanço clamoroso de um Cristiano Ronaldo que ontem voltou a demonstrar que está a anos-luz de ser um atleta digno de entrar na história. A sua inoperância defensiva, tristemente habitual, contrasta com o árduo trabalho de Messi no miolo. O argentino também não marcou mas sua foi a assistência para o golo do empate (genial jogo de Sanchez) e, sobretudo, em instalar o caos no meio-campo merengue. Ronaldo das duas vezes que teve a história ao seu alcance mostrou o seu rosto habitual, acobardado pelas circunstâncias, nervoso e profundamente complexado com o jogo rival. Foi a sua pequenez o sinal mais evidente da impotência de uma equipa que viveu dos sprints de Di Maria e a insistência de Benzemaface a um jogo colectivo profundamente medíocre.
Se Guardiola tem o mérito de soltar os seus maiores artistas, Mourinho terá sempre a culpa de os prender a conceitos conservadores e estáticos. Xabi Alonso, a bússola do Real, viu-se atado de pés e mãos pelo circulo formado á sua volta entre Busquets, Xavi, Messi e Cesc e o Madrid não encontrou alternativa. Ozil não tinha com quem associar-se,Diarra limitava-se a correr e a defesa, demasiado medrosa para pressionar mais perto do miolo, deixou espaços em abundância para o jogo de toque do rival florescer. Assim nasceram os três golos do Barcelona, trocas de bola rápidas a aproveitar espaços vazios e jogadores estáticos. Mourinho optou por Coentrãocomo defesa direito e deu razão aqueles que entendem que algo de muito podre se vive em Concha Espina. O caso do jovem Pedro Mendes desatou a polémica na semana anterior (e como habitual, cobardemente, Mourinho mandouKarankafalar em seu nome) e começa a ser evidente que no onze titular estão, sobretudo, os homens de confiança do treinador e do seu agente. O desnorte do habitual lateral esquerdo foi evidente, a falta de uma solução no meio-campo gritante (foi Mourinho quem preferiu Khedira a David Silva) e quando a equipa precisava de um sinal do banco este nunca chegou. Kaká não trouxe nada de novo numa substituição fácil,Khedira por Diarra deu um sinal de profundo conformismo e a chegada de Higuain por Di Maria, quando o argentino era o mais atrevido, deixou claro que Cristiano Ronaldo (que voltou a falhar três livres, e vão 23 na época sem golo) não sai nem que esteja sem uma perna. No jogo de ontem a aposta em Callejonfazia muito mais sentido, jogador com espírito de sacrifício para defender e garra a atacar.Guardiola entendeu isso e deixou a Villa no banco sem piedade. Mourinho vive demasiado pendente dos seus e com isso, como sempre, é o colectivo que sai prejudicado. Ontem a derrota táctica foi mais evidente do que em nenhum outro jogo.
No meio desta imagem doloroso ficou evidente que o Barcelonasó perde este liga se quiser e que aos madrileños lhes espera mais um ano de azia profunda. O que a equipa tem feito tem os seus méritos mas não diverge em muito do que se via com Schuster, Ramos ou Pellegrini apesar do brutal investimento e do mediatismo que rodeia o mandato de um Mourinhoincapaz de ganhar de tu a tu ao Barcelona desde que chegou a Stanford Bridge. O seu complexo com o clube que uma vez o rejeitou parece ser superior ao seu inegável talento e também disso se aproveita Guardiola,jogador que cresceu martirizado com o espírito do Bernabeu mas que encontrou o antídoto sendo fiel a si mesmo (algo queCruyffnunca foi) e á sua mentalidade profundamente ofensiva. O dia da marmota merengue parece que continuará até que o Barcelona o queira e os jogadores blaugranas aterram hoje em Tóquio com a sensação de que o seu rival há muito que deixou de ser o Real Madrid. O seu rival é a própria história!